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Entrevista com Marcus Mello: contra a privatização do Capitólio!
Luno P.
Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
Alice Caumo
Estudante de Artes Visuais na UFRGS

Seguindo a política de Bolsonaro de ataque à arte e à cultura, o prefeito Marchezan vem com um projeto de privatização de inúmeros equipamentos culturais de Porto Alegre. Entre eles, a Cinemateca Capitólio, sala de cinema e museu de preservação do audiovisual regional de importância nacional, está na mira de seus ataques. Os Centros Acadêmicos do Instituto de Artes da UFRGS, traz aqui uma entrevista com um dos funcionários e defensores da Cinemateca.

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O que é o processo de terceirização do Capitólio e quais as mudanças que isso traz?

Primeiro temos que resgatar a história do Capitólio, pois muitos não sabem o que é e a quem pertence esse espaço. O Cine-Theatro Capitólio foi inaugurado em 1928, era privado, e assim permaneceu até 1994, quando fechou. Teve uma fase áurea nos anos 30 e 40. [...] Era um espaço muito frequentado, que deu muito lucro para os seus proprietários durante diferentes períodos. Uma história longa, ao longo desses anos todos de exploração comercial privada.
Quando ele fecha, no final de 1994, a Prefeitura de Porto Alegre resolve comprar o prédio, porque ele tem um valor arquitetônico alto, e está localizado num ponto nobre da cidade. O Capitólio passa então a ser um bem público, ou seja, da cidade, de todos nós, porque foi comprado com recursos públicos. A partir daí começa um grande processo de discussão sobre o destino que se dará ao prédio.

Com a extinção da Embrafilme, o cinema estava em uma espécie de limbo na produção, e por essa razão, no ano de 2000 acontece o 3º Congresso Brasileiro de Cinema em Porto Alegre. É um evento que vai marcar o início das novas políticas para a área do audiovisual no Brasil nos últimos 20 anos, que culminará com a criação da Ancine. Durante o 3º CBC, em um grupo de trabalho sobre memória e preservação, também nasceu a ideia de transformar o Capitólio em uma cinemateca, ideia essa que foi tomando corpo e avançando.

E o que é uma cinemateca? Não é só uma sala de cinema, ela é também um espaço de guarda, preservação e difusão da memória do cinema. Se decidiu então que aqui seria esse espaço, e além de recuperar a sala de cinema e de exibir filmes regularmente o prédio seria adaptado para a preservação do cinema feito no Rio Grande do Sul, já que não tínhamos um museu especializado em imagem e som.

Assim, fomos atrás de recursos e conseguimos o patrocínio da Petrobras para iniciar a reforma do prédio. Outro parceiro super importante nesse processo foi a Fundacine, a Fundação de Cinema do Rio Grande do Sul, pois é ela quem vai administrar toda a obra. Desse patrocínio que a Petrobras vai oferecer via Lei Rouanet, essa obra vai se estender por 11 anos. Ela começa em 2004 e o prédio só vai ser inaugurado como Cinemateca Capitólio em 2015, porque ao longo do processo a Petrobras não pagou a última parcela acordada e teve que se buscar um outro patrocinador, que foi o BNDES. O dinheiro ainda não foi suficiente, e teve que se conseguir mais uma parcela com o Ministério da Cultura.

Finalmente, em março de 2015, a Cinemateca Capitólio é inaugurada, e segue sempre com uma administração pública. A gestão do espaço é feita por funcionários da Prefeitura de Porto Alegre.

A gente sempre teve um certo receio de abrir um cinema de rua num prédio desse tamanho no centro de Porto Alegre, sem estacionamento, em função desse medo que as pessoas têm de violência. mas para nossa surpresa a cidade recebe o espaço de braços abertos, não só a comunidade que vive em torno do prédio, mas também o público interessado em cinema de qualidade e alternativo. Uma parte significativa do nosso público são estudantes universitários de diferentes cursos. O espaço vai ganhar vida, e ele vai a cada ano atraindo mais espectadores e se tornando um espaço mais significativo na cena cultural da nossa cidade.

Agora, para nossa surpresa, ao final da gestão do governo Nelson Marchezan, há esse desejo de transferir a gestão desse espaço para um terceiro, para a iniciativa privada. Porém, usar dinheiro público para isso é uma coisa absolutamente perversa. O dinheiro, que poderia vir para a Coordenação de Cinema e Audiovisual da Secretaria Municipal da Cultura, que já realiza a gestão do espaço, vai ser transferido para um terceiro, com a justificativa, pouco convincente, de que isso desburocratiza a administração.

