O projeto dos “1000 dias” é uma proposta de direitos mínimos à maternidade, apresentada pelo próprio Executivo como “carta de negociação” com os setores anti-direitos. Pretende-se que ele seja tratado conjuntamente com o projeto de legalização do aborto, como se aquelas que lutam pelo direito de decidir pudessem ser contra um auxílio (bem mínimo, por sinal) à maternidade de mulheres em situação de vulnerabilidade, no meio de uma pandemia e em muitos casos solteiras e desempregadas.
Apesar das intenções conciliadoras do governo, a iniciativa não foi engolida pelos setores conservadores a que se dirigia, e o final de semana foi marcado por uma mobilização nacional impulsionada pelos setores anti-direitos vinculados às cúpulas das igrejas evangélicas e católica. São setores que já se encontram no interior das bancadas dos partidos majoritários (a Frente de Todos e o Cambiemos), em instituições estatais e fortemente ligados a governadores e autoridades, evidenciando que a aprovação não virá das “negociações” que aconteçam dentro do parlamento, mas da força das mulheres organizadas e da mobilização nas ruas.
A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito se manifestou sobre o projeto: “é um socorro para mulheres de setores pobres que querem a maternidade. Não temos muito a dizer a não ser concordar. O que nos interessa é que o Estado garanta a saúde e a descriminalização das mulheres e pessoas gestantes que decidem não se tornarem mães ou não continuar uma gravidez. Que se respeite a decisão”.
Apesar da perspectiva de que a legalização ganhe a maioria dos votos nas comissões que participarão do debate, o resultado final da votação é outro assunto, porque nada é garantido dentro do Congresso. Os números mostram, a princípio, que o maior problema não estaria no Congresso, mas no Senado, onde estão os “dinossauros” que barraram a legalização em 2018 e os novos que foram incorporados desde então, integrantes tanto da Frente de Todos como do Cambiemos.
Comparativamente, também a nova redação do projeto de lei se mostra muito mais reacionária que a antiga, com pena de prisão de 3 meses a 1 ano para mulheres que abortarem após a 14ª semana e a imposição de um espaço de 10 dias entre a solicitação e a realização do aborto, abrindo amplo espaço para a mobilização dos reacionários.
As cúpulas das igrejas preparam o lobby parlamentar e buscam ganhar as ruas argentinas, um cenário que deve ser disputado pela maré verde não só para que seja lei, mas para que se garanta o cumprimento dela. Muito longe da estratégia do governismo, isso implica em avançar na separação (não na integração) das igrejas e do Estado. Essa é sem dúvida uma das tarefas que a derrota imposta em 2018 pelos dinossauros do Senado argentino deixou para a maré verde. O direito ao aborto na Argentina pode ser debatido no Congresso, mas só poderá ser arrancado nas ruas. Uma certeza tão válida para o país vizinho quanto para o movimento de mulheres no Brasil.
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