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OBITUÁRIO
Adeus Little Richard: o panteão do rock perde seu último grande nome
Fernando Pardal

Nesse sábado, 9, perdemos Little Richard, o últimos dos grandes pioneiros do rock ainda vivo. Sua obra marcou gerações e influenciou decisivamente a música.

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Richard Wayne Penniman, mais conhecido como “Little Richard”, tornou-se um fenômeno musical mundialmente conhecido em 1955, com seu primeiro e mais difundido sucesso musical “Tutti Frutti”, música que também ficou muito conhecida na voz de Elvis Presley. Outros sucessos imortais do músico incluem “Lucille”, “Good Golly Miss Molly” e “Long Tall Sally”, todas músicas de seus primeiros anos de carreira, ainda na década de 1950.

É impossível mensurar a extensão da influência de Little Richard na música, particularmente – mas não apenas – no rock. Para citar alguns nomes, Little Richard foi influência decisiva para Elvis Presley, Beatles, Bob Dylan, Led Zeppelin, Rolling Stones, Queen e David Bowie. Ele foi um dos pioneiros do gênero, ao lado dos grandes nomes que nos anos 50 do século passado emplacaram o gênero como um dos mais populares do mundo, gerando desdobramentos que até hoje dominam uma fatia considerável da música pop – ainda que já não tenha a mesma popularidade entre a juventude que há algumas décadas.

Sua influência sobre todo o rock n’ roll posterior não se restringiu à música: Little Richard foi também um precursor em termos de atitudes subversivas e uma estética transgressora que por muito tempo foram uma marca de rebeldia – pelo menos em termos de comportamento contra as “tradições familiares”. De estilo andrógino, roupas chamativas e penteados exuberantes, o próprio Richard chamava a atenção para como outros artistas se inspiraram por seu visual. Em uma entrevista de 1989, por exemplo, encarou a câmera e se dirigiu a Prince, dizendo que ele era o Little Richard de sua geração, e completou “Eu já usava roxo antes de você!”. Dan Auercbach, do Black Keys, disse: “Se você gosta de algo da extravagância do rock & roll você tem que agradecer Little Richard”.

E, se em décadas posteriores a “extravagância” do rock já era um produto calculado por estratégias de marketing para vender a adolescentes mercadorias com conteúdo “rebelde” - tal como em bandas como Kiss ou as “hairbands” dos anos 80 – no caso de Richard era um ímpeto bastante autêntico. Ele teve que se enfrentar com nada menos que o racismo do sul estadunidense, tendo nascido em Macon, no estado da Georgia, em 1932. Terceiro de doze filhos em uma família pobre em uma época em que os negros eram segregados inclusive legalmente pelas Leis Jim Crow, seu pai era vendedor de bebidas clandestinas – que foi assassinado por um tiro e seu assassino foi inocentado, depois do que Richard trabalhou como lavador de pratos na rodoviária de Macon para sustentar a família. Esta pertencia à Igreja Batista, na qual cantavam e participavam de competições. Não bastasse todo o peso do racismo, Richard ainda enfrentou a homofobia dentro de casa, com seu pai o expulsando por ser gay aos 13 anos, quando passou a morar com uma família branca.

Little Richard foi um dos criadores do rock ("eu realmente sinto no fundo do meu coração que eu sou o inventor [do rock]", disse em entrevista), um gênero musical com todas as suas raízes profundamente fincadas nas tradições do povo negro, na música gospel de suas Igrejas e no blues. E ele mesmo sempre reconheceu a influência de pioneiras cujo mérito foi por muito tempo oculto – pois, se o racismo fez ser creditado a Elvis a paternidade do rock, o machismo tirou dessas pioneiras também a sua marca decisiva nas origens do gênero. Sister Rosetta Tharpe, por exemplo, era sua cantora preferida na infância, e Richard foi convidado por ela em 1945 para cantar no auditório de Macon. O público apreciou e Richard recebeu das mãos de sua cantora preferida seu primeiro cachê, a maior quantidade de dinheiro que já havia visto na vida. Outras influências de Richard foram Mahalia Jackson, Brother Joe May e Marion Williams, bem como o “príncipe do blues” Billy Wright e o pianista e cantor Esquerita (Eskew Reeder, Jr.), da Carolina do Sul, que o influenciou na forma de tocar o instrumento.