Cito o sociólogo português Boaventura Souza Santos, que vai dizer que esse modelo de parcerias público-privadas, que tem sido saudado por esses gestores neoliberais, não passa de uma forma perversa de privatizar dinheiro público.

Isso equivale a dizer que um gestor público não tem competência para administrar o dinheiro público, usando de justificativa a burocracia e a demora dos processos licitatórios. Mas, na verdade, a intenção primeira é repassar esse dinheiro para gestores privados que são parceiros que têm interesses, inclusive pré-eleitorais.

Se analisarmos, vemos que esse modelo, que já foi instaurado em outras cidades, naufragou. Em relação ao Theatro Municipal de São Paulo, por exemplo, segundo ampla cobertura da imprensa, a OS que ganhou o processo licitatório para gerir o espaço teria se apropriado de recursos, a prestação de contas desses repasses que a Prefeitura de São Paulo fez para a OS não foi aprovada. A mesma coisa em relação ao Museu de Arte do Rio, museu novo do Rio de Janeiro, que já foi inaugurado com esse modelo. A Prefeitura do Rio decidiu não repassar mais recursos e o museu está ameaçado de fechar e toda sua equipe ser demitida.

As pessoas que não acreditam nesse modelo, o que inclui grande parte da comunidade cultural, têm sido acusadas pela Prefeitura de Porto Alegre de usarem um discurso profundamente ideológico para atacar um modelo que é correto. Isso é uma falácia. Primeiro que essa acusação é feita tentando dizer para as pessoas que é só o campo da esquerda que tem ideologia, o que é uma grande falácia, existem ideologias de direita e existem ideologias de esquerda. Essa tentativa de terceirizar, de privatizar, de delegar para a iniciativa privada aquilo que é público, também parte de uma ideologia, é um pensamento extremamente ideológico.

Conheço bastante a história desse espaço, acompanho desde os anos 90 o processo de recuperação do Capitólio. Se o prefeito tivesse feito essa proposta no primeiro ano de seu governo, até poderíamos conversar. Agora faltando praticamente dez meses para acabar a gestão. é algo que me parece oportunista. O que se comenta é que o edital que será lançado prevê um contrato de cinco anos, ou seja, o de 2020 e os próximos quatro anos. Se esse modelo é tão bom, por que a Prefeitura não o propôs no primeiro ano de governo? Propor isso no final do mandato é algo inegociável, não tem porquê fazer isso nesse momento e ir com essa velocidade.
O Capitólio ficou 20 anos fechado, em ruínas. Quando ele é restaurado, está funcionando, bonito, com uma programação excelente e altamente elogiada, com um público ótimo, aí devolve para a iniciativa privada? Cabe ao gestor público transformar um lugar que era uma ruína em um lugar bacana na cidade, e aí, quando esse lugar bacana está em funcionando, passar o espaço para a mão de um terceirizado? Isso, na minha concepção, não está certo. Vale lembrar que uma parte já é terceirizada, por exemplo, serviços de limpeza e portaria, os funcionários que trabalham já não são mais concursados, já há uma flexibilização quanto a isso.

Agora que a Cinemateca Capitólio está funcionando direitinho querem passá-la adiante, com o argumento de que eles vão geri-la com mais competência do que os funcionários públicos. No caso, Nelson Marchezan está nos dizendo que nós não temos competência para fazer. Nós temos competência sim, basta nos dar o orçamento que ele quer transferir para um terceiro, que nós fazemos uma programação belíssima e inúmeros projetos que já acontecem e que poderão ser potencializados, caso esse orçamento venha.

Está acontecendo todo um movimento da sociedade civil, da comunidade cultural aos moradores do entorno, da Associação de Amigos da Cinemateca Capitólio, também envolvendo os órgãos de classe do audiovisual, os sindicatos dos produtores de audiovisual, tentando impedir que isso aconteça. Temos até abril para impedir pois, em função de ser um ano eleitoral, este edital só pode acontecer até abril. Então o que a gente está propondo e defendendo é que o edital não seja lançado este ano. Como o prefeito Nelson Marchezan quer se reeleger, caso ele se reeleja, que em 2021 ele proponha essa discussão novamente e discuta com a comunidade.

Como se insere essa proposta de terceirização, empurrada por Marchezan, em um contexto de produção e difusão cultural da cidade, levando em conta os outros ataques no marco regional de Porto Alegre?

Quando comecei a trabalhar na Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da SMC, em 1996, ela era uma pequena sala na Usina do Gasômetro, com três mesas, seis cadeiras e uma estantezinha. Não existia uma sala de cinema, não exista uma galeria de fotografia, todos os projetos eram realizados em outros espaços da cidade, em parceria. Por exemplo, os eventos de cinema eram realizados na Sala Redenção, da UFRGS, e as exposições em galerias com as quais se fazia parceria.

