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“Não entendi nada!”: Reflexões sobre o primeiro dia de EaD na rede estadual paulista
Mauro Sala
Campinas
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Começou nessa segunda-feira a experiência de educação à distância promovida pelo estado de São Paulo, diante da suspensão das aulas presenciais devido à pandemia de Covid-19. A partir de um centro de mídias e de um aplicativo de celular, o governo buscou mobilizar milhões de alunos em sua iniciativa.

Problemas técnicos de acesso - que, aliás já foram observados semana passada no encontro promovido para os professores da rede estadual - se repetiram, alijando milhares de estudantes do acesso às atividades propostas. Isso para não falar de um sem número de outros estudantes que simplesmente não têm acesso por não dispor de um celular capaz de suportar o uso do aplicativo ou por ter problemas de acesso à rede de internet. Essas questões não podem ser desprezadas, já que elas significam a mais pura exclusão das atividades escolares propostas pela Secretaria da Educação de São Paulo.

Entretanto, mesmo para aqueles que conseguiram vencer a exclusão tecnológica e informacional e que não tiveram problemas técnicos com o uso do aplicativo, uma outra forma de exclusão se impôs: a exclusão do acesso aos conteúdos veiculados por meio digital.

A Secretaria da Educação de São Paulo desprezou todo bê-a-bá da didática escolar. Preocupações básicas com sondagem, avaliação diagnóstica e conhecimento da realidade imediata dos alunos passaram ao largo dessa primeira tentativa de improviso de EaD na rede estadual paulista. E, por isso, ela falhou miseravelmente.

A Secretaria da Educação de São Paulo pensou mesmo que poderia simplesmente despejar os conteúdos sobre os alunos sem ter a mínima preocupação com os conhecimentos prévios dos mesmos? Ela acreditou mesmo que bastava pegar o currículo oficial e dar seguimento a ele por meio digital? Ela achou mesmo que o problema do ensino pudesse ser resolvido simplesmente organizando uma exposição independente dos sujeitos a que se destina? Ou será que ela não precisou se preocupar com nada disso, já que ela sabia que não se tratava de educação, mas de mera formalidade para cumprimento do calendário escolar e para “mostrar serviço”?

De qualquer modo, por não seguir o mínimo do mínimo quando falamos de didática e prática de ensino, a primeira atividade do centro de mídias promovida pelo governo paulista acumulou uma enorme sequência de “não estou entendendo nada” nos comentários de sua “vídeo-atividade”, deixando evidente sua fraqueza pedagógica.

A multisseriação na escola seriada e os limites do tecnicismo

É comum entre os professores a percepção de que o que explicamos em sala de aula, muitos alunos não entendem. Sempre discutimos sobre a inadequação desse ou daquele conteúdo, dessa ou daquela abordagem que mobilizamos em sala de aula a fim de alcançar o maior número de alunos possível. Uma questão que sempre nos parece é que em uma mesma aula temos que dar três ou quatro aulas diferentes para grupos de alunos com apropriações distintas dos conteúdos e em momentos distintos de seu desenvolvimento. A impressão que temos é que damos aulas em salas multisseriadas, apesar de estarmos em uma escola com estrutura e funcionamento seriados.

É por essa percepção que muitas vezes somos obrigados a cumprir o currículo prescrito pela Secretaria da Educação com muita cautela, olhando, por um lado para os conteúdos exigidos e, por outro, para a aprendizagem efetiva dos nossos alunos.

É claro que os burocratas da Secretaria da Educação não poderiam compartilhar conosco essa “percepção”, afinal, a grande maioria deles não pisa em uma sala de aula há muito tempo. Eles são os formuladores burocráticos das políticas e os agentes do controle sobre os professores e o sistema de ensino. Não lidam com experiências, mas com os números frios das avaliações institucionais que visam medir a eficácia das políticas educacionais que eles propõem.

Esse governo, que mostra uma verdadeira tara pelos resultados das avaliações institucionais e seus índices - como o SARESP e o IDESP -, parece não saber tirar nenhuma consequência pedagógica das próprias avaliações institucionais que aplica, mostrando que elas só servem para penalizar os professores pelo não pagamento de parte da sua remuneração em forma de bônus.

Há uns anos, fiz uma pesquisa sobre os resultados das avaliações padronizadas realizadas pelo estado de São Paulo que comprovou o que muito de nós já percebíamos intuitivamente: que dentro de uma mesma sala de aula há alunos com níveis distintos de apreensão e de dificuldade em relação ao conteúdo, o que recriaria uma espécie de multisseriação no interior da escola seriada.

Segundo apontou nossa pesquisa, na escola selecionada, “mais de 35% dos alunos que cursaram o 9° ano do ensino fundamental em 2010 estavam “abaixo do básico” em língua portuguesa, e mais de 40% deles estavam “abaixo do básico” em matemática, sendo que para o 3° ano do Ensino Médio esses valores subiam para 42,2% e 57,7% respectivamente”.