Assim, se Little Richard era indiscutivelmente um dos grandes pioneiros do rock, essa brevíssima apresentação de sua formação musical é uma mostra de que não existem “gênios” isolados. A sua música era a legítima representante de um caldo cultural, de uma tradição musical profunda, ligada ao povo negro estadunidense, aos gêneros musicais que se criavam e fundiam, e que nos anos 50 desembocaram o rock & roll, que, como tantas criações de imensa vitalidade surgidas em meio à resistência dos negros, como setor mais explorado e oprimido no capitalismo, foram usurpadas e transformadas em uma lucrativa mercadoria no capitalismo. O rock está para os negros estadunidenses como o samba está para os brasileiros, tendo se transformado de um gênero marginal e ligado às tradições negras em um símbolo nacional devidamente extirpado das referências a suas raízes históricas.

O próprio Little Richard tinha muito claro, até o fim de sua vida, o peso que o racismo cobrava mesmo após sua consagração como um dos grandes nomes do rock. Em entrevista à revista Rolling Stone em 1990, ele disse, ao responder uma pergunta sobre se Elvis teria ajudado a abrir as portas para que o público branco ouvisse os cantores negros: "Eu acho que a porta se abriu mais, mas talvez já tivesse sido aberta por ’Tutti Frutti’. Eu acho que Elvis era mais aceitável sendo branco naquele período. Eu acho que se Elvis fosse negro, ele não teria sido tão grande como foi. Se eu fosse branco, você sabe quão gigante eu seria? Se eu fosse branco, eu poderia sentar no topo da Casa Branca! Muitas coisas que fizeram por Elvis e Pat Boone, eles não fariam por mim".

Aos 14 anos, Richard participa da turnê do músico Sugarfoot Sam, do Alabama, em um número em que aparecia vestido com roupas femininas e sob o nome de Princesa Lavonne – a excentricidade do ano. Até emplacar como um ídolo do rock foram anos, pois o preconceito era tamanho que o próprio músico temia levar a público o novo gênero. Ele disse em uma entrevista em 1990: “Quando eu comecei, eu nunca tinha ouvido nenhum rock & roll. E quando eu comecei a cantar ele, eu cantei por muito tempo antes de apresentar ao público porque tinha receio de que não gostassem. Eu nunca tinha ouvido ninguém fazer isso, e tinha medo”.

Foi em um momento de tédio enquanto lavava os pratos na rodoviária de Macon que lhe veio o refrão “a wop bob alu bob a wop bam boom” que imortalizou em Tutti Frutti, e também ali compôs “Long Tall Sally”.

Após aquilo que considerou como dois “sinais” - um motor de avião que parecia ter pegado fogo e um sonho que teve com o fim do mundo e sua própria danação – Richard decidiu largar a carreira musical e se tornar pastor. Mas em seguida, em 1959, voltou à música, dessa vez com um disco gospel ligado à sua religião chamado “Gos is Real” (Deus é Real). Contudo, já em 1964, decidiu voltar ao rock “secular”, abandonando a música gospel. Quando tocou no Star-Club em Hamburgo nos anos 60, era um jovem grupo, os Beatles, que abriam o show para ele. John Lennon deu um depoimento sobre isso: “Nós costumávamos ficar nos bastidores do Star-Club de Hamburgo e ouvir Little Richard tocar. Eles costumava ler a Bíblia nos bastidores e, só para ouví-lo falar, nós nos sentávamos ao redor e ouvíamos. Eu ainda o amo e ele é um dos maiores”.

A sua criação religiosa era nitidamente um ponto de crise e conflito para Richard, particularmente em relação à sua própria sexualidade. Em algumas entrevistas ele apresentava as visões reacionárias e preconceituosas instiladas pelos dogmas de sua religião, afirmando que a homossexualidade era “contagiosa” ou dizendo que “Deus fez os homens e as mulheres” e que deve-se viver “como Deus quer que você viva”. Em outros momentos se declarou “onissexual”, sentindo atração por homens e mulheres igualmente ou dizendo que “ama as pessoas gays” e até mesmo “acredito que eu fui o fundador do ‘gay’”.

Little Richard, aos 87 anos, parte e nos deixa com um legado de valor inestimável, com uma vida e obra que marcaram a história da música moderna e são o retrato das contradições desse mundo, mas também das incríveis preciosidades que, mesmo sob o peso da opressão e exploração, a humanidade é capaz de produzir.

 
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