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TRIBUNA ABERTA
Herói Jacarepaguense - Jorge da Costa Pinto
João Magalhães

"Me dói muito esse momento. Sinto que um pilar muito forte de toda a luta no bairro morreu. Jorge sustentava laços entre diversos grupos e diversas pessoas e servia de grande admiração para mim."

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Era 2014, eu não tinha nem barba no rosto. Havia acabado de assistir uma palestra da Gisela Santana na livraria recém aberta da estrada dos três rios quando ele chegou com jeito de malandro ou de herói, não sei ao certo, falando firme sobre a luta ambiental e dando certeza sobre como a Associação de Moradores estava prestes a conseguir transformar o casarão da bananal na primeira casa cultural da Freguesia. Anos depois descobri que já tivera coisa do tipo por aqui no século XX, mas era coisa só para elite. Aquela que Jorge falava seria para todos nós, seria do povo.

Em minha empolgação juvenil passei a sonhar com aquela casa, passava todos os dias pela frente dela por enquanto voltava do colégio. Já tinha até parado de fazer graça os trocadilhos de AMAF com "a máfia" e eu já estava começando a suspeitar que aqueles lambes no meio da rua estampando "AR borização" poderiam significar algo mais além da excelente crítica ao desmatamento. Eu ligo para o número de Jorge para perguntar se ele sabia alguma coisa sobre o tal desenho - eu havia começado a empolgar alguns colegas do colégio para fazer um jornal e achei que aquele desenho era manchete! - na época Jorge não fazia ideia do que eu estava falando, mas me convidou para uma especie de protesto na frente do casarão.

Eu cheguei na hora da concentração, encontrei uma mulher com lenço na cabeça e com algumas panelas gritando com uns homens. A situação inicialmente me assustou, pedalei com minha bike para um pouco mais longe, até perceber que aquela argentina determinada também deveria ser parte da tal AMAF. Estela, seu nome, me falou sobre a importância de um pan-americanismo e chegou até a me dar bronca por eu ser meio enrolado nas aulas de espanhol. Jorge estava atrasado, então Estela me apresentou sobre a disputa legal do casarão e sobre o homem mal encarnado que havia mandado ela lavar panelas para não lutar pelos seus direitos, o pano na cabeça e as panelas naquele dia eram uma crítica, muito bem feita a proposito.

Naquela época eu não conseguia esconder a vergonha de estar sozinho em meus 16 anos sem saber como funcionava essa tal de luta de moradores. Esse misto de vergonha e curiosidade me levou alguns dias depois a entrar em alguns grupos de facebook como o Mobilidade Urbana e o SOS Freguesia, mas naquele dia havia apenas me feito atravessar a rua e ficar lá torcendo para que a figura amigável do Jorge viesse logo para me guiar no meio daquele bando de novidades.

Ele apareceu por trás de mim, ainda não sei de qual direção veio, mas veio sorrindo. Estava animado falando sem parar sobre alguma coisa da FAM-Rio, sobre duas garotas que viriam ali também, que estavam recebendo uma nova juventude e começou a me contar algumas histórias sobre a fundação da AMAF. A tal juventude chegou, Carine e Carol, as duas gostaram de me ver ali, Jorge me apresentou com um entusiasmo enorme, parecia estar contemplando aquele momento. Carol gostou de saber que eu estava de bike, começou a falar sobre ciclo-ativismo, conceitos que não sabia mas já estava amando, e Carine me falou sobre uma tal de Alice e sobre um projeto de arborização da Estrada dos três rios.

