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LITERATURA: CONTO
Experimento surrealista 1
Afonso Machado
Campinas
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Imagem: Salvador Dalí. 1944. Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de Acordar

Nota explicativa do autor:
O texto que segue foi redigido e publicado no ano de 2006 em pequenos periódicos literários. Esta é a segunda versão, com pequenas modificações em relação á primeira. A obra pertence a um período da minha produção em que eu estava profundamente influenciado pelas ideias do escritor francês André Breton (1896-1966). Evidentemente que ainda reivindico o pensamento surrealista, embora como escritor marxista venho me concentrado hoje em dia mais propriamente nas representações objetivas da história da luta de classes. A meu ver não existe, do ponto de vista revolucionário, nenhuma contradição. Mas por que publicar também aqui meus escritos surrealistas? Penso que diante do conservadorismo reinante, da caretice que tomou conta do Brasil, este (e outros textos surrealistas que serão intercalados nesta coluna com contos de temática social/política) cumprem um papel de antítese, de negação da cultura dominante. Isto reafirma o que venho defendendo há anos em textos teóricos: a arte política e a revolta do espírito atuam dialeticamente enquanto dimensões culturais da Revolução permanente.

CARTA AO TIGRE DENTE DE SABRE

A parede azul rodopia dentro da jaula: eis o momento de revelar os miolos das palavras a você, velho amigo... Vós sois o antigo guardião do bosque, o habitante da tempestade em que brotam sons de violino, folhas secas e a desconhecida mulher que amo. Ela está num colo entrecortado de nuvens e em cubos vermelhos de sangue. Sabeis que a loucura veste a sua melhor boca para mim, por isso guarde sua língua de penas dentro do bolso de pele agora!

As feridas colhidas nos pés de café ainda desembocam naquele varal : o supremo esconderijo das aranhas com pele de cobra e dos pelicanos devoradores de cérebros(sim, aqueles cérebros envolvidos em papel alumínio e abandonados na mesa verde daquele refeitório de lâmpadas alienígenas). Faço uso desta carta para que me informe o paradeiro deste século de najas fritas e de gatos petrificados nas raízes sonâmbulas do meu jardim...

Sei que estás bravo porque escondi os seios daquela mulher-garras dentro das flores amarelas. Peço para que reconsidere e para que lembre de nossa amizade como aquele rio de romanos decapitados e cheio de crianças que brincam de amarelinha no fundo da água. Era esplêndido quanto atirávamos frutas de cusparadas nos censores que possuíam orelhas na altura do umbigo. Éramos felizes quando pedíamos cigarros mágicos para sombras em curto circuito. Tenho uma curiosidade: por que sempre rosnava carinhosamente quando o travesti com cabelos de gomo de tangerina chupava as estrelas e atirava caroços de fogo nos telhados bem penteados?

Antes de tudo (do bosque, do banquete de rugas e das velhas sedentas por garrafas quebradas), será que a felicidade não era vento ou muro escurecido? Tenho um assunto a tratar : quando o acordo com as saracuras está selado e as borboletas apresentam-se como espelhos que nos informam sobre as bruxas em pedaços, por que ainda jorra-se vidro pelas florestas? Aqueles dedos que imprimem unhas de casulo apontam para o rosto de uma linda jovem que morreu durante a Guerra Civil Espanhola. Pois muito bem, como você me explica os coelhos traficantes com suas orelhas no lixo?

Velho amigo... Ela voltou a me assombrar. Não, não é aquela mulher com sorriso de abóbora e cabelos de areia. Estou falando “ dela “. Colhendo os aromas da morte num velho chapéu, esta mulher me surpreende dizendo:

"Lembra quando invadi a sua casa durante a noite? Você disse que tinha se esquecido de que nasceu, então resolvi lhe dar um tiro no peito... Você me perseguiu a noite inteira buscando lambretas na lua. Pediu aos galhos da arvore seca para que a tartaruga não devorasse o meu rosto. Mas por que tudo isto, meu querido? Você sabe que eu sou uma atriz e que tenho pianos no nariz e jabuticabas do alvorecer..."

O que você acha amigo? Devo procura-la novamente? Não sei, é que não consigo largar os espinhos da minha barba. Estou certo de que devo procurar a minha amada em seu bosque. Ela foi vista subindo a árvore numa van. É fato? Tigre: peça para ela tomar cuidado com a Guerra do Paraguai no meio do pátio sujo. Aonde ela está? Preciso que me diga... Só sei que atrás do véu da noite ela esconde um beijo dentro do útero de dois braços que me farão nascer três vezes novamente.

Novidades: tenho visto alguns amigos. Ao caminhar com uma folha de alface na testa, adentrei pela granja que abrigava felinos. Um leão cantarolava um velho samba, enquanto que as panteras, sempre lascivas, se masturbavam junto com as jaguatiricas. Uma velha berrando com idiomas de sino me expulsou de lá (pode isso?). Tive que me mandar pelo chão molhado, cujo o barro relinchava no meu calcanhar.

Neste instante desço a praça que usa a máscara de uma caverna. No meio da fonte, sentada sobre uma vitória régia, uma pantera me observa com olhos de giz de cera. No buraco central do antigo jequitibá, ouço pessoas cochichando e o trotar de cavalos que são repolhos com manteiga. Não sei mais o que dizer para os percevejos que habitam as golas das minhas camisas e se disfarçam de azeitona, catarro e olho de peixe. Por que ainda choramos diante da pia vermelha? As estátuas voltaram a ficar mudas.

Sabe tigre, acho que o momento está próximo. A minha amada vai me pedir para entrar pelos olhos dela e descobrir numa ilha de vitrines o amor que me reconciliará com o cosmos.

Envie -me uma resposta com espelhos, beija flores e sorvete de milho verde. Aguardo uma carta assinada com garras e enviadas através da onça pintada que caminha de um lado para o outro até que o sol morra. Mande-me notícias dos pântanos e dos fantasmas que adestram lobos. Despeço-me aqui com cordas de violão que se desmancham por jardins infinitos.

PS: Eu não choro mais a morte dos marimbondos

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