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ORIENTE MÉDIO
O que houve com a primavera árabe?
Simone Ishibashi
Rio de Janeiro

Há quatro anos desde que o vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi imolou-se, dando início às revoltas que se espalharam como rastilho de pólvora pelos países do Magreb e do Oriente Médio, tem-se dado uma transformação radical do panorama dos processos que levaram o nome “primavera árabe”.

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Isso coloca um novo desafio para todos aqueles que corretamente tomaram a defesa entusiasmada dos levantamentos populares quando esses se iniciaram. Evidentemente, essas mudanças assumem em cada país uma característica particular. Mas o que há de comum em quase todos os processos é um retrocesso importante. O refluxo do processo egípcio, a divisão da Líbia, a labiríntica guerra civil síria, e mais recentemente, a expansão do Estado Islâmico sobre a Síria, Iraque e Líbia, com os bombardeios do imperialismo norte-americano e do Egito em represália, são os elementos fundamentais que marcam a mudança da primavera árabe.

No presente as massivas manifestações populares deram lugar a instauração de novas ditaduras, como no Egito, após o golpe do exército em julho de 2013, e que constitui o caso mais emblemático. Desde então, o governo chefiado pelo general Abdel Al-Sisi condenou à morte 680 membros e simpatizantes da Irmandade Muçulmana, e agora mais 183. Soldados e policiais mataram 1400 pessoas consideradas simpatizantes à Irmandade Muçulmana desde 2013, prenderam 15 mil pessoas, e 20 mil presidiários fizeram greve de fome em 2014 contra as condições sub-humanas em que vivem e a tortura nas prisões. O governo declarou uma verdadeira caça aos homossexuais. No quarto aniversário da queda de Mubarak dezenas de pessoas foram mortas. Enquanto isso absolve o ex-ditador Mubarak, e os responsáveis pela repressão às manifestações da Praça Tahrir em 2011. Além disso, o país atravessa a pior crise energética em décadas, pela crise da produção de gás. Como resultado seguem os altos índices de desemprego, os baixos salários, e as condições de submissão ao imperialismo. No país em que houve o primeiro registro de greve da história, durante o reinado do faraó Ramsés III, a Federação Geral dos Sindicatos que surgiu no calor do levante de 2011, negou-se a lutar pela legalização das greves.

Na Líbia, onde o imperialismo atuou com a OTAN para derrubar a ditadura de Kadafi, há uma divisão intensa do país em clãs e tribos. Existem dois governos desde agosto de 2014, um na região de Tobruk reconhecido pelo imperialismo e demais potências ocidentais, e outro aliado ao ex general de Kadafi, Halifa Heftar, que lidera a coligação Fajr Libya. Essa divisão ameaça a própria existência da Líbia como Estado unificado, e é um sintoma do caos em que o país está submetido. A economia do país segue devastada. Na Síria segue a labiríntica guerra civil que assola o país há pelo menos três anos, opondo a ditadura de Bashar Al Assad e uma miríade de 1500 organizações opositoras de direções burguesas. Tanto na Síria quanto na Líbia, a situação ganhou ainda mais complexidade com a expansão do Estado Islâmico.

O Estado Islâmico: expressão do retrocesso e resposta do imperialismo

O Estado Islâmico, organização reacionária de métodos fascistas, se originou no Iraque, após a guerra travada pelos Estados Unidos em 2003. Para além de se foi ou não armada e financiada por setores da CIA, como pretendem alguns analistas, o fato inconteste é que se originou da política do imperialismo na ocupação do Iraque, e é um elemento de expressão do retrocesso da primavera árabe.

Fundado em 2004 como um braço da Al-Qaeda, com quem rompeu depois, o Estado Islâmico é um produto da política dos Estados Unidos de constituir um governo fantoche xiita no Iraque, marginalizando os 5 milhões de sunitas do país. Essa política imperialista foi crescentemente adotada como uma tentativa de resposta à unidade expressa em 2004 entre xiitas e sunitas contra a ocupação imperialista, liderada pelo clérigo xiita Muqtada Al Sadr.

A cooptação dos xiitas para o governo arquitetado pelos Estados Unidos criou as condições para que setores sunitas descontentes passassem a ver em organizações como o Estado Islâmico uma resposta à sua situação, e fossem organizados por esse setor que compõe parte da decadente burguesia local, que se nutre da desmoralização dos jovens.

Mas foi com a guerra civil síria que o Estado Islâmico pôde encontrar condições para se expandir do Iraque. Seu autointitulado califado busca expandir o controle territorial que chegou a ter 40 mil quilômetros quadrados na fronteira entre o Iraque e a Síria, o que englobava cidades importantes de ambos os países, como Falujah e Raqqa. Após terem se enfrentado por um período, o Estado Islâmico e a Frente Al-Nusra, parte da Al Qaeda na Síria que fazia parte das organizações opositoras na guerra civil passaram a atuar em comum contra os curdos.

Mas, mesmo tendo origem sunita, o Estado Islâmico não hesita em assassinar e reprimir duramente os próprios sunitas que discordem de sua atuação. Nas regiões em que ocupa, dissemina o pavor, e um controle que desordena o tecido social e a economia locais. Mais estrategicamente, sua existência e disseminação, inclusive recrutando membros no interior dos países ocidentais e europeus, responde ao retrocesso da dinâmica popular nos levantamentos na Síria e Líbia, em que não se pôde configurar um processo autêntico de libertação nacional, e à ausência da classe trabalhadora como sujeito. Por outro lado, atende também a um erro de cálculo do próprio imperialismo norte-americano, cuja política de “divide e reinarás” no Iraque, aliada ao apoio na prática ao golpe no Egito contra a Irmandade Muçulmana terminou por enfraquecer as alas moderadas das organizações islâmicas, ajudou a criar as condições para o desenvolvimento do Estado Islâmico.

Aproveitando-se dessa situação, o imperialismo norte-americano e francês, que anunciou uma ofensiva reforçada após os atentados de Charlie Hebdo, vem protagonizando uma série de ataques às posições do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, seguida agora pelas forças militares egípcias que estão realizando uma ofensiva inclusive terrestre na Líbia às posições daquela organização, após o bárbaro assassinato de dezenas de trabalhadores egípcios em uma praia daquele país.

A Síria hoje se encontra, portanto, alvejada tanto pelos bombardeios dos Estados Unidos, que contabilizaram oficialmente 1600 mortos, como pela ação do Estado Islâmico, que acaba de decapitar 90 cristãos no noroeste do país. Evidentemente, os bombardeios realizados pelos Estados Unidos, e agora pelo Egito, buscam salvaguardar os interesses estratégicos de ambos os países, que constituem uma aliança regional cuja motivação nada tem em comum com a defesa da vida da parte da população que tem sofrido com a violenta opressão exercida pelo Estado Islâmico. O Egito busca resguardar seu papel regional, para inclusive se fortalecer internamente para prosseguir com a campanha contra a Irmandade Muçulmana.

A imprensa tem noticiado derrotas sofridas pelo Estado Islâmico. A mais importante foi a derrota imposta pela resistência curda tendo à frente as milícias do YPG em Kobane contra o Estado Islâmico apoiada pelos bombardeios dos Estados Unidos, que se conformou como uma vitória progressista, na medida em que há um componente de ação popular. Mas mesmo isso não pôde até agora promover uma reversão da dinâmica de conjunto.

Portanto, como foi assinalado em outros artigos, o conjunto desses fatores abriu distintos conflitos na região. Um primeiro que se reveste como um confronto entre sunitas e xiitas, e que opõem duas potências regionais, tendo o Irã do lado xiita e a Arábia Saudita do sunita. Uma guerra civil no Iraque, entre sunitas, xiitas e curdos, que envolve a luta pelo controle do petróleo. Uma guerra civil na Síria que envolve o regime de Assad em oposição a diversas organizações, muitas das quais financiadas pela Turquia, Arábia Saudita e Qatar. E, por fim, uma ofensiva imperialista liderada pelos Estados Unidos, e agora pela França, da qual participam países árabes, como o Egito, com o propósito de frear o Estado Islâmico. Tomados de conjunto, tais elementos transformaram o caráter do processo inicial marcado por manifestações massivas e populares.

Segue uma revolução?

Alguns analistas afirmam que a primavera árabe deu lugar a um inverno. Independente do acordo com a analogia com a primavera dos povos de 1848 e com a definição citada, apenas aqueles que buscam deformar a realidade para que essa caiba em seus esquemas previamente definidos, podem negar que há um retrocesso qualitativo da primavera árabe. Um dos representantes dessa posição segue sendo a LIT-PSTU. Apesar do desenvolvimento dos processos do Oriente Médio e Magreb negarem categoricamente suas definições, seguem afirmando que “há uma revolução em curso”. Para tal se utiliza da citação de Trotsky em sua grande obra A História da Revolução Russa quando esse define que “o traço característico mais indiscutível das revoluções é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos (...). A história das revoluções é para nós, acima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no governo de seus próprios destinos”.

