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ANÁLISE ELEIÇÕES EUA
A esperada vitória de Biden põe o mundo de Bolsonaro de cabeça para baixo
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

Pela tendência da contagem dos votos e a apuração dos resultados globais no Colégio Eleitoral, ainda sem os resultados finais Joe Biden parece emergir como o próximo presidente dos Estados Unidos.

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Enquanto publicamos essa análise, a contagem dos votos segue nos Estados Unidos, com a apuração das urnas restantes da Georgia, do Nevada, da Pensilvânia e do Arizona. A tendência dos votos por correio, oriundo das regiões urbanas tradicionalmente Democratas em cidades como Atlanta, Phoenix, Pittsburgh e Filadélfia, que estão sendo apurados agora nesses Estados, favorece Joe Biden. Levamos em conta a tendência atual de vitória eleitoral de Biden em base aos dados disponíveis nos meios de divulgação das apurações.

Pela tendência da contagem dos votos e a apuração dos resultados globais no Colégio Eleitoral, ainda sem os resultados finais Joe Biden parece emergir como o próximo presidente dos Estados Unidos. A derrota esperada de Donald Trump se deu numa disputa muito mais apertada do que convinha ao Partido Democrata. Esse partido manteve o controle da Câmara dos Representantes, ainda perdendo quatro cadeiras, mas a projeção é de derrota no Senado, que permaneceria em mãos Republicanas.

É um acontecimento de grande magnitude para o curso do capitalismo mundial, que viu Trump ser eleito nos EUA nascido do aprofundamento crise de autoridade estatal e da polarização social apoiada no estouro da crise de 2008. Não menos importante, o nacionalismo protecionista de Trump foi o reflexo nítido da decadência hegemônica do imperialismo ianque, que abandonava o papel de defensor da ordem globalizante neoliberal para assumir a figura de fator desestabilizante da desordem global pós-crise, mais agressivo no choque com competidores estratégicos, em primeiro lugar a China, e em outro nível a Rússia, além de tradicionais aliados como Alemanha e França.

A derrota de Trump não implica a resolução de nenhum dos problemas históricos que lhe deram origem. Mas indica uma mudança de proporções na situação do capitalismo mundial. Escrevendo desse lugar do mundo, é preciso de cara dizer que é uma derrota arrasadora para Bolsonaro e sua corte de extrema direita. Antecipando um elemento que retomarei adiante, trata-se de um revés que coloca no tabuleiro um tipo de isolamento ainda não experimentado por Bolsonaro, e o torna mais vulnerável no plano interno. Esse efeito da saída de Trump é muito superior que os efeitos das derrotas de Luis Camacho na Bolívia, e de Piñera no Chile (diante do plebiscito constitucional). O prório Bolsonaro reconheceu o baque, dizendo que "dessa vez perdemos".

Biden pode ter vencido, mas o trumpismo não foi derrotado

Mas vale a pena examinar a forma em que essa mudança se deu no processo eleitoral. O mito da “democracia norte-americana” vem caindo pelo próprio eixo: o direito de voto, que na prática não existe nem está previsto na Constituição de 1787 (ou nos Federalist Papers de Madison, Hamilton e Jay, de 1788) nem em qualquer emenda até hoje. Atrasos na contagem, bandas trumpistas armadas no Arizona impedindo a votação, questionamento das eleições como fraudulentas pelo próprio presidente e repressão contra manifestantes, como em Nova York e na Filadélfia, que exigem a contagem total dos votos: não se trata de um país do "mundo subdesenvolvido" como gostam os neoliberais, é nos EUA.

A enorme crise de legitimidade do regime político norte-americano, ao invés de ser mitigado nas eleições, apenas se aprofundou. O fato de não podermos confirmar o vencedor depois de três dias de contagem de votos é suficientemente expressivo.