Se considerarmos que a Secretaria da Educação considerava que os estudantes que foram classificados como “básico” ainda apresentavam um “desenvolvimento parcial dos conteúdos, competências e habilidades requeridos para a série escolar em que se encontram” e, por isso não eram classificados como tendo um desenvolvimento “adequado”, vemos um cenário ainda mais preocupante, no qual mais de 90% dos estudantes do 9º ano apresentaram apreensão inadequada dos conteúdos em português e matemática.

Dessa forma, não é possível às professoras e professores do 1º ano do ensino médio simplesmente aplicarem o currículo esperado, sendo necessário reconhecer a heterogeneidade dos estudantes para pensar uma estratégia efetiva para o ensino, o que implica fazer um diagnóstico preciso da turma.

Se no contato pessoal com os alunos essa realidade se impõe como um enorme desafio para o ensino, nas plataformas online ela se mostra como uma completa impossibilidade, tanto mais se a Secretaria da Educação simplesmente negar o bê-a-bá pedagógico passando, completamente, por cima do reconhecimento da realidade concreta e do ponto de partida dos estudantes. Se uma perspectiva tecnicista já dá mostras de precariedade numa turma homogênea, na heterogeneidade da escola pública real, ela é uma completa tragédia.

Interesse e indisciplina: uma variável perversa da fábula “A raposa e as uvas”

Neste cenário, em que grande parte dos alunos não tem os requisitos para “acompanhar a matéria”, surgem também problemas de indisciplina e desinteresse, que se mostrou na grande quantidade de imagens de “zoação" no chat da “aula". É claro que a “zoação” é um elemento da sociabilidade dos jovens também no contexto das aulas presenciais. Entretanto, nos parece, se mostra mais afrontosa em atitudes que eles sabem que podem ser “printadas" e das quais eles não poderão fugir com o conhecido “não fui eu”. Assim, mensagens de “zoação" e de “não estou entendendo nada” adquirem sentido complementar nos chats do EaD paulista.

A questão que colocamos é: como um aluno pode se interessar por algo que ele não tem condição de entender? Que está além da sua zona de desenvolvimento eminente?

La Fontaine, em uma famosa fábula conhecida por “A raposa e as uvas”, nos ajuda a entender algumas dimensões do nosso problema. Nela, La Fontaine nos conta a história de uma raposa faminta que entrou num terreno com belas parreiras, carregadas de uvas maduras e suculentas. Ela tentou abocanhá-las, mas os cachos estavam mais altos do que seu pulo podia alcançar. Depois de muito tentar, a raposa simplesmente se virou e disse: “Estão verdes!”.

Desse modo, “não entender nada” leva ao desinteresse, o que nos leva a inverter a proposição da Pedagogia Nova, de que as necessidades e interesses dos alunos estão não ponto de partida da aprendizagem. Para nós, não é apenas o desinteresse que leva à não aprendizagem, mas também a não aprendizagem pode levar ao desinteresse e, consequentemente, à indisciplina, embora nesse caso tenhamos que nos perguntar se as próprias uvas oferecidas não estão realmente azedas.

Arremedo de EaD e a exclusão da exclusão

Se os cursos em EaD regulares já não podem ser considerados um sucesso, o que falar desse arremedo de EaD?

Quando um jovem ou adulto escolhe um curso superior em EaD, ele sabe minimamente no que está se metendo, ele já espera aulas online e busca organizar as exigências técnicas para garantir seu acesso, e mesmo assim a taxa de evasão constantemente ultrapassa os 50% dos alunos matriculados. Os que se formam o fazem, muitas vezes, com um nível bastante medíocre de conhecimentos e qualificação.

A EaD foi vendida como uma forma de inclusão dos jovens trabalhadores na educação superior. Mas trata-se ou de uma “inclusão excludente”, que inclui nesse nível de educação, mas não nos postos de trabalho a que ele pretensamente habilitaria; ou é simplesmente uma inclusão provisória, já que o que se inclui como matriculado se exclui como evadido.

Se a experiência da EaD na educação superior - organizada, normatizada e regular - nos mostra os limites inerentes desta modalidade de ensino, a experiência da EaD na educação básica - improvisada, desregulamentada e ilegítima - nos mostrarão o quão baixo e excludente pode ser essa modalidade de ensino.

À exclusão escolar redundante da exclusão digital e informacional (quase metade da população mais pobre não tem acesso à internet) se somará a exclusão que a EaD regular e, mais ainda, esse arremedo de EaD promovem por si. Improvisar um EaD nessas condições não é incluir as crianças e jovens diante da impossibilidade da escolarização presencial e regular, mas significa, tão somente a exclusão total dos já excluídos e de tantos outros.

 
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