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DOSSIÊ 28S: 2020
A portaria antiaborto bolsonarista e a realidade das mulheres no Nordeste
Cristina Santos
Recife | @crisantosss
Janaina Freire, de Serra Talhada em Pernambuco

No dia 28 de agosto, há exatamente um mês do Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pelo Direito ao Aborto, o Ministério da Saúde, comandado, até então, interinamente pelo general Eduardo Pazuello, publicou a portaria 2.282, criando novas regras, que se revelam ataque ao direito ao aborto, nos poucos casos em que o procedimento é legal no Brasil. O movimento de mulheres precisa se colocar de pé para derrubar tal portaria, e lutar pelo nosso direito de decidir!

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Diante da iminência de julgamento pelo STF de inconstitucionalidade da portaria 2.282, o governo Bolsonaro, em sua disputa de forças com o poder judiciário e pressionado pelas críticas da sociedade, realizou mudanças na portaria 2.282. Que, a despeito de ter retirado, de seu texto, a possibilidade de visualizar o feto via ultrassonografia, antes da aprovação da interrupção da gravidez, trata-se de uma mudança que reafirma ainda mais a obrigatoriedade, para a realização do procedimento, de que os profissionais de saúde notifiquem à policia, com antecedência. Com esse ataque, que rechaça o cuidado à vida das mulheres e reforça o caráter policialesco e opressor do Estado sobre os corpos femininos, é lutar e refletir sobre a gravidade e urgência desse triste direito que precisamos.

No dia 28 de agosto deste ano, o Ministério da Saúde, comandado, até então, interinamente pelo general Eduardo Pazuello, publicou a portaria 2.282, criando novas regras, que se revelam ataque ao direito ao aborto, nos poucos casos em que o procedimento é legal no Brasil. Dentre as regras, estão medidas como interrogatório, convite a ultrassonografia do feto, assinatura de termo de responsabilidade contendo o risco de morte, entre outros itens absurdos que buscam intimidar as vítimas de estupro: uma clara retaliação frente ao caso da menina de 10 anos, atacada pelo bolsonarismo de Damares Alves e Sara Winter, junto a figuras fundamentalistas religiosas de Pernambuco.

Esta medida faz parte do projeto do governo reacionário de Bolsonaro, de atacar o direito ao aborto, já tão frágil em suas garantias legais.

Bolsonaro iniciou sua gestão com o evidente objetivo de atacar as mulheres: somente durante seu primeiro ano de mandato, foram protocolados 19 projetos de lei que tinham como conteúdo a restrição do acesso ao aborto; em 2020, o número de projetos na câmara com o aborto como tema teve um crescimento de 83%, a grande maioria com a intenção de restringir o direito das mulheres de abortar. Isso nos obriga a colocar na ordem do dia a necessidade da articulação do movimento de mulheres junto às entidades de organização da classe trabalhadora e juventude, para fazer frente a este governo reacionário.

Sabemos que a ilegalidade do aborto atinge pessoas de distintos grupos sociais: Não distingue classe, região ou crença. Os resultados da Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016), coordenada por Débora Diniz [1], professora da UNB (Universidade de Brasília) e Pesquisadora da ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), demonstram que “o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões”. Os dados revelam que em 2016 quase uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já tinha realizado, pelo menos, um aborto; em 2015 foram, aproximadamente, 416 mil mulheres, segundo o PNA.

No entanto, é notório que as maiores vítimas da ilegalidade são as mulheres pobres e negras, aquelas que menos acesso possuem à educação sexual e, menos ainda, à possibilidade de realizar o procedimento de forma segura em uma clínica e com acompanhamento médico especializado. Segundo a pesquisa Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?, publicada em fevereiro deste ano, nos Cadernos de Saúde Pública, revista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), são negras, indígenas e moradoras de regiões distantes dos grandes centros, além de adolescentes menores de 14 anos, as grandes vitimadas pelos abortos ilegais no Brasil. A pesquisa confirmou outros estudos [2], que já apontavam que entre as mulheres, de 20 a 34 anos, que morreram por questões relacionadas ao aborto, 68% eram solteiras e 70,5% eram negras.