Apesar de muitas projeções de que Biden venceria com margem confortável até a meia-noite do 3 de novembro, recuperando territórios em que Trump havia conquistado em 2016, as coisas se deram numa dinâmica política distinta. Mais uma vez, a resiliência de Trump e a capacidade persuasiva dos seus argumentos foram subestimados: não se viu uma “onda azul” que beneficiasse Biden através do país. Até a manhã do dia 4, apenas um swing state havia mudado de lado, passando dos Republicanos aos Democratas – Arizona. No decorrer da jornada, a duras penas, após Trump manter os Estados da Georgia, Carolina do Norte e Pensilvânia, Biden recuperou Wisconsin e Michigan, com a contabilização dos votos por correio nos centros urbanos. Não antes do dia 5 os Estados da Georgia e de Nevada, mostraram resultados que tiravam a liderança das mãos de Trump para Biden, uma tendência que segue na Pensilvânia. Isso o tornou capaz de vencer o pleito presidencial “na segunda prorrogação”, revogando qualquer sensação de tranquilidade que as pesquisas projetavam.

Biden fechará o pleito com provavelmente entre 271 e 306 delegados naquilo que podemos chamar de um dos mais antidemocráticos mecanismos eleitorais do mundo: o Colégio Eleitoral. Não é uma votação impressionante. É menos do que Barack Obama conseguiu em 2008 e 2012 (365 e 332, respectivamente), e pode ficar atrás de Donald Trump, que havia colhido 304 votos em 2016. Não se sabe se vencerá sequer a votação de George W. Bush em 2004, que recebeu 286 votos no Colégio Eleitoral (em 2000 havia vencido com apenas 271 votos). Assim, as condições de poder são drasticamente distintas das que os Democratas haviam acreditado. Não é o que os Democratas esperavam.

Essas circunstâncias impõem uma relação de forças mais desfavorável a Biden. Não precisamos ir mais longe do que o Senado norte-americano. Uma margem maior de vitória nas pesquisas projetavam grande chance dos Democratas, além de deter o controle da presidência e da Câmara, de selar seu controle no Senado. É praticamente impossível governar sem o controle do Congresso. Com Mitch McConnell e os Republicanos tendo maioria no Senado, a agenda de Biden precisaria, para prosperar, unificar todas as alas de seu fragmentado partido e ainda colher a simpatia de 10 senadores Republicanos. Obama sentiu na pele o freio que essa aritmética impôs a sua política.

Talvez o maior fracasso de Biden consiste em que as circunstâncias de sua vitória estão muito aquém de enfraquecer o controle de Trump sobre o Partido Republicano. A “destrumpificação” do Grand Old Party exigia um rechaço massivo do atual presidente nas urnas. Longe disso, Trump esteve muito perto de vencer a eleição, tendo mais de 55 milhões de votos, assegurando para si a simpatia de metade do país. Isso enfraquece a ala anti-Trump no interior dos Republicanos, e solidifica o trumpismo como corrente política de extrema direita que substitui o Tea Party como “oráculo” das bandas supremacistas brancas nos Estados Unidos. De todo modo, a batalha interna pela liderança do Partido Republicano será selvagem.

Trump seguirá sendo um ator chave, e não está descartado que esteja já se preparando para 2024.

Isso colaborou com a permanência e fortalecimento do trumpismo como corrente política, apesar dos 230 mil mortos por coronavírus, a terrível crise econômica, os escândalos constantes de toda ordem, as aberrações como o encarceramento de crianças imigrantes, e o giro de Wall Street no patrocínio da campanha de Biden. A retórica de Trump para sua base de votantes brancos das zonas rurais e de algumas comunidades suburbanas teve êxito em convencer de que as agruras sofridas podem ser remediadas com xenofobia, racismo e ódio às grandes cidades. Biden não reverteu esse sentimento, e apesar de um claro giro à esquerda da juventude e de setores operários, a base de direita e de extrema direita não se enfraqueceu; mais ainda, teve ganhos. Biden apenas consegue no sufoco um eventual triunfo, e em boa medida porque os votantes Republicanos se dividiram na eleição.