Surpresa, felicidade, euforia, foi tudo que passava por mim naquele momento. Sim, Jorge acabava de me ligar a todos os pilares das lutas sociais do bairro em apenas duas conversas e uma chamada de telefone. Foi o primeiro a dar seriedade para minha fala confusa e a ter paciência em tentar direcionar toda aquela minha vontade de fazer algo pelo bairro. Depois daquele dia minha vida foi se encaminhando, continuei a tentar contar as boas novas, que não eram tão novas assim, para as pessoas de minha idade. Para minha surpresa, só um ou outro gato pingando queria saber sobre aquelas lutas sociais, mas sempre que eu conseguia mais uma adesão de juventude era para o Jorge que eu ligava. Eu nem sabia o motivo, mas ele insistia em criticar um tal extremismo, me falava para ouvir todo mundo, para não andar com uns tais "milicianos" e para eu ter calma. Eu tive, apesar da cobrança pessoal, só em uma conversa com a Alice anos mais tarde que consegui entender melhor aquilo que o Jorge já havia me sinalizado. Alice me disse que cada um faz o que pode, só ai que realmente me acalmei. No final, muitas dicas do Jorge me fizeram refletir muito sobre minhas escolhas e me salvaram de grandes enrascadas.

Dois anos já haviam se passado desde o casarão da bananal, infelizmente a luta não vingou e o sonho daqueles senhores de trazer um recanto cultural virou entulho. Eu não me conformei. Queria que mais gente ouvisse aquelas histórias, juntei bandas de uns quatro colégios na Freguesia e falei de novo com Jorge: Jorge, quero trazer as pessoas desses movimentos para a Lona Cultural de Jacarepaguá. Ele me ajudou a pensar algumas pessoas, sempre muito articulado. O evento aconteceu, eu me sentia pinto no lixo, apesar de muitas horas não saber exatamente o que eu estava fazendo. Ele mesmo não apareceu no dia, mas mandou um representante da AMAF e ajudou a divulgar.

Eu já estava conhecendo cabo a rabo da luta comunitária do bairro, já estava empilhando livros sobre história de Jacarepaguá mas ainda não estava conseguindo repassar aquele interesse genuíno que eu tinha, apesar de ter feito muitas discussões com outros jovens sobre os significados afetivos do espaço onde estávamos.

Já havia chegado 2019. Conversei com Jorge ao final de uma reunião da Associação sobre fazer um livro de poesia e memória. Tinha chegado a conclusão que eu não poderia esperar mais tempo, pois as lideranças estavam envelhecendo, queria pedir para cada líder comunitário escrever uma notinha ou uma poesia sobre sua experiência com o bairro. Ele gostou da ideia, como sempre me apoiou. Fui deixando a ideia maturar.

Chegou 2020, fevereiro. Tinha marcado o primeiro encontro para discutir lideranças comunitárias e representação do bairro. Jorge não pode ir e não envolveu a associação pois estavam tendo alguns problemas internos. Ele me pediu para esperar o carnaval passar, o que me fez marcar um segundo encontro para o dia 28 de março.

Carnaval passou, perguntei sobre a situação interna da AMAF. Ele já estava falando sobre as coisas voltarem a normalidade, falou que iriamos ir levando as coisas e me disse para a gente ir pensando algumas de minhas atividades para o futuro. Era 12 de março. Ele havia falado sobre alguma reunião que ele teria no domingo seguinte com a diretoria. Disse que as coisas voltariam aos trinques. "Está resolvido isso, tá Ô Ka?" foram as últimas palavras dele para mim.

Me dói muito esse momento. Sinto que um pilar muito forte de toda a luta no bairro morreu. Jorge sustentava laços entre diversos grupos e diversas pessoas e servia de grande admiração para mim. Por causa de influência de muitas conversas com ele que tive idéias e inciativas de fazer muitas coisas. Sempre me inspirando nos mestres como ele.

Histórias de vida como as do Jorge que eu gostaria de ter guardado, anotado, filmado. Ainda quero fazer isso, mas agora perdi a chance de ter as palavras animadoras dele e de ter todo aquele apoio. Desde que recebi a noticia de sua ida fiquei desorientado. Eu temia muito a perda dessas pessoas que me inspiraram e que me inspiram tanto e agora perdi talvez a que tenha me colocado para dentro de toda essa espiral. Me doí muito no peito essa perda e não consigo esconder que as noites tem sido mal dormidas desde que perdemos alguém tão incrível como o Jorge.

 
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