Trotsky está debatendo a partir do processo que se concretizou como o maior feito histórico do proletariado, isto é, a tomada do poder pelos trabalhadores aliados aos camponeses russos, que compreendeu as revoluções de fevereiro e outubro de 1917.

É claríssimo como não se trata para Trotsky de uma “irrupção violenta” de qualquer tipo, mas da classe trabalhadora e do povo, que no calor de sua luta criam os organismos de sua auto-organização como foram os soviets. Isso, aliado à existência de uma direção revolucionária, consciente, e capaz de dotar de um programa essa irrupção violenta das massas, são condições fundamentais para que as massas assumam “o governo de seus próprios destinos”.

Fazendo um paralelo com a situação existente hoje caberia perguntar à LIT-PSTU se eles avaliam que as massas estão “avançando no governo dos seus próprios destinos” no Egito, Síria ou Líbia? Mesmo em Kobane, onde há uma característica mais popular na resistência, essa não aponta a se expandir, indicando uma dinâmica essencialmente defensiva.

A resposta que a LIT-PSTU oferecem a esse dilema é afirmar que a “revolução é um processo longo”, e que estaria passando apenas por uma “conjuntura de refluxo”.

Teoricamente, não se pode descartar como hipótese que a dinâmica de levantamentos populares retorne. Por exemplo, na revolução espanhola, que durou aproximadamente uma década, se deram vários momentos de refluxo, dentre os quais o mais importante foi o biênio negro. Essa designação indicou o momento em que governaram a Espanha os partidos da direita, aliados à direita católica organizada na CEDA e no Partido Agrário, que impuseram um momento de retrocesso à classe trabalhadora. Durante esse período, a coalizão de direita governante aboliu a reforma agrária iniciada anteriormente, anistiou os generais de direita que haviam tentado um golpe militar em 1932, e buscou reinstaurar o poder da Igreja, seriamente abalado pelas ações de massas. Ou seja, foi um refluxo dentro do processo revolucionário. Mas a classe trabalhadora e suas organizações se rebelaram contra isso, e protagonizaram diversos levantes e greves gerais, dos quais o mais importante foi a Comuna das Astúrias. A profundidade do processo revolucionário na classe trabalhadora e nos camponeses era tão grande, que esse momento de defensiva cedeu lugar para um novo ascenso de massas.

Na Síria, Líbia e no Egito a classe trabalhadora e suas organizações, ainda que de maneira distinta em cada lugar, não tiveram um protagonismo nem remotamente similar à revolução espanhola. Mesmo no Egito em que se trata de uma classe mais organizada, os trabalhadores atuaram, como a própria LIT-PSTU é obrigada a reconhecer, de maneira dissolvida, e suas greves, ainda que importantes, não se transformaram na ponta de lança das mobilizações. Não há sequer direções marxistas, ainda que vacilantes, que tenham ganhado expressão dentre as massas. O marxismo consiste na análise das condições concretas, e na elaboração de uma política justa para atuar na realidade. E essas indicam que a possibilidade do retorno das massas à cena encontra diversas dificuldades, que não podem ser simplesmente ignoradas.

Nesse sentido, a política da LIT-PSTU errou em todos os níveis. Primeiro ao negar a contradição da derrubada de Kadafi, não pela ação independente das massas, mas com a participação da OTAN. Depois em ignorar as diferenças entre uma guerra civil em que a classe trabalhadora está claramente organizada em um dos campos militares enfrentados, como foi espanhola, com uma de características labirínticas como a síria. Isso os levou a localizar-se acriticamente como parte da “oposição” síria, sem dar importância à ausência da classe trabalhadora organizada, e sem conseguir responder à presença crescente de forças como a Frente Al-Nusra e o próprio Estado Islâmico. E, por fim, com a escandalosa posição sobre como o exército recém içado ao poder pelo golpe de 2013 no Egito deveria reprimir a Irmandade Muçulmana. Para tentar defender essas posições, que foram uma a uma desmascaradas pela realidade, caracterizaram como “stalinistas” os que apontaram os seus equívocos.

A complexidade da situação aberta no Oriente Médio e Magreb, que segue com resultados ainda indefinidos, exige um balanço mais profundo que isso. Mas uma questão se confirmou. A necessidade de que sejam os trabalhadores e suas organizações a que se coloquem no centro da luta pela libertação da opressão imperialista, das burguesias locais a ela associada, responsável também pelo derramamento de sangue de seus próprios povos, e pela ascensão de aberrações como o Estado Islâmico. Defender isso claramente não é um dogmatismo. É apenas marxismo.

 
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