É a tinta de desmoralização para os Democratas, num pleito em que Biden retratava a ilusão pouco atraente de um retorno ao “extremo centro” impossível em meio à histórica crise capitalista. Biden poderá emergir como um governo débil que terá de lidar com uma enorme fragmentação social e política, um enfraquecimento no Congresso e uma Corte Suprema trumpista.

Acima da própria disputa entre Trump e Biden, as eleições mostram que o neoliberalismo do establishment políticos dos Estados Unidos não atrai grandes massas da população. Essa ausência de hegemonia do discurso de “tranquilidade neoliberal” das décadas anteriores – muito em tom com as rupturas no terreno da economia, da geopolítica e da luta de classes – torna as coisas muito mais instáveis.
O certo é que o palco está montado para um governo dividido em 2021 – a presidência e Câmara Democratas, e o Senado Republicano – num ano que carregará nas costas uma queda de 6.5% do PIB projetado pelo FMI, alto desemprego, e a divisão em ambos os partidos centrais do regime bipartidário.

Trump penalizado em eleições sem entusiasmo por Biden

Com os dados disponíveis até então essas eleições bateram um recorde de comparecimento às urnas – quase 70% da população habilitada para votar compareceu à votação. Mas o caudal de votos aumentou tanto para Biden como para Trump, neutralizando a hipótese que boa parte da imprensa e das agências de pesquisa divulgavam, sobre um benefício unilateral ao Partido Democrata fruto do aumento do número de votantes. Daí resulta o alargamento da base eleitoral tanto de Democratas e Republicanos, que impediu uma rejeição contundente de Trump. A votação popular foi apertada, provavelmente com uma margem de vantagem menor para Biden do que foi para Hillary Clinton em 2016.

Assim, Trump foi castigado pelo voto da comunidade negra, que segundo o The New York Times deu 86% dos seus sufrágios a Biden (os negros representaram 12% do total de votantes), pelos votos latinos (Trump melhorou o suficiente para vencer Flórida e Ohio, mas recebeu apenas 32% do total do voto hispânico), além de ter sido preterido pelo voto feminino (Biden recebeu quase 60% dos sufrágios das mulheres).

Trump manteve vantagem no voto branco das regiões e Estados rurais, mas por uma margem menor que em 2016. Como vemos na pesquisa de urnas feita pela CNN, a conquista de votos nos subúrbios, e dos setores brancos sem diploma de Estados como Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, parece ter sido uma das viradas mais chamativas para os Democratas: em 2016, Trump venceu com 31% de margem no voto dos homens brancos contra Hillary, mas a margem atual contra Biden foi de apenas 18% (no setor de brancos sem diploma, Trump perdeu 11% em relação a 2016), ainda que tenha aumentado ligeiramente sua porcentagem em mulheres brancas.

Na batalha por ver quem seria o mais repudiado, ou o que geraria menos entusiasmo, o ano de 2020 cobrou um preço mais alto de Trump.
Apesar das tendências atuais que beneficiam um triunfo de Biden, por boa parte do pleito presidencial era Trump quem emergia como o mais provável para assegurar a reeleição. A apuração dos resultados na Flórida mostraram resultados pífios de Biden na comunidade hispânica, em centros urbanos como o distrito de Miami. Com uma população de 2.7 milhões de pessoas, esse distrito é composto por 70% de latinos (que incluem também os “gusanos”, proprietários milionários cubanos e venezuelanos, base social reacionária do Partido Republicano e de Trump). A péssima relação de Biden e dos Democratas com os latinos, golpeados pela crise econômica, a pandemia e o desemprego, o tornou incapaz de capitalizar o ódio dessa comunidade por Trump em todo o país. Biden conseguiu ter pior desempenho que Hillary Clinton entre os latinos. Hillary Clinton obteve vantagem de 27% entre eleitores hispânicos na Flórida, diante de 8% para Biden. Na Geórgia, Hillary obteve 40%, sendo apenas 25% para Biden; em Ohio, Hillary obteve 41%, enquanto Biden obteve soment 24%. Esse fator o fez perder o Estado de Ohio para Trump. Não espanta que as políticas anti-migratórias da administração Obama-Biden, que entre 2008 e 2016 elevaram a níveis históricos o número de imigrantes deportados, tenham sido lembradas por trabalhadores e jovens imigrantes, que não sentem nenhum afeto particular pelos Democratas.

Por isso, um dos aspectos notáveis das eleições é que Trump ganhou terreno na comunidade latina, mitigando os efeitos negativos sobre o Partido Republicano que a mudança demográfica vem estabelecendo em Estados chave como a Geórgia, o Arizona, a Carolina do Norte e o Texas. Assim também, apesar de ficar muito atrás na comunidade negra, avançou em relação a 2016. Se existe um símbolo do caráter miserável do Partido Democrata, é esse, o que torna ainda mais urgente a construção de uma organização socialista revolucionária no país.

A conquista de Ohio por Trump, que colheu parte do voto negro e da classe operária branca desse Estado do meio-oeste, junto da Flórida, abriu uma margem importante para o atual presidente nas primeiras horas da apuração.

O ponto de inflexão da noite do dia 3 – e a única boa notícia para Biden até então – foi a conquista do Arizona, Estado sulista que tradicionalmente se alinhava aos Republicanos, cuja população foi duramente castigada pelas políticas xenófobas de Trump (como o escândalo da separação de filhos de imigrantes de suas famílias, presos em gaiolas em distintos centros de detenção na fronteira) e pelo desemprego (no Arizona, a desocupação saltou de 4% em abril de 2019 para 12.3% em abril de 2020). A conquista do Arizona pelos Democratas irritou Trump, ao ponto de levá-lo na madrugada a fazer um pronunciamento exigindo que se cessasse a contagem dos votos (roubo direto dos votos) e autoproclamando-se vencedor do pleito por intervenção da Corte Suprema.

A partir daí, com as projeções de vantagem Democrata em Arizona, e a contagem dos votos por correio dos centros urbanos de importantes Estados do Rust Belt, como Michigan e Wisconsin, Biden conseguiu recuperar uma série difícil de Estados necessários no Colégio Eleitoral. Desde o início das eleições, para além da escola de erros estatísticos nas pesquisas eleitorais, sabia-se que três Estados definiriam o vencedor: Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. São regiões do velho cinturão industrial norte-americano, com um grande contingente de brancos sem diploma, de trabalhadores brancos penalizados pela desindustrialização de cidades emblemáticas como Detroit e Pittsburgh, jovens negros e latinos desempregados ou em trabalhos precários, os “perdedores da globalização” na crise mundial. Apesar de serem tradicionalmente Estados “azuis” (votantes nos Democratas), haviam votado massivamente em Trump em 2016, em função de suas promessas de melhorias econômicas e o retorno das indústrias ao território estadunidense. Trump não apenas descumpriu, previsivelmente, a promessa do retorno das multinacionais imperialistas que exploram mão de obra barata na Ásia, na América Latina e na África, mas carregou nas costas os efeitos dramáticos da crise econômica em meio à pandemia do coronavírus. De 2019 a 2020, a taxa de desemprego nos EUA aumentou de 3.5% para mais de 13%, golpeando especialmente as comunidades negras e latinas, e também a classe trabalhadora branca do Rust Belt. Ainda que preservasse Ohio, Trump perdeu com margem pequena em Michigan e Wisconsin, e a tendência da Pensilvânia é que siga o mesmo caminho.

No terreno da luta de classes, para a derrota de Trump teve importância crucial o peso da juventude que protagonizou as maiores manifestações da história dos EUA, com o Black Lives Matter, em repúdio ao racismo policial após o assassinato de George Floyd. Estas manifestações, que levaram de 15 a 26 milhões de pessoas às ruas de todo o país por mais de um mês, tiveram de se enfrentar diretamente com a retórica irascível de Trump, que se apoiava em bandas de choque supremacistas brancas nos atos contra o Black Lives Matter. Não seria um quadro verdadeiro se não destacássemos que o Partido Democrata, com seus governadores (como em Nova York, Minnesota e Wisconsin), também foi responsável pela repressão dessa juventude que abria caminho nas ruas contra o racismo sistêmico do qual Biden e o establishment bipartidário imperialista são fiadores históricos. Entre dois racistas, habituados a sacrificar as vidas negras no altar do império capitalista, foi Trump quem pagou mais caro por sua política virulentamente orientada a atacar os manifestantes, junto aos Proud Boys e grupos de extrema direita.

Podemos afirmar sem receio que a enorme crise de legitimidade estatal nos Estados Unidos, fruto das consequências não resolvidas da crise mundial de 2008, se expressou no rechaço à figura de Biden e sua demagogia noventista de “retorno à tranquilidade” da globalização imperialista. As manifestações de polarização política e social, à direita com o trumpismo e à esquerda com a juventude que simpatiza com a ideia do socialismo (e que levou uma camada de jovens deputados negros à Câmara dos Representantes, além da legalização da maconha em Estados como Arizona e Dakota do Sul), vão gerar novos conflitos políticos na administração Biden. Mais ainda considerando que essas eleições mostraram como nunca a decadência hegemônica do imperialismo norte-americano.

Realinhamentos

Não há sinais, na vitória de Biden, de um tipo de realinhamento de distintos grupos sociais como havia ocorrido, em favor dos Republicanos, com Ronald Reagan em 1980 (quando venceu Jimmy Carter), ou em favor dos Democratas, quando Bill Clinton foi eleito em 1992 derrotando George H. W. Bush, e mesmo quando Obama conseguindo triunfar contra George W. Bush em 2008. Segundo o site Politico.com, no ilustrativo título “Biden está ferrado ainda que ganhe”, apesar da composição de voto de Biden ser mais multiétnica que a de Trump, o Democrata perdeu terreno entre negros e latinos, como mencionei acima, tanto pelo histórico de políticas anti-migratórias e racistas do Partido Democrata, quanto pelo fato de que a plataforma de Biden se resumiu a contrapor-se basicamente ao Republicano. A campanha bidenista sempre foi um referendo sobre o mandato de Trump. Adequando seu programa direitista ao gosto da ala anti-Trump do Partido Republicano, a fim de atrair figuras atrozes como George W. Bush e Colin Powell, Joe Biden não tinha nada a oferecer aos trabalhadores, negros e latinos, mulheres e jovens, senão promessas vagamente progressistas em comparação à plataforma trumpista.

Não absorveu nenhum dos pontos programáticos de Bernie Sanders, que após dar novo fôlego ao imperialismo Democrata foi empurrado à direita, ao apoiar Biden depois de seu fracasso no processo de nomeação. Deixado a si mesmo, Biden gera menos empatia que um quadro de Romero Brito. Isso porque Biden não é nem nunca foi qualquer alternativa para "derrotar Trump". Representa a aposta do establishment bipartidário imperialista para relegitimar as instituições norte-americanas. Biden tem um longo currículo de políticas segregacionistas no Senado desde a década de 1970, e é autor da Crime Bill de 1994, que incrementou a política de encarceramento em massa dos negros desde a administração Clinton. Foi parte direta das intervenções imperialistas de Barack Obama no Oriente Médio, sendo o vice do presidente apelidado de “senhor dos drones”, responsável por guerras e intervenções no Iraque, na Síria, na Líbia, no Iêmen, no Afeganistão, lembrado também na América Latina pela legalização dos golpes em Honduras e no Paraguai. Na posição de vice, traz consigo Kamala Harris, atual senadora pela California, e que nesse Estado é reconhecida pela “mão dura” junto à polícia e por aumentar exponencialmente a perseguição e encarceramento dos negros.