Em poucos anos, a Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia criou uma sala de cinema (a Sala P. F. Gastal, que teve importância enorme pra vida cultural da cidade), duas galerias de fotografia (a Galeria dos Arcos e a Galeria Lunara), realizou grandes exposições – sendo duas delas do fotógrafo Sebastião Salgado, que usaram todo o espaço da Usina do Gasômetro, e atingiram o maior público que a Usina já teve.

Ao final do governo Marchezan, em 2020, a Coordenação de Cinema e Audiovisual deve voltar a se resumir a uma salinha, pois não teremos mais as duas galerias de fotografia (a fotografia não faz mais parte da nossa área de atuação, por uma decisão totalmente arbitrária e sem qualquer discussão), nem a Sala P. F. Gastal, pois eu duvido que a obra de restauração da Usina do Gasômetro, recém iniciada, seja concluída em tão pouco tempo, e talvez sem a Cinemateca Capitólio, caso a terceirização realmente aconteça. Quando vemos isso, fica claro que existem dois projetos de cidade: um projeto de criar coisas e um projeto de destruir, de desmontar coisas. Porque uma gestão que pega uma coordenação da área de cinema e fotografia que tem duas salas de cinema e duas galerias de fotografia, todas com um programação de excelência, e termina essa gestão sem nada, isso é um projeto de desmonte. Espero que consigamos reverter a situação da Cinemateca Capitólio e torço para que, daqui a alguns anos, voltemos a ter a Sala P. F. Gastal e as galerias de fotografia.

Fico muito triste com tudo isso, pois volto a dizer que esses espaços não são do prefeito x ou y, mas sim da cidade de Porto Alegre, foram construídos com dinheiro público. As coisas não podem ser decididas assim, bruscamente. Imagine se em uma cidade como Paris, um prefeito novo decide: “Ah, eu não quero mais o Louvre, pois o meu partido acha que não é importante”. As coisas não se fazem assim! Um gestor público, prefeito, governador ou presidente, é gestor de todas as pessoas que votaram nele, não só de seus partidários. Mas infelizmente é isso que estamos presenciando hoje, com essa onda de extrema direita aqui no Brasil.

Recorro aqui ao conceito de História do filósofo Walter Benjamin, um movimento que vai e volta, de avanços e retrocessos. Hoje parece que estamos andando para trás, mas as coisas ainda vão mudar e voltaremos a ter um momento mai sensato, que reconheça o valor da coisa pública. Porque ninguém mais aguenta esse pensamento neoliberal que tomou conta da política. Os males que isso têm trazido – e isso extrapola o Brasil – são enormes e imensuráveis.

Frente a todos os ataques do governo Bolsonaro, o vídeo polêmico do Roberto Alvim, e até mesmo os ataques ao Ministério da Cultura, como se inserem esses ataques na Pinacoteca e no Capitólio, nesse aspecto mais nacional?

Olha, a gente tá levando paulada e sofrendo ataque por todos os lados. Mas eu acho que cabe a nós, cidadãos e frequentadores dos espaços públicos de Porto Alegre, defender os nossos espaços.

Um exemplo de como os gestores estão errados é o Secretário de Parcerias Estratégicas que está a frente desse processo de terceirização aqui na cidade, que não é só na área da cultura, é na saúde, é na educação, etc. Ele é um cara que veio lá de São Paulo para fazer um projeto de redesenho da cidade, e que daqui a 10 meses vai embora e vai deixar a cidade em frangalhos para a gente resolver e continuar vivendo nela. Quando eu vejo o Secretário falando sobre a terceirização da Cinemateca Capitólio fico impressionado com a falta de conhecimento dele em relação ao funcionamento do espaço.

Em uma entrevista ele fala assim: “Esse processo vai melhorar muito o Capitólio. A gente reconhece que ele foi muito bom nas últimas décadas, mas ele vai ficar ainda melhor”. Ou seja, parece que ele desconhece que o Capitólio ficou fechado durante 20 anos e que na verdade ele não funcionou assim nas últimas décadas, ele funcionou assim nos últimos cinco anos. Assim, a gente percebe que o cara não tem ideia do que ele está falando. Ele tem uma crença nesse modelo – claro que ele foi contratado pelo Prefeito para fazer isso –, e tenta aplicá-lo na saúde, na educação, nos equipamentos públicos.

Qual a importância de uma Cinemateca Capitólio pública?

Eu acho que é fundamental para uma cidade, para qualquer cidade, ter espaços públicos de excelência e que funