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Capitalismo e identidade gay*
John D’Emilio

John D’Emilio é um historiador dos Estados Unidos, e a história dos gays e das lésbicas nesse país é um de seus principais interesses de pesquisa. Neste ensaio, ele explica que gays e lésbicas não estiveram presentes ao longo da história, que nos Estados Unidos, por exemplo, não havia uma identidade e subcultura de lésbicas ou gays até certo momento do século XIX, quando o desenvolvimento do capitalismo tornou possível nosso surgimento. O capitalismo exigia um sistema de trabalho baseado em salários, em vez de uma família amplamente autossuficiente ou a escravidão; e os salários deram aos indivíduos uma relativa autonomia, que foi a condição material necessária para a formação da homossexualidade de mulheres e homens. Uma política gay e lésbica sólida em nossos tempos, conclui D’Emilio, deve ser baseada em uma visão desmistificada de nosso passado, com o que ele espera que seu trabalho neste ensaio e em outros lugares possa contribuir. [1]

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Imagem: Paul Cadmus, “The Fleet’s In!”, 1934
Tradução: Marie Castañeda, Gabriela Novais e Rafael Barros

Para os gays e as lésbicas, os anos de 1970 foram anos de conquistas significativas. A liberação gay e a liberação da mulher mudaram a paisagem sexual da nação. Centenas de milhares de homens e mulheres gays saíram de seus armários e afirmaram o homoerotismo abertamente. Ganhamos a descriminalização da sodomia [2] na metade dos estados, uma eliminação parcial da exclusão das lésbicas e dos gays na plataforma do Partido Democrata e a eliminação da homossexualidade da lista de doenças mentais dos profissionais de psiquiatria [3]. A subcultura gay masculina se expandiu e se tornou cada vez mais visível nas grandes cidades, e as lésbicas feministas foram pioneiras na construção de instituições alternativas e na construção de uma cultura alternativa que tentou encarnar uma visão libertadora do futuro.

Nos anos de 1980, no entanto, com o ressurgimento de uma ala direita ativa, gays e lésbicas se encontravam diante de um futuro incerto. Nossas vitórias pareciam tênues e frágeis; a relativa liberdade dos últimos anos parecia ser muito recente para que fosse permanente. Em alguns extratos da comunidade lésbica e gay, crescia um sentimento de fatalidade; algumas analogias com a época dos Estados Unidos de McCarthy, quando os “pervertidos sexuais” foram alvo especial da direita [4], e com a Alemanha nazista, na qual os gays foram enviados a campos de concentração, vinha à tona com demasiada frequência. Em toda parte, fazia-se presente a sensação da necessidade de novas estratégias para preservar as conquistas e seguir adiante.

Penso que uma nova e mais precisa teoria da história dos homossexuais deve ser parte desse empreendimento político. Quando o “movimento de liberação gay” começou no fim dos anos de 1960, os gays e as lésbicas não contavam com uma história que pudéssemos usar para estruturar nossos objetivos e estratégias. Nos anos que se seguiram, o movimento se construiu sem o conhecimento da nossa história, cuja ausência substituímos por uma mitologia inventada. Essa história mística se fundiu à experiência pessoal, que projetamos no tempo passado. Muitas lésbicas e muitos gays dos anos de 1960, por exemplo, descobriram seu desejo sexual isoladamente, sem ter consciência dos semelhantes e sem os recursos para nomear e entender o que sentiam. Dessa experiência, construímos um mito de silêncio, invisibilidade e isolamento como as características essenciais da vida gay tanto no passado quanto no presente. E mais ainda: dado que encaramos tantas leis, políticas públicas e crenças culturais de caráter opressivo, projetamos isso na imagem de um passado abismal: até o surgimento da liberação gay e lésbica sempre fomos vítimas de uma opressão sistemática, igual e terrível.

Esses mitos têm limitado a nossa perspectiva política. Têm contribuído, por exemplo, para gerar um excesso de confiança na estratégia de sair do armário; supõe-se que se cada gay e cada lésbica se assumirem nos Estados Unidos, a opressão aos homossexuais desaparecerá, – e isso tem nos permitido ignorar os modos institucionalizados por meio dos quais a homofobia e o heterossexismo se reproduzem. Às vezes, tais mitos têm catalisado a desesperança, especialmente em momentos como o presente: como podemos nos desvencilhar de uma opressão aos homossexuais que já perdura durante tanto tempo sem mudanças?

Existe outro mito histórico que goza de uma aceitação quase universal no movimento gay, o mito do “homossexual eterno”. O argumento é o seguinte: gays e lésbicas sempre existiram e sempre existirão. Estamos por todos as partes, não só agora, mas ao longo da história, em todas as sociedades e em todos os períodos. Esse mito teve uma função política positiva nos primeiros anos da liberação gay. No começo dos anos de 1970, quando combatemos uma ideologia que oscilava entre negar nossa existência ou nos definir como indivíduos psicopatas ou aberrações da natureza, conferia potência afirmar que “estamos em toda parte”. Mas, nos últimos anos, a ideia de que estamos em toda parte nos confinou de maneira tão certeira quanto as teorias médicas mais homofóbicas e cercou nosso movimento no impedindo de avançar.

Desejo aqui desafiar esse mito. Quero argumentar que gays e lésbicas não existiram desde sempre. Ao contrário, são um produto da história e passaram a existir em um período histórico específico. Seu surgimento está associado às relações capitalistas; foi o desenvolvimento histórico do capitalismo, mais especificamente, seu sistema de trabalho livre, o que permitiu que um grande número de homens e mulheres se denominassem, no fim do século XX, como gays e lésbicas, que pudessem se ver como parte de uma comunidade de homens e mulheres que lhes são similares e que se organizem politicamente com base nessa identidade [5]. Finalmente, quero sugerir algumas lições políticas que podemos concluir dessa visão da história.

Quais seriam, então, as relações entre o sistema de trabalho livre do capitalismo e a homossexualidade? Primeiro, permitam-me repassar alguns elementos do capitalismo. No capitalismo, os trabalhadores são “livres” em dois sentidos. Temos a liberdade de buscar um trabalho. Possuímos apenas nossa capacidade de trabalhar e temos a liberdade de vender nossa força de trabalho por um salário para qualquer um que esteja disposto a comprá-la. Estamos também livres de qualquer propriedade além da nossa força de trabalho. Muitos de nós não possuem terras ou instrumentos que produzam o que precisamos, mas, pelo contrário, temos que trabalhar para poder sobreviver. Desse modo, somos livres, sim, para vender nossa força de trabalho no sentido positivo, também estamos livres, no sentido negativo, de qualquer alternativa. Essa dialética – a constante interrelação entre a exploração e um certo nível de autonomia – faz parte da história de todos aqueles que viveram sob o capitalismo.

Enquanto o capital – dinheiro utilizado para produzir mais dinheiro – expande-se, cresce também o sistema de trabalho livre. O capital se expande de diversas maneiras. Geralmente se expande no mesmo lugar, transformando todas as pequenas empresas em outras maiores, mas também se expande tomando novas áreas de produção: costurar roupas, por exemplo, ou fazer o pão. Finalmente, o capital se expande geograficamente. Nos Estados Unidos, o capitalismo inicialmente tinha suas raízes no noroeste, em um período no qual a escravidão era o sistema dominante no sul e quando as sociedades nativas não capitalistas ocupavam a parte oeste do território. Durante o século XIX, o capital se estendeu do Atlântico ao Pacífico e, no século XX, o capital estadunidense penetrou quase todas as partes do mundo.

A expansão do capital e a extensão do trabalho assalariado operaram uma profunda transformação da estrutura e das funções da família nuclear, a ideologia da vida familiar e o significado das relações heterossexuais. São estas as mudanças na família que estão mais diretamente ligadas ao surgimento de uma vida gay coletiva.

Os colonizadores brancos da Nova Inglaterra no século XVII estabeleceram povoados estruturados ao redor de uma economia doméstica, compostos por unidades familiares que eram basicamente autossuficientes, independentes e patriarcais. Homens, mulheres e crianças trabalhavam na terra, cuja propriedade era do chefe masculino do lar. Ainda que existisse uma divisão do trabalho entre homens e mulheres, a família era verdadeiramente uma unidade interdependente de produção: a sobrevivência de cada membro dependia da cooperação de todos. O lar era o local de trabalho onde as mulheres processavam os produtos primários da granja e os transformavam em alimentos para consumo diário, onde elas faziam a roupa, o sabão, as velas, e onde as esposas, os maridos e as crianças trabalhavam juntos para garantir os bens que consumiam.

Já no século XIX, esse sistema de produção doméstica entrou em decadência. No noroeste, quando os comerciantes capitalistas investiram o dinheiro acumulado no comércio na produção de bens, o trabalho assalariado ficou mais comum. Homens e mulheres foram tirados da economia doméstica, fundamentalmente autossuficiente na era colonial, e foram transferidos ao sistema de trabalho livre do capitalismo. Para as mulheres, no século XIX, o trabalho assalariado raramente seguia após o casamento; para os homens, transformou-se em uma situação permanente.

A família já não era, assim, uma unidade independente de produção. Mas, apesar de não ser independente, a família era, ainda, interdependente. Devido ao fato de o capitalismo ainda não ter se expandido tanto, de não ter tomado – ou socializado – a produção de bens de consumo, as mulheres ainda realizavam o trabalho produtivo necessário no lar. Muitas famílias já não produziam os grãos, mas as esposas ainda tinham que transformar em pão a farinha que compravam com o salário dos maridos; ou quando compravam fios e tecidos, ainda tinham que fazer a roupa para suas famílias. Em meados do século XIX, o capitalismo tinha destruído a autossuficiência econômica de muitas famílias, mas não a dependência mútua de seus membros.

Essa transição de uma economia doméstica, baseada na família, para uma economia capitalista de trabalho livre completamente desenvolvido aconteceu muito lentamente, em um intervalo de tempo de quase dois séculos. Mais tarde, nos anos de 1920, 50% da população estadunidense vivia em comunidades de menos de 2.500 pessoas. No começo do século XX, a grande maioria das pessoas negras vivia fora da economia de trabalho livre, em um sistema de meação [6] e arrendamento dependente da família. Pode-se dizer que não apenas as fazendas independentes existiam como um modo de vida para milhões de estadunidenses, mas que, inclusive, nos povoados e nas pequenas cidades, as mulheres continuavam cultivando e processando alimentos, fazendo roupa, e estavam envolvidas em outros tipos de produção doméstica.

Mas, para aquelas pessoas que sentiram essas mudanças de maneira mais aguda, a família adquiriu um novo significado como unidade afetiva, transformou-se em uma instituição que não possuía bens, mas satisfação emocional e felicidade. Nos anos de 1920, entre as pessoas brancas de classe média, a ideologia em torno da família a descrevia como o meio por meio do qual homens e mulheres construiriam relações mutuamente satisfatórias e criariam um ambiente no qual os filhos seriam criados. A família se tornou a configuração para uma “vida pessoal”, profundamente diversa e apartada do mundo público do trabalho e da produção. [7]

O significado das relações heterossexuais também mudou. Na Nova Inglaterra, durante o período colonial, a taxa de nascimento estava em uma média de sete filhos por mulher em idade fértil. Homens e mulheres precisavam do trabalho das crianças. Produzir crianças, tanto quanto produzir grãos, era necessário para a sobrevivência. O sexo estava acorrentado à procriação. Os puritanos não celebravam a heterossexualidade, mas o casamento; condenavam toda expressão sexual fora do laço matrimonial e não diferenciavam fortemente entre sodomia e fornicação heterossexual.

Na década de 1970, todavia, a taxa de nascimento caíra para menos de dois. Com exceção do baby boom posterior à Segunda Guerra Mundial, a queda se manteve contínua por dois séculos, paralelamente à extensão das relações capitalistas de produção. Ocorreu inclusive quando o acesso aos meios contraceptivos e ao aborto foram sistematicamente cortados. A queda incluiu um segmento significativo da população, famílias rurais e urbanas, brancos e negros, grupos étnicos e as WASPs [8], a classe média e a classe operária.

Quando o trabalho assalariado e a produção passaram a ser socializados, foi possível liberar a sexualidade do “imperativo” da procriação. Ideologicamente, a expressão heterossexual chegou a ser o meio de estabelecer a intimidade, promover a felicidade e experimentar o prazer. Ao despir-se de sua independência econômica e reforçar a separação entre sexualidade e procriação, o capitalismo criou as condições que induziram alguns homens e algumas mulheres a organizar sua vida pessoal em torno de sua atração erótico-afetiva por pessoas do seu próprio sexo. O capitalismo tornou possível a formação de comunidades urbanas de lésbicas e gays e, mais recentemente, a formação de uma política baseada na identidade sexual.

Os registros da corte e da igreja na Nova Inglaterra colonial indica que a homossexualidade masculina e feminina existia já no século XVII. Comportamento homossexual, no entanto, é diferente de identidade homossexual. Não havia, simplesmente, um “espaço social” no sistema de produção colonial que permitisse a um homem ou a uma mulher ser gay. A sobrevivência era estruturada em torno da participação em um núcleo familiar. Certamente, as pessoas se envolviam em certos atos homossexuais – sodomia entre os homens, “obscenidade” entre mulheres –, porém, a família era tão dominante na sociedade colonial que lhe faltava até mesmo uma categoria como homossexual ou lésbica para descrever uma pessoa. Muito provavelmente alguns homens e algumas mulheres sentiam-se mais fortemente atraídas por pessoas do mesmo sexo do que por pessoas do sexo oposto; com efeito, nos tribunais coloniais, há referências a homens que persistiam em suas atrações “antinaturais”, contudo, ninguém poderia transformar essa preferência no seu estilo de vida. Na Massachussets colonial, havia até mesmo leis proibindo adultos solteiros de viverem fora de uma unidade familiar. [9]

Na segunda metade do século XIX, essa situação estava notoriamente mudando, dado que o sistema capitalista de livre trabalho foi enraizado. Apenas a partir do momento em que os indivíduos começaram a subsistir através do trabalho assalariado, em vez de o fazer como parte de uma unidade familiar, é que foi possível que o desejo homossexual se tornasse uma identidade pessoal; uma identidade baseada na capacidade de permanecer fora de famílias heterossexuais e de construir uma vida baseada na atração por alguém do mesmo sexo. No fim desse século, existia uma categoria de homens e mulheres que reconhecia seu interesse erótico por pessoas do mesmo sexo, via nisso um traço que as colocava à parte da maioria e procurava pessoas iguais a elas. Essas primeiras vidas gays vinham de um amplo espectro social: funcionários do Estado, executivos, vendedores, professores universitários, operadores de fábricas, pastores, advogados, cozinheiros, trabalhadores domésticos, vagabundos e ricos; homens e mulheres, pessoas brancos e negras, imigrantes e nativos.

Nesse período, gays e lésbicas começaram a criar maneiras de se reunir e manter uma vida em grupo. No início do século XX, já existiam cidades grandes que abrigavam bares para gays. Os gays ocuparam áreas como Riverside Drive em Nova York e Lafayette Park em Washington. Em St. Louis, capital do país, as festas de gala atraíam um grande número de gays negros. Banheiros públicos e as YMCAs [10] tornaram-se locais de encontro para homens homossexuais. As lésbicas formaram sociedades literárias e clubes sociais privados. Algumas mulheres da classe trabalhadora se passaram por homens para obter melhores salários e viver com outras mulheres, formando casais lésbicos, mas que apareciam ao mundo como marido e mulher. Entre os docentes das universidades, abrigos, associações profissionais e clubes que as mulheres formaram, podem ser encontrados relacionamentos homoafetivas que duraram a vida inteira e foram mantidos no interior de uma rede de amigas lésbicas. Nos anos de 1920 e 1930, grandes cidades como Nova York e Chicago já abrigavam bares lésbicos. Esse estilo de vida pôde se desenvolver porque o capitalismo permitiu que sobrevivessem fora dos limites da família. [11]

Simultaneamente, as definições ideológicas de comportamento homossexual mudaram. Médicos desenvolveram teorias sobre a homossexualidade, descrevendo-a como uma condição, algo inerente à pessoa, uma parte de sua própria “natureza”. Essa teoria não representava avanços científicos ou elucidações sobre áreas do conhecimento ainda não estudadas; pelo contrário, era uma resposta ideológica a uma nova forma de organização da vida pessoal. A popularização do modelo médico afetou a consciência de mulheres e homens que tinham experimentado seu desejo sexual de tal modo que chegou a lhes definir através de sua vida erótica. [12]

Essas novas formas de identidade e padrões de vida em grupo também expressaram a diferenciação das pessoas de acordo com o gênero, a raça e a classe dominante nas sociedades capitalistas. Entre os brancos, por exemplo, os gays eram, tradicionalmente, mais visíveis que as lésbicas. Em parte, pode-se concluir que se dá devido à divisão da esfera pública masculina e da esfera privada feminina. As ruas, os parques, os bares, principalmente, à noite, eram um “espaço masculino”. Ainda sim, a maior visibilidade dos homens brancos também era refletida devido ao seu maior número. Os estudos de Kinsey dos anos 1940 e 1950 encontraram, significativamente, mais homens que mulheres com experiências predominantemente homossexuais, uma situação causada, eu argumentaria, pelo fato de que o capitalismo tinha mais homens que mulheres na força de trabalho e salários mais altos. Os homens podiam construir uma vida pessoal de maneira mais fácil, independentemente do laço com sexo oposto, enquanto era mais provável que as mulheres não pudessem romper a dependência econômica com os homens. Kinsey também encontrou uma forte correlação positiva entre escolaridade e comportamento lésbico. As mulheres brancas com educação universitária se encontravam em melhor posição para se manter do que suas irmãs da classe trabalhadora. Podia se sustentar mais facilmente sem ter que entrar em relações íntimas com os homens. [13]

Entre a classe trabalhadora imigrante do começo do século XX, as redes de parentesco estreitamente tecidas e a ética da solidariedade familiar impuseram restrições para a autonomia individual; isso fez com que a homossexualidade fosse uma difícil opção de se buscar. Contudo, por razões não totalmente claras, as comunidades urbanas brancas pareciam relativamente tolerantes à homossexualidade. A popularização nos anos de 1920 e 1930 de músicas com temática lésbico-gay — “B . D. Woman” https://youtu.be/_nmrWB1ovQ0, “Prove It on Me” https://youtu.be/yRyaUcVfhak, “Sissy Man [Blues]” https://www.youtube.com/watch?v=VuR..., “Fairey Blues” https://www.youtube.com/watch?v=Cg5... — sugere uma abertura para a expressão homossexual em contradição com a atitude existente entre as pessoas brancas. Entre os homens no oeste rural em 1940, Kinsey encontrou uma forte incidência do comportamento homossexual, mas, em contraste com os homens das grandes cidades, pouca consciência da identidade gay. Assim, quando o capitalismo exerceu uma influência homogeneizadora na transformação gradual de mais e mais indivíduos trabalhadores assalariados separados de suas comunidades tradicionais, diferentes grupos de pessoas foram afetados de diferentes modos.

As decisões particulares de homens e mulheres de exercer sua preferência erótico-afetiva pelo mesmo sexo, junto com a nova consciência de que essa preferência os fazia diferentes, levou-os à formação de uma subcultura urbana de gays e lésbicas. Ainda assim, ao menos na década de 1930, essa subcultura continuou rudimentar, instável e difícil de ser encontrada. Então, como se desenvolveu uma comunidade gay completa e bem desenvolvida tal como a existente no momento em que se instalou o movimento de liberação gay? A resposta deve ser buscada nos desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, em um momento em que as mudanças acumuladas por várias décadas se tornaram algo qualitativamente novo.

A guerra abalou profundamente os padrões das relações de gênero e sexualidade e criou temporariamente uma situação sexual nova, condizente com a expressão homossexual. Isso desagregou a vida de milhões de homens e mulheres jovens cujas identidades sexuais estavam se formando. Ela os tirou de suas casas, colocou-os longe dos seus povos, das suas cidades pequenas, fora do ambiente heterossexual da família e os colocou em situações em que ambos os sexos estavam segregados – tal como GIs, WACs, WAVEs [14], em edifícios com habitações compartilhadas entre pessoas do mesmo sexo. A guerra liberou milhões de homens e mulheres de estruturas nas quais a heterossexualidade era normalmente imposta. Para homens e mulheres que já eram gays, foi uma oportunidade de encontrar pares. Outros puderam se tornar gay devido à liberdade temporária de explorar a sexualidade que a guerra proporcionou. [15]

Lisa Ben, por exemplo, saiu do armário durante a guerra. Ela deixou a pequena cidade da Califórnia onde foi criada, foi para Los Angeles em busca de trabalho e morou em uma pensão feminina. Ali conheceu pela primeira vez lésbicas que a levaram a bares gays e a apresentaram a outras mulheres gays. Donald Vining era um jovem com muito desejo homossexual e poucas experiências gays. Ele se mudou para a cidade de Nova York durante a guerra e trabalhou em uma grande YМСА. Seu diário revela inúmeras aventuras eróticas com soldados, marinheiros, fuzileiros navais e civis no “Y” onde trabalhava, bem como no clube de residência masculina onde morava e em parques, bares e cinemas. Muitos GIs ficaram em cidades portuárias como Nova York, em YMCAs como aquela onde Vining trabalhou. Em suas histórias orais de gays em San Francisco, com foco na década de 1940, Allan Berube descobriu que os anos de guerra foram fundamentais para a formação de uma comunidade gay masculina na cidade. Lugares tão diferentes como San Jose, Denver e Kansas City tiveram seus primeiros bares gays na década de 1940. Mesmo a repressão severa pode ter efeitos colaterais positivos. Pat Bond, uma lésbica "de Davenport, Iowa, juntou-se aos WACs durante os anos de 1940. Pega em um expurgo de centenas de lésbicas dos WACs no Pacífico, ela não voltou para Iowa. Ficou em San Francisco e se tornou parte de uma comunidade de lésbicas. Quantas outras mulheres e homens tiveram experiências comparáveis? Quantas outras cidades viram um rápido crescimento de comunidades de gays e lésbicas? [16]

Os homens e as mulheres gays da década de 1940 foram pioneiros. A decisão de vivenciar seus desejos formou o início de uma subcultura gay-lésbica urbana. Ao longo dos anos de 1950 e 1960, a subcultura gay cresceu e se estabilizou, de maneira que quem estava saindo do armário podia encontrar outros homens e mulheres gays mais facilmente do que no passado. Os jornais e as revistas publicavam artigos relatando a vida gay masculina. Literalmente, centenas de romances com temas lésbicos foram publicados. [17] Os psicanalistas se queixavam da recente facilidade com que seus pacientes gays encontravam companheiros sexuais. Podia-se encontrar a subcultura gay não só nas grandes cidades. Bares lésbico-gays existiram em lugares como Worcester, Massachussets, Buffalo, Nova York; em Colombia, Carolina e Des Moines, Iowa. A vida gay se tornou um fenômeno de extensão nacional nas décadas de 1950 e 1960. Em 1969, quando teve lugar a revolta de Stonewall – o evento que deu início ao movimento de liberação gay –, nossa situação estava longe de ser caracterizada pelo silêncio, pela invisibilidade e pelo isolamento. A razão pela qual o movimento de liberação gay se formou de um dia para o outro, tornando-se um movimento massivo de base, foi justamente porque as comunidades gays e lésbicas já existiam.

Ainda que a comunidade gay tenha sido uma condição para o movimento massivo, a opressão a lésbicas e gays foi a força que impulsionou o movimento a nascer. Enquanto a subcultura se expandiu e voltou mais visível no período do pós-guerra, a opressão por parte do Estado se intensificou, tornando-se mais sistemática e ampla. A direita transformou os “pervertidos sexuais” em bodes expiatórios durante a era de McCarthy. Eisenhower impulsionou uma proibição de empregar homens e mulheres gays por parte do governo federal e seus associados. A expulsão de lésbicas e homossexuais do exército foi implementada. O FBI instituiu um programa de vigilância de lugares de encontro e organizações de gay e lésbicas, tais como, Daughters of Bilitis [18] e a Mattachine Society [19]. A agência de correios rastreava cartas de gays para repassar a evidência de atividade homossexual aos empregadores. As divisões policiais especializadas na luta contra esse “vício” invadiam lugares privados, destruíam bares gays-lésbicos, prendiam os gays em lugares públicos e fomentavam a caça às bruxas locais. O perigo de ser gay aumentou quando as possibilidades de ser gay aumentaram. A liberação foi uma resposta a essa contradição.

Apesar de lésbicas e gays terem obtido vitórias significativas nos anos de 1970 e terem aberto certo espaço social no qual tinham segurança de existir, não se pode afirmar que haviam dado um golpe fatal na heterossexualidade e na homofobia. Pode-se até argumentar que a opressão a gays tenha meramente mudado de lugar, deslocando-se, de alguma forma, do Estado para a arena da violência ilegal na forma de ataques abertos crescentes contra gays e lésbicas. E enquanto nosso movimento crescia foi sendo gerada uma reação que ameaçava destruir nossas conquistas. De modo significativo essa oposição da Nova Direita tomou a forma de um movimento “pró-família”. Como o capitalismo, cuja estrutura tornara possível uma identidade gay e a criação de comunidades gays urbanas, parecia não estar disposto a aceitar os homossexuais? Por que o heterossexismo e a homofobia são tão resistentes às mudanças?

As respostas, penso eu, devem ser encontradas na natureza contraditória da relação entre o capitalismo e a família. Por um lado, como argumentei, o capitalismo instituiu a base material do núcleo familiar, privando-o das funções econômicas que firmaram os laços entre seus membros. Com a crescente incorporação dos adultos no sistema de trabalho livre e a consequente expansão da esfera de ação do capital que abarcou a maior parte dos bens e serviços de que necessitamos no cotidiano, as forças que obrigavam os homens e as mulheres gays a conformar e manter uma família ficaram debilitadas. Por outro lado, a ideologia capitalista exalta a família como fonte de amor, afeto e segurança emocional. A família se tornou um lugar no qual nossa necessidade de relações humanas e estáveis são satisfeitas.

Essa valorização da família não é acidental. Toda sociedade precisa de uma estrutura para a reprodução e a criação de uma nova geração, mas as possibilidades não podem se limitar a um núcleo familiar. A família privada, porém, encaixa-se muito bem nas relações capitalistas de produção. O capitalismo socializou a produção enquanto o produto desse trabalho socializado se mantém pertencente aos donos da propriedade privada. Em muitos sentidos, nos últimos séculos, a educação da criança na infância tem sido crescentemente socializada, com as escolas, meios de comunicação, os grupos de pais e os empregadores que tomam algumas funções que antes pertenciam aos pais. No entanto, a sociedade capitalista mantém a reprodução da infância como uma tarefa privada, que as crianças “pertencem” a seus pais, que exercem o direito de propriedade. Ideologicamente, o capitalismo conduz as pessoas a famílias heterossexuais: toda geração chega à idade adutlra tendo internalizado um modelo heterossexista de intimidade e de relações pessoais. Materialmente, o capitalismo debilita os laços que em algum momento mantinham as famílias unidas de tal maneira que seus membros experimentam uma crescente instabilidade, justamente em um contexto em que chegaram a esperar felicidade e segurança emocional. Assim, em um contexto em que o capitalismo golpeou o pilar material da família, as lésbicas, os gays, as feministas heterossexuais tornaram-se os bodes expiatórios da instabilidade do sistema.

Essa análise, se persuasiva, tem implicações para nós até hoje. Pode afetar a percepção de nossa identidade, nossa formulação dos objetivos políticos e nossas decisões no que se refere à estratégia.

Argumentei que a identidade e as comunidades de lésbicas e gays foram uma criação histórica, que constituem o resultado do desenvolvimento capitalista ao longo de várias gerações. O coroamento desse argumento é que não somos uma minoria social fixa, composta sempre por uma certa porcentagem da população. Há muitos de nós hoje que completam cem anos, e tantos mais que fazem quarenta também. E pode chegar a haver muitos mais de nós no futuro. Os argumentos sustentados tanto por gays como por não gays a respeito de que a orientação sexual se fixa na juventude, e da mesma maneira os discursos que supõem que o grande número de homens e mulheres gays visíveis na sociedade, nos meios de comunicação, nas escolas, não terão influência na identidade sexual dos jovens são equivocados. O capitalismo criou as condições materiais para que o desejo homossexual se expressasse como um componente central da vida de alguns indivíduos; agora, nosso movimento político está transformando consciências, criando condições ideológicas que tornam mais fácil para as pessoas fazerem essa escolha.

É verdade que esse argumento confirma os piores temores e a retórica mais raivosa de nossos oponentes políticos. Mas nossa resposta deve ser desafiar a crença subjacente de que as relações homossexuais são ruins, que constituem uma segunda opção muito pobre. Não devemos cair na defesa oportunista segundo a qual a sociedade não precisa se preocupar em nos tolerar, visto que só os homossexuais chegam a ser homossexuais. No melhor dos casos, a análise de um grupo minoritário e a estratégia de exigir direitos civis pertence àqueles que, dentre nós, já são gays. Permite que a juventude de hoje — as lésbicas e os gays de amanhã — internalizem modelos heterossexistas que levam uma vida inteira para serem expurgados.

Argumentei, ainda, que o capitalismo levou à separação da sexualidade e da procriação. O desejo sexual humano não necessita mais estar sujeito ao imperativo da reprodução, à procriação; sua expressão entra, crescentemente, no terreno da escolha. Lésbicas e gays encarnam de maneira mais clara o potencial desse espírito, dado que nossas relações gays estão totalmente por fora de um contexto de procriação. A aceitação de nossas escolhas eróticas, em última instância, depende do grau em que a sociedade se presta a afirmar a expressão sexual como uma forma de jogo, positivo e enriquecedor, para a vida. Nosso movimento começou como a luta de uma “minoria”, mas deveríamos estar tratando de “libertar” um aspecto da vida de todas as pessoas: a expressão sexual. [20]

Finalmente, argumentei que a relação entre capitalismo e família é fundamentalmente contraditória. Por um lado, o capitalismo debilita de modo contínuo a fundação material da família, tornando possível que os indivíduos vivam fora da família e contribuindo para que uma identidade lésbica e gay se desenvolva. Por outro lado, precisa empurrar homens e mulheres para a estrutura da família, que dure ao menos o suficiente para se produzir a nova geração de trabalhadores. A elevação da família ao ponto de predominância ideológica garante que a sociedade capitalista reproduzirá não somente crianças, mas também heterossexismo e homofobia. No sentido mais profundo, o capitalismo é o problema.

Como evitaremos continuar servindo de bode expiatório, as vítimas políticas da instabilidade social gerada pelo capitalismo? Como podemos nos valer dessa relação contraditória a fim de usá-la para nos dirigirmos rumo à libertação?

Os gays e as lésbicas existem em um terreno social para além dos limites da família nuclear heterossexual. Nossas comunidades se formaram naquele espaço social. Nossa sobrevivência e liberação dependem de nossa habilidade para defender e expandir tal terreno, não só para nós, mas para todos. Isso significa, em parte, apoiar as unidades familiares; assuntos como a disponibilidade do aborto e a ratificação da Emenda Constitucional que garante direitos iguais, a ação afirmativa para pessoas negras e mulheres, creches públicas subsidiadas e outros serviços essenciais, tais como um bom seguro-desemprego, pleno emprego, direitos para a juventude – em outras palavras, programas e temas que provêm a base material para a autonomia pessoal.

Os direitos da juventude são especialmente críticos. A aceitação das crianças como dependentes, como propriedades de seus pais, está tão profundamente enraizada que podemos apenas imaginar de forma escassa como se experimentaria tratá-los como seres humanos autônomos, particularmente em relação à expressão sexual e às escolhas. Até que isso ocorra, porém, a liberação gay está fora de alcance.

Mas a autonomia pessoal é só metade da história. A instabilidade das famílias e o sentido de impermanência e de insegurança que as pessoas estão agora experimentando em suas relações pessoais são problemas sociais reais que precisam ser encarados. Precisamos de soluções políticas para essas dificuldades da vida pessoal. Essas soluções não devem vir na forma de uma versão radical da posição pró-família, em um tipo de proposta de esquerda para reforçar a família. Os socialistas não respondem à exploração e à desigualdade econômica do capitalismo industrial defendendo um regresso à produção familiar e artesanal. Reconhecemos que o vasto incremento da produtividade que o capitalismo tornou possível ao socializar a produção é uma de suas características progressistas. De modo similar, não deveríamos tratar de fazer voltar o relógio até uma certa era mítica em que a família era feliz.

Precisamos, outrossim, de estruturas e programas que ajudarão a dissolver as fronteiras que isolam a família, particularmente aquelas que privam as crianças da infância. Precisamos de uma comunidade – ou seja, creches controladas por trabalhadores, casas onde a intimidade e a comunidade coexistam, instituições de bairro, de clínicas médicas a centros culturais, – que amplie a unidade social na qual cada um de nós possui um lugar seguro. Na medida que criemos estruturas para além da família nuclear que proporcionem um sentido de pertencimento, a família vai perdendo importância. Cada vez menos ela parecerá constituir ou quebrar nossa segurança emocional.

Nesse sentido, lésbicas e gays estão bem situados para representar um papel especial. Ora, excluídos das famílias tanto quanto somos, tivemos que criar, para nossa sobrevivência, redes de apoio que não dependem de laços sanguíneos ou da permissão do Estado, mas que foram escolhidas e nutridas livremente. A construção de uma “comunidade afetiva” deve ser parte do nosso movimento político tanto quanto o são as campanhas por direitos civis. Nesse caminho, podemos prefigurar a forma das relações pessoais em uma sociedade fundada na igualdade e na justiça em vez de na exploração e na opressão, uma sociedade em que a autonomia e a segurança não se oponham uma à outra, mas coexistam.

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* Este ensaio é uma versão revisada de uma palestra proferida para diferentes públicos em 1979 e 1980. Agradeço aos seguintes grupos por me oferecerem um fórum para falar e receber retornos: Baltimore Gay Alliance, San Francisco Lesbian and Gay History Project, os organizadores da Semana de Conscientização Gay de 1980 na Universidade Estadual de San Jose e da Universidade da Califórnia em lrvine, e os coordenadores das Palestras de Assuntos Estudantis na Universidade da Califórnia em lrvine. Lisa Duggan, Estelle Freedman, Jonathan Katz, Carole Vance, Paula Webster, Bert Hansen, Ann Snitow, Christine Stansell e Sharon Thompson forneceram críticas úteis a um esboço anterior. Desejo agradecer especialmente a Allan Bérubé e Jonathan Katz por generosamente compartilharem comigo essas pesquisas, e a Amber Hollibaugh por muitas horas emocionantes de conversas incessantes sobre marxismo e sexualidade.

 
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