Oferecendo nada mais que neoliberalismo “requentado” dos anos 1990, Biden se viu desinflado nas urnas. Fugiu do debate sobre a situação econômica dos EUA, que foi o principal interesse apontado pelos votantes, seguido do tema da desigualdade racial (a pandemia perdia de muito desses dois temas). Biden repudiou propostas que tem muito apelo no público trabalhador e jovem norte-americano, como um sistema de saúde universal e gratuito (o Medicare for All é aprovado por 69% das pessoas, segundo o The Hill), o cancelamento das dívidas estudantis, o aumento do salário mínimo para US$15 a hora. Todas propostas (abandonadas pelo próprio Bernie Sanders em nome de submeter-se ao establishment) que Biden rechaçou em nome da sacrossanta propriedade capitalista. Nem falar o tema do desfinanciamento do aparato repressivo racista, levantado nas ruas e que Biden protege como uma das pérolas da “democracia dos magnatas” nos EUA.

Longe de fechar as brechas da crise política e social, o governo de Biden deixará um amplo espaço de esquerda de jovens, trabalhadores, negros e latinos que se consideram “socialistas”, e foram a base do sanderismo e do fenômeno anti-racista e anti-policial. Trata-se de um terreno fértil para a construção de uma esquerda socialista e revolucionária que combate todo o regime bipartidário imperialista, algo que nossos companheiros do Left Voice discutem abertamente com a vanguarda norteamericana.

E como fica Bolsonaro?

Apenas algumas pinceladas iniciais sobre esse tema, que merece detida reflexão. É evidente que a derrota de Trump é o mais duro golpe sofrido por Bolsonaro desde sua ascensão ao poder em 2019. Toda a política, interna e externa, de Bolsonaro esteve de uma forma ou de outra vinculada à linha trumpista como baluarte da “Internacional Direitista”. Lamber as botas de Trump era um salvo conduto que Bolsonaro usava para granjear segurança a si mesmo, ainda que do ponto de vista das relações econômicas e comerciais entre Brasil e EUA essa submissão reptiliana não tenha servido para nada.

Sem Trump na Casa Branca, Bolsonaro fica órfão de seu pilar de sustentação e consideravelmente mais vulnerável no plano interno. Esse isolamento fica ressaltado no cenário regional latinoamericano, com os reveses políticos que Bolsonaro amargou na Bolívia e no Chile, tendo de se haver ainda com as mobilizações contra a violência policial na Colômbia, as manifestações na Costa Rica contra o FMI, assim como os protestos contra os ajustes neoliberais no Equador. Todos sinais, ademais, do debilitamento da política agressiva imperialista na região, parte de um giro mais geral com efeitos prejudiciais sobre a extrema direita, impossíveis de não serem sentidos por Bolsonaro.

A administração Biden não terá com Bolsonaro as mesmas relações que Trump. Biden rechaçou a tentativa de contato da equipe de Bolsonaro – que apoiou abertamente Trump nas eleições – e já ameaçou o Brasil de sanções econômicas caso siga promovendo a destruição da Amazônia e do Pantanal, algo que, para além do cinismo imperialista, incomodou profundamente Bolsonaro, e em certa medida Mourão, que é presidente do Conselho Nacional da Amazônia. Dois ministros já entram na linha de fogo: Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e o chanceler Ernesto Araújo. Junto com Damares Alves, são frutos legítimos do trumpismo, e dificilmente teriam boa relação com a nova administração. Para efeitos de humilhação do governo brasileiro, Biden poderia sem custos exigir a cabeça dessas peças preciosas do bolsonarismo. Economicamente, as intenções de acordo comercial com os EUA, já inaplicáveis durante o governo Trump, tendem a serem deixadas de lado pelos Democratas, que poderiam chantagear o setor agropecuário brasileiro (prejudicando a exportação de grãos e carnes para a Europa, e para os EUA) em troca de concessões.