Estima-se que o aborto realizado de maneira segura em uma clínica com profissionais, custe entre R$ 3.500 a R$ 7.000; por outro lado, também se estima que há verdadeiros “açougues” clandestinos, onde o procedimento pode ser realizado a partir de R$ 150,00 [3]. Esta é a face macabra de uma realidade nacional, que leva centenas de mulheres – em sua grande maioria, pobres e negras – à morte, vítima da clandestinidade ou a terem sequelas irreversíveis.

Somente estes dados, bastante alarmantes, deveriam bastar para os governos abordarem o tema da legalização do aborto, como resposta a um problema que é de saúde pública. Porém, o movimento que vimos durante os 13 anos de governo do PT foi contrário a isso: em nome da governabilidade junto aos setores religiosos, literalmente rifaram a pauta do direito ao aborto, no que chamaram de um recuo tático e que resultou em um avanço, mais que estratégico, para os setores da extrema direita, estes que foram fundamentais para a eleição de Bolsonaro à Presidência da República. Como consequência dessa política, hoje vemos esses setores avançando sobre os casos em que o aborto é legalmente garantido, através da portaria aqui discutida, mais especificamente sobre o caso em que a gestação é fruto do crime de estupro.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública [4], 63,8% dos estupros que ocorrem no país são de vulneráveis, ou seja, crianças menores de 14 anos ou pessoas com condições físicas ou mentais, que não têm a possibilidade de discernir ou opor resistência física à violência experimentada. Considerando este dado, só é possível concluir que Bolsonaro e Damares Alves buscam aumentar o contingente de meninas mortas, seja por terem tido que recorrer à insegurança da clandestinidade ou por terem tido que seguir com uma gestação que coloca sua vida em risco; além de esta portaria representar um crime de tortura psicológica, fazendo com que as vítimas, além de terem de conviver com a terrível experiência do estupro, tenham que reviver a cena, em um espaço que deveria ser de compreensão e acolhimento, que é o sistema de saúde.

A especificidade da região Nordeste coloca a necessidade de uma discussão mais aprofundada: junto com a região Sudeste, o Nordeste possui os maiores números de óbitos por abortos clandestinos; Pernambuco vivencia a triste situação de ser o 2º Estado, na região, em casos de abuso sexual cometido contra menores notificado (a situação se agrava se considerarmos que a maior parte dos abusos não são notificados. Estima-se que menos de 8% são registrados). Ademais, é preciso levar em conta que na base dos fatores que suscitam um contexto de ocorrência de tão perversa realidade, o Atlas da Violência (2019) [5] mostra como são graves os números da violência contra a mulher no Nordeste, onde, por exemplo, a evolução dos homicídios contra as mulheres teve, no Rio Grande do Norte, o maior crescimento no número de mulheres vitimadas, com variação de 214,4% entre 2007 e 2017, seguido por Ceará (176,9%) e Sergipe (107,0%). E os números também ajudam a pintar o cenário de desigualdade quanto à raça, ao se comparar as mulheres negras e não negras vítimas de homicídio: Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5%, entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Isso significa que, em números absolutos, a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7% e, entre mulheres negras, de 60,5%.

É justamente no Nordeste, onde esses dados de violência contra as mulheres são tão alarmantes, que se constata a negação ao direito ao aborto, até mesmo nos poucos casos em que é assegurado pela lei. Em um país onde (de 2013 a 2015) mais de 90% dos abortos legais são de gestações resultantes de estupro [6], como se explica que existam números tão baixos de acesso a abortos seguros? Só nos seis primeiros meses de 2020, foram registrados 1.047 estupros em Pernambuco [7] e, na contramão dessa realidade, um número de abortos seguros bem abaixo do que deveria existir.

Diante disso, a portaria 2.282, editada pelo Ministério da Saúde, ao introduzir novas regras para o atendimento de aborto legal, distancia ainda mais as mulheres ao acesso a esse direito. Estamos diante de uma grave violação ao direito das mulheres, porquanto o burocratiza (mesmo já sendo tão restrito), expõe as vítimas e se levanta como mais uma barreira aos serviços de interrupção de gestação. É preciso que nos coloquemos categoricamente contra a presença da polícia nessa instância! Trata-se de mais um mecanismo do qual lança mão o Estado burguês, ancorado em seu conservadorismo religioso, para intimidar e culpabilizar as mulheres. Trata-se de um cruel retrocesso, mas de um avanço reacionário sobre a autonomia e os corpos das mulheres.

Também lutamos pelo direito à maternidade

A relação do estado burguês em relação ao nosso direito de decidir sobre nossos próprios corpos é bastante perversa. Isso se dá pela condição elementar de como as opressões são utilizadas pelo sistema capitalista para aumentar os níveis de exploração sobre a classe trabalhadora de conjunto. Ao mesmo tempo em que nos impedem de abortar com a ilegalidade e novas restrições, também nos impedem de exercer a maternidade quando assim queremos, e isso vai muito além da insuficiência da licença maternidade existente.

Em primeiro lugar, é preciso colocar que à medida que avança a crise econômica e com ela a necessidade da burguesia de manter seus lucros descarregando-a sobre nossas costas, nenhum direito é garantido que não seja através da nossa mobilização. Vimos como o governo golpista de Temer avançou nos ataques às mulheres, através da reforma trabalhista aprovada em 2017, que passou a permitir que gestantes trabalhem em condições de insalubridade, além da lei da terceirização irrestrita. Já em 2013, no final do 1º mandato de Dilma Roussef, o MEC autorizou o fechamento de creches e pré-escolas durante as férias, o que afetou milhares de famílias, principalmente as que dependem de renda informal e não possuem direito às férias, sem contar o grande setor da classe trabalhadora que não possui férias conjuntamente com as férias escolares das crianças. A escassez da oferta de creches e pré-escola reflete diretamente nos direitos à maternidade da mulher trabalhadora, que quando opta por ter um filho, precisa lidar com a falta de assistência por parte do estado e também das empresas, que em sua grande maioria não garante creches nos locais de trabalho.

Além da escassez de creche, outro problema é a maneira diferenciada com a qual o desemprego atinge as mulheres à medida que a crise avança. Quando inserimos o recorte de gênero, vemos que segundo dados da PNAD do 1º semestre de 2020 [8], a taxa de mulheres desempregadas é 39,4% superior à taxa de desocupação dos homens. Este número já chegou a ser de 64,5% quando começou a ser averiguado o dado, chegando ao seu menor patamar em 2017 quando chegou a 27.6% e voltou a subir desde então. Historicamente a taxa de desemprego das mulheres negras é maior tanto comparada as mulheres brancas como aos homens negros, o que nos leva a ver que são as mulheres negras as que estão sujeitas às maiores precariedades como serviço de saúde o que inclui educação sexual e aborto, moradia de qualidade etc.

Às mulheres negras também se nega nosso direito à maternidade quando são nossos filhos e filhas os principais alvos da violência policial racista: Dados da Rede de Observatórios da Segurança [9] - grupo que estuda a violência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco - colocam que negros e negras são as principais vítimas da violência. Somos 75% dos mortos pela polícia, enquanto a taxa de homicídios no país é de 28 a cada 100 mil. Terrivelmente, quando fazemos o recorte para jovens negros de 19 a 24 anos, esse número sobre para mais de 200.

Também, historicamente, as mulheres negras foram vítimas da violência estatal quanto a seus direitos reprodutivos, com ênfase importante no Nordeste, região onde pretos e pardos chegamos a ser 68% da população, conforme o último censo de 2010. Segundo Edna Roland [10], no texto "Direitos reprodutivos e racismo no Brasil", na década dos 1990, a maioria dos programas que tinham como objetivo reduzir a fecundidade foi dirigida à região Nordeste e tinham um caráter profundamente racista, pois partiam de defender que a queda de fecundidade das mulheres pobres iria reduzir a pobreza, quando, em realidade, essa política não foi acompanhada de nenhuma medida que atacasse a concentração de renda no país. Os dados que Roland nos traz em seu estudo se constitui um fiel retrato de como o Estado brasileiro atuou de maneira racista contra os direitos das mulheres. Vê-se que, em 1991, a esterilização no Nordeste representava 62,9% entre as mulheres que utilizavam algum método contraceptivo e a pílula, que 5 anos antes deste levantamento representava 32,1%, tendo caído para 22%. Roland publica seu estudo em 1995, ano em que 19% das mulheres em idade reprodutiva já estavam esterilizadas antes dos 25 anos na região, em sua maioria, jovens negras.

Por essa razão, quando Diana Assunção parafraseia Trotsky no prefácio do livro “Trotsky e a luta das mulheres” e coloca que “é preciso enxergar a vida com o olhar das mulheres, mas em especial o olhar das mulheres negras, imigrantes e indígenas, que de forma mais cruel sentem o feroz deleite capitalista sobre seus corpos e vida” [11], está expressando esta dura realidade que o sistema capitalista tenta nos impor e a necessidade de como os e as revolucionárias precisam buscar enxergar com o olhar dos setores mais oprimidos.

A partir da agrupação de mulheres Pão e Rosas lutamos pelo nosso direito a decidir quando quisermos ser mães, assim como pelo direito de decidir não o ser; e entendemos que esta luta precisa estar aliada a uma batalha consequente por acabar com a classe burguesa parasita, que necessita da opressão sobre nossos corpos para aumentar os níveis de exploração sobre a classe trabalhadora de conjunto

No 28 de setembro se comemora o Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Legalização do Aborto e neste ano, em que assistimos a empreitada reacionária do bolsonarismo sobre o direito ao aborto através da nefasta portaria 2.282, é necessário um forte chamado para os organismos da classe trabalhadora, das mulheres, negros e negras, indígenas e da juventude para conformar a mais forte mobilização para torcer o punho deste governo. A Bancada Revolucionária de Trabalhadores de São Paulo, com Diana Assunção, Letícia Parks e Marcello Pablito, assim como as demais candidaturas do MRT em Porto Alegre com Valeria Muller e em Contagem com Flavia Vale está levantando com força um grande chamado a toda a esquerda, para que nosso direito ao aborto esteja no centro de todas as campanhas, a serviço de fazer deste 28 de setembro um dia de mobilizações, que seja uma grande demonstração de forças contra o governo, colocando a necessidade de defendermos o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, contra a portaria 2.282 e todos os ataques de Bolsonaro e Damares Alves e pela separação imediata da igreja e do Estado!

REFERÊNCIAS:

[1] Pesquisa Nacional de Aborto 2016. In: https://www.scielo.br/pdf/csc/v22n2/1413-8123-csc-22-02-0653.pdf

[2] MARTINS, Eunice Francisca; ALMEIDA, Pollyanna Ferraz Botelho de PAIXÃO, Cilene de Oliveira; BICALHO, Paula Gonçalves; ERRICO, Livia de Souza Pancrácio de. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cadernos de Saúde Pública 2017.

[3] Dados do The Intercept, disponível em: https://theintercept.com/2017/03/16/qual-o-preco-que-o-brasil-paga-pela-criminalizacao-do-aborto/

[4] https://forumseguranca.org.br/

[5] Dados do Relatório Atlas da Violência 2019 – Ipea e FBSP https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/downloads/6537-atlas2019.pdf

[6] Dados da pesquisa Aborto legal no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018, in: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020001302001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

[7] Dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco

[8] https://www.infomoney.com.br/economia/taxa-de-desemprego-das-mulheres-e-394-superior-a-dos-homens-diz-ibge/

[9] http://observatorioseguranca.com.br/produtos/relatorios/

[10] https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16469/15039

[11] ASSUNÇÃO, Diana. Para enxergar a vida com o olhar das mulheres em Trotsky e luta das mulheres São Paulo: Edições Iskra, 2015 pag 15.

 
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