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Notas sobre o ataque ao direito ao aborto no Brasil
Rita Frau Cardia
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Recentemente o jornal Folha de São Paulo publicou uma reportagem onde revela que a ministra Damares Alves foi a responsável pelo vazamento de dados da menina de 10 anos, vítima de estupro por um familiar. A criança ao realizar o aborto garantido pela lei, foi recebida no hospital por fundamentalistas religiosos inflamados por Sara Winter, sob os gritos de assassina. Essa é a cara reacionária do governo Bolsonaro, que escolheu as mulheres como um dos principais alvos para ataques econômicos e de todo tipo e para seguir impondo o controle dos corpos das mulheres e à sexualidade para reprodução. Tudo isso ocorreu próximo do dia 28 de setembro, dia Latino Americano e Caribenho pela Legalização do Aborto, é tradicionalmente reconhecido pelo movimento feminista como um dia de luta.

A América Latina é umas das regiões do mundo onde a legislação a respeito do aborto é extremamente restritiva. Se realizam aproximadamente 6,5 milhões de abortos ao ano e a criminalização se traduz em 760 mil mulheres que sofrem com complicações decorrentes de abortos inseguros por ano. Seguramente na pandemia piorou esse cenário com o menor acesso ao sistema público de saúde. Os únicos países da América Latina em que a interrupção voluntária de gravidez não está criminalizada são Cuba, Porto Rico, Guiana e no Uruguai. Existem países em que está proibido em todas as situações, como na República Dominicana, no Haiti, Nicarágua. E países como o Brasil que permite em alguns casos, como risco de vida pra mulher, em casos de fetos anencéfalos e em casos de estupros. No Brasil isso se aprofunda em um regime marcado pelo golpe de 2016, que abre um capítulo de elevação do autoritarismo, e se aprofunda com Bolsonaro. Mas que também tem raízes profundas no capitalismo, que se vale da opressão às mulheres.

As raízes capitalistas da opressão às mulheres

Apesar da opressão das mulheres não ter surgido com o capitalismo, ela adquire traços particulares sob esse modo de produção, fazendo do patriarcado um aliado fundamental para a exploração e manutenção desse sistema. Como dizia Friedrich Engels na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, a organização social de cada período específico foi determinada não somente pela divisão do trabalho, mas também pela forma da família. Ele mostra nessa obra como essa opressão histórica está diretamente vinculada à produção de excedentes (que passou a ser controlada pelos homens) e com o surgimento da propriedade privada. Um tema que não desenvolveremos agora mas que é fundamental para entender a partir da perspectiva marxista, como a abolição dos direitos maternos com o surgimento da família patriarcal e monogâmica foi o que Engels definiu como “a derrota mundial do sexo feminino”, pois ao homem ficava a responsabilidade do controle da casa e a mulher foi “degradada e reduzia à servidão”.

O capitalismo se baseia na exploração e opressão de milhões de indivíduos no planeta e introduziu as mulheres como parte de sua maquinaria de exploração. Engels ainda dizia que o capitalismo criou a possibilidade real de libertação das mulheres ao envolve-las diretamente na produção social mas criou uma contradição entre as esferas reprodutivas e produtivas.

Mesmo tendo introduzido as mulheres no mercado de trabalho, fazendo com que fossem questionados os mitos obscurantistas que reinavam no feudalismo que as condenavam a permanecerem exclusivamente no espaço privado da casa, o capitalismo estabeleceu as condições para explorá-las duplamente. Até hoje as mulheres têm salários menores que os homens, para também diminuir os salários do conjunto da classe trabalhadora.

O sistema capitalista atingiu um grau de desenvolvimento tecnológico que tornou possível a industrialização em um nível que poderia socializar as tarefas domésticas, e assim possibilitar restaurantes e lavanderias públicas. Entretanto isso não é interesse dos capitalistas e dos políticos burgueses, porque no trabalho doméstico não remunerado é onde está parte do lucro dos capitalistas se exime de pagar aos trabalhadores e às trabalhadoras pelas tarefas que correspondem à reprodução da vida e da própria força de trabalho, como a alimentação, roupa limpa, etc.

Por isso é funcional ao capitalismo manter a cultura patriarcal na sociedade, para tornar “natural” que as tarefas domésticas sejam responsabilidades das mulheres, fazendo com que haja sempre esse “roubo” dos capitalistas de maneira mascarada. E para isso também faz com que o Estado torne o controle dos corpos das mulheres necessário, fazendo com que a maternidade, decorrente dessa lógica patriarcal, seja também um destino natural das mulheres.

A partir da perspectiva marxista revolucionária que um dos pilares fundamentais da visão bolchevique para o avanço da emancipação das mulheres, era a socialização das tarefas domésticas. Lênin em 1919 escreveu o texto “A Contribuição da Mulher na Construção do Socialismo”, em que diz que:

A mulher, não obstante todas as leis libertadoras, continua uma escrava doméstica, porque é oprimida, sufocada, embrutecida, humilhada pela mesquinha economia doméstica, que a prende à cozinha, aos filhos e lhe consome as forças num trabalho bestialmente improdutivo, mesquinho, enervante, que embrutece e oprime. A verdadeira emancipação da mulher, o verdadeiro comunismo, só começará onde e quando comece a luta das massas (dirigida pelo proletariado, que detém o poder do Estado), contra a pequena economia doméstica ou melhor, onde comece a transformação em massa dessa economia na grande economia socialista.

Para manter as mulheres como um setor de segunda classe na exploração capitalista, foi fundamental a manutenção da maternidade como destino natural das mulheres, isso porque o casamento entre Capitalismo Patriarcal e Igreja cumpre o papel fundamental de controle dos corpos das mulheres.

Em 1869, o Papa Pio IX determinou que os embriões possuem uma alma desde o momento da concepção justificando com “provas” apresentadas nos primeiros microscópios da época. E por isso, a prática do aborto se tornou equivalente a um homicídio.

É justamente pra que a Igreja sobreviva ao novo modo de produção capitalista, que reforça o papel de submissão da mulher, e seu destino natural na maternidade, a verdadeira representação da Virgem Maria. Um casamento perfeito entre Igreja e Capitalismo patriarcal, que controla a sexualidade para a reprodução e que faz com que as mulheres sejam cidadãs de segunda classe para explorá-las duplamente.

E apesar de no capitalismo já existir condições científicas, médicas, sanitárias assim como métodos contraceptivos e anticoncepcionais, como as pílulas, ligações de trompas e a possibilidade do aborto seguro, ou seja, tudo que permitiria fazer com que as mulheres tenham controle dos próprios corpos e possam decidir pela maternidade, esse direito não é garantido, justamente por essa cumplicidade entre Igreja e Capitalismo como pilar fundamental da exploração capitalista.

O controle de corpos que servem como força de trabalho para esse sistema de exploração, transformados em mais uma mercadoria no mundo das mercadorias, corpos separados e alienados. Por isso manter a criminalização do aborto e a que não seja um direito garantido pelo Estado é tão fundamental aos setores reacionários que se dizem pró-vida e aos que governam para os capitalistas.

Os inimigos do direito ao aborto no Brasil

Ao pensar na Primavera Feminista ocorrida há alguns anos e as mobilizações de mulheres que se espalhavam pelo mundo e influenciava também o Brasil, com várias marchas de mulheres, nem parecia ser possível chegar na situação onde grupos contrários ao direito ao aborto estão encorajados para ir até a frente de um hospital impedir que uma criança de 10 anos interrompa uma gravidez resultante de uma violência sofrida por anos.

Mas quando a classe trabalhadora sofre derrotas isso também impacta as mulheres e seu ímpeto para luta, porque grande parte delas está hoje esmagada pelo desemprego, pela alta dos alimentos, cuidando dos prejuízos causados pela pandemia frente a falta de testes massivos, de uma organização racional da quarentena, o aumento da violência doméstica e também do trabalho doméstico.

E isso está ocorrendo sob um regime extremamente autoritário e militarizado fruto do golpe institucional, onde o STF com aval do Congresso e o apoio ativo dos militares, manipularam a eleição presidencial sequestrando o direito ao voto de milhões de brasileiros.

Bolsonaro se elegeu como fruto do golpe institucional e das eleições manipuladas, movimentando as bases conservadoras e reacionárias como uma contra resposta a força da luta das mulheres, negros e das LGBTs, buscando preservar as raízes patriarcais desse sistema em decadência.

O golpe institucional de 2016 estava a serviço de aprovar ataques aos trabalhadores de forma mais rápida e profunda do que os governos do PT eram capazes de fazer. Assim rifaram-se os direitos das mulheres em nome dos lucros capitalistas. A reforma trabalhista de Temer significou um aumento exponencial da precarização do trabalho, sobretudo das mulheres que ganham os menores salários e estão em postos de trabalho mais vulneráveis. A reforma da previdência de Bolsonaro, aprovada com a ajuda do golpista Rodrigo Maia significou aumentar a exploração, dificultando ao máximo o direito de se aposentar.

Esses ataques se relacionam diretamente aos ataques aos direitos reprodutivos das mulheres e ao aumento da violência patriarcal. Pois para aprovar essas reformas Bolsonaro e do centrão, se apoiaram na bancada evangélica formada por fundamentalistas como Marcos Feliciano ou Flordelis, cada dia mais fortalecida.

O STF e o judiciário também têm um papel importante no avanço do conservadorismo e dos ataques às mulheres. A justiça também foi responsável por colocar em risco a vida da menina de 10 anos ao demorar semanas para aprovar o procedimento que é garantido por lei.

Por isso a luta das mulheres por suas demandas, como o direito ao aborto não se faz apenas por combates parciais sem alterar a estrutura que sustenta esta situação reacionária. E também não pode estar separada da luta contra todos os ataques e reformas de Bolsonaro e o autoritarismo do regime contra trabalhadores. É para aprovar reformas como a da previdência e outros ataques que os políticos burgueses fazem suas negociatas que fortalecem a bancada evangélica rifando os direitos das mulheres.

Atacam o direito ao nosso corpo para atacar ainda mais os diretos das mulheres trabalhadoras, aumentar o controle do estado sobre seus corpos e sobre o seu trabalho, impondo a essas mulheres uma vida extremamente precária de cidadãs de segunda classe.

A estratégia da conciliação de classes e o direito ao aborto legal

A estratégia da conciliação de classes do PT nos 13 anos em que administrou o capitalismo, inclusive com Dilma à frente, mostrou que em nada pode avançar nos direitos das mulheres, pelo contrário. É inegável que Bolsonaro é reacionário no debate dos costumes e contra o direito ao aborto, mas o PT com a estratégia de conciliação de classe sempre fez acordos com as Igrejas e abriu espaço para esses mesmos setores reacionários que hoje estão na ofensiva contra o direito ao aborto.

Nas eleições de 1994 o PT já tinha votado em convenção a retirada do programa do direito ao aborto da campanha eleitoral do Lula para manter acordo com a Igreja Católica. Depois que o PT começou a governar o país, esses acordos foram só se aprofundando. A bancada conservadora já existia, mas 2007 foi um salto pra que as Igrejas católicas e Evangélicas atuassem como partido. Se instalaram 4 frentes parlamentares anti-legalização do aborto e foram usando a estratégia de reinstalação das frentes quando ia terminando as legislaturas.

O Acordo Brasil Vaticano de 2006 no governo Lula estabeleceu que pregava isenção fiscal para a Igreja Católica o ensino religioso nas escolas. Foi no primeiro mandato da Dilma também que abriu espaço para figuras como Marco Feliciano, autor de projetos como “Cura Gay” e o “Estatuto do Nascituro”, que assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos. Na “Carta ao povo de Deus” da Dilma se compromete a não mexer na legislação do aborto.

Mas o PT segue com sinalizações claras com alianças com setores que são inimigos das mulheres, como as alianças eleitorais que tem feito em algumas cidades com o PSL ou mesmo a votação a favor da isenção das dívidas tributárias as Igrejas com a Receita Federal. Essas chegam ao valor total de R$ 1 bilhão de anistia, que a candidata à prefeitura do Rio Benedita da Silva e mais 3 deputados federais do PT votaram a favor, junto com toda a bancada do PcdoB. O PSOL deveria colocar no centro da sua política nacional a bandeira da legalização do aborto para organizar uma forte mobilização, assim como nesse momento de eleições ser um espaço preparatório para uma grande campanha nacional.

Os limites da descriminalização e do possível

A descriminalização faz com que a prática do aborto deixe de ser um crime, ou seja significa que a mulher que recorra a esse procedimento não seja punida ou processada. Mas não passa a ser um direito para que as mulheres tenham acesso gratuito e seguro, porque mantem a dificuldade de acesso ao procedimento seguro que ainda permaneceria restrito às mulheres que podem pagar por clínicas clandestinas. A legalização, ao contrário, inclui descriminalizar o aborto mas vai além tornando a prática legal e garantida pelo Estado. Por isso demanda histórica do movimento de mulheres é luta pela legalização do aborto, para que seja um direito oferecido gratuitamente pelo SUS, como qualquer outro procedimento médico.

Não há “brechas” jurídicas que garantam nenhum dos nossos direitos. É necessário que seja lei e para isso é preciso impor com a força da mobilização. Entre Bolsonaro e Damares, um Congresso conservador e um STF golpista, o que se precisa é organizar a mobilização por esse direito, mas para isso é necessário ir além do que é possível nos marcos desse regime.

O debate sobre descriminalização do aborto ganhou repercussão em 2018 por causa de uma decisão da 1ª turma do STF que considerou que não era crime o aborto até 3 meses de gestação, num processo específico de 2016 onde 5 pessoas do Rio de Janeiro estavam sendo acusadas. O PSOL se apoiou nessa decisão para protocolar no STF um pedido de descriminalização. Na época, as mulheres do PSOL diziam que a descriminalização era mais possível de ser conquistada e que seria um avanço, então propunham ao movimento de mulheres lutar pelo que era possível.

O problema dessa lógica é pautar a luta das mulheres pelo que é possível, pois os direitos das mulheres ao longo da história sempre forram arrancados com organização e luta. E neste caso concreto, com o STF que construiu o golpe, nada mais do que do que a ilusão de que é era possível nos marcos de um regime golpista. Essa estratégia orienta o movimento de mulheres a confiar nas instituições machistas e anti-operárias no marco do regime autoritário esvaziando de conteúdo a luta pela legalização pela mobilização e nas ruas.

Então, não se trata de uma questão de considerar ou não a descriminalização um avanço. Obviamente qualquer mulher diria que é um avanço, pois a criminalização demonstra o violento controle do Estado sobre o corpo das mulheres e o tamanho do seu descaso frente ao número de mortes maternas evitáveis. A questão fundamental é: pra onde vamos dirigir nossas forças? Para uma luta que rebaixa a luta histórica das mulheres pelo direito ao aborto e legitimar esse regime que ataca nossa classe, retira direitos democráticos mais mínimos?

Aborto e Igreja

Está claro que os setores que se dizem “pró-vida” são os que fecham os olhos para a morte e mutilações das mulheres. São também os que apoiam medidas como a do governo Trump que esterilizou mulheres imigrantes sem seu consentimento. Esses fundamentalistas dizem proteger as crianças contra a "ideologia de gênero" nas escolas, perseguindo os professores e impedindo a educação sexual, mas para eles a vida de uma criança de 10 anos não significa nada. Enquanto figuras como o pastor Silas Malafaia chegam a afirmar que “pior que o estupro é o assassinato”, a gravidez precoce segue sendo a maior causa de morte de adolescentes no mundo. A criança de 10 anos poderia ter morrido se mantivesse a gravidez, e os defensores “da vida” a hostilizaram gritando assassina. Damares chegou a dizer, “mais duas semanas poderia ter sido feita uma cirurgia cesárea nessa menina, tirar a criança, se sobreviver, sobreviveu. Se não, teve uma morte digna”

Na história desde séculos passados as mulheres interrompem voluntariamente a gravidez de múltiplas maneiras, mesmo sabendo que colocam em risco suas próprias vidas. Por isso a pergunta que se deve fazer não é se somos a favor ou contra o aborto, porque ele acontece independente da opinião individual de cada um. Pode ter instituições e pessoas a favor ou contra, mas o aborto é um fato inegável porque quando as mulheres não querem ou não podem continuar com a gravidez, elas não seguem princípios, códigos ou instituições legais, políticas ou religiosas.

A professora da UNB Débora Diniz, uma das maiores pesquisadoras do tema no Brasil, está à frente da Pesquisa Nacional do Aborto, e mostra um dado de 2015 que 1.300 mulheres por dia — quase uma por minuto — arriscaram a vida para interromper uma gestação ilegalmente no Brasil. Dessas, 56% eram católicas e 25% evangélicas ou protestantes. Não se trata de debater a fé das pessoas e sim que a Igreja não se meta no Estado e não imponha seus princípios baseados no patriarcado sobre os corpos das mulheres. Quem não quiser abortar, não aborta, mas esse é um direito que deveria ser garantido pelo Estado de maneira segura e gratuita.

Não há qualquer coerência quanto à defesa da vida no regime golpista brasileiro. É evidente que criminalizar o direito ao aborto nunca se tratou de o Estado defender a vida. O aborto é a quarta causa de mortes maternas no Brasil, atingindo principalmente as mulheres negras, que são três a cada quatro casos de mortes por abortos clandestinos. Trata-se de uma questão urgente de saúde pública. É preciso superar o viés moral e religioso de um Estado supostamente laico, mas que tem aprofundado sua relação com as Igrejas e com os setores mais conservadores.

 
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