Apesar das genuflexões de Bolsonaro, as relações econômicas com Washington diminuíram no último período. O comércio entre Brasil e EUA neste ano, entre os meses de janeiro e setembro, foi 25% menor que em 2019. Com US$ 33,4 bilhões em trocas comerciais, foi o menor valor dos últimos 11 anos, de acordo com o Monitor do Comércio Brasil-EUA, da Câmara Americana de Comércio no Brasil. As importações brasileiras dos EUA entre janeiro e setembro caíram 18,8%, enquanto as exportações recuaram 31,5% em relação ao mesmo período do ano passado. O déficit brasileiro em relação aos EUA é de US$ 3 bilhões até agora, e a projeção da Amcham é que feche o ano entre US$ 2,4 e US$ 2,8 bilhões. Contrasta com a dependência do Brasil com a China. A China respondeu por 40% das exportações agrícolas brasileiras no primeiro semestre de 2020, segundo dados do governo, e a receita das exportações do agronegócio subiu quase 10% quando comparado o primeiro semestre de 2019 com o de 2020, passando de US$ 47,08 bilhões para US$ 51,63 bilhões. De janeiro a junho deste ano, foram gerados US$ 20,5 bilhões com as vendas de produtos agrícolas para os chineses.

A importância da relação comercial com a China nunca foi tão decisiva. O peso da China na pauta agrícola brasileira é tão expressivo que as exportações para o país asiático foram superiores em US$ 5 bilhões à soma da receita gerada com vendas externas para União Europeia, América do Norte, Oriente Médio, América do Sul e África.

É muito provável que a disputa tecnológica entre EUA e China ganhe seus firmes capítulos brasileiros. Tal como Trump, Biden, a fim de impedir o avanço da China na América Latina, vai buscar negociar o veto do Planalto ao mais óbvio desafio tecnológico chinês: o 5G da Huawei. Uma combinação de concessões e chantagens pode entrar em jogo. Nesse caso, como se portaria Mourão, que se habituou a choques com Bolsonaro em defesa da entrada da China no Brasil?

As possibilidades estão abertas, no novo ambiente acrimonioso entre os países. Internamente, já deixei notar anteriormente que Bolsonaro tende a ficar mais dependente do Centrão, que não perderá a oportunidade de engolfar o governo federal e exigir todo tipo de cargos de benefícios para permanecer ao seu lado diante das dificuldades da crise, do fim do auxílio emergencial, e do gosto amargo das novas botas a lamber. As dificuldades de 2021, com o agravamento da crise econômica - que prevê queda no PIB brasileiro de pelo menos 4.4% este ano - e o fim do auxílio emergencial que colocaria, segundo a FGV, um terço da população de volta na linha de pobreza, acalentando cenários de luta de classes: tudo isso, num mundo sem Trump e com parcos ganhos nas eleições municipais, poderia deixar Bolsonaro ainda mais atado às vontades de um Centrão faminto que vai exigir sua paga com juros.

Os militares brasileiros, estando em atritos com Bolsonaro como se viu na entrevista de Rêgo Barros, ex-portavoz do governo, tendem a aproveitar o momento para extrair algumas desforras do governo. Estando organicamente ligados ao aparato militar dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, e tendo comandante Craig Faller (de antecedente Democrata) como chefe do Comando Sul, o Exército brasileiro tratará de rapidamente adaptar-se aos novos tempos, e agarrar-se, no possível, nas oportunidades de atritos entre Biden e Bolsonaro para cavar benefícios próprios. Não quererão abandonar a política, tendo colhido com força as benesses do dinheiro público e dos cargos estatais.

Apesar de algumas cinzeladas nesse tema, “verde é a árvore da vida”. Há um considerável espaço para o imponderável, e a realidade deverá correr o seu próprio curso. Escusado é dizer que, do ponto de vista de classe, Biden e Bolsonaro defendem os mesmos interesses estratégicos dos capitalistas contra a classe trabalhadora. Nos Estados Unidos como no Brasil, nossa tarefa é a preparação com uma política socialista e revolucionária, anti-imperialista, para enfrentar com a força da nossa autoorganização todas as políticas dos EUA e dos seus capachos, que no Brasil são Bolsonaro, Mourão e os militares, e todo o regime do golpe institucional (STF, Congresso e governadores). Isso só pode ser feito com total independência política da conciliação de classes do PT, que influencia diversas organizações, inclusive da esquerda, a nessas eleições cometer o erro que querer administrar obedientemente o regime do golpe institucional.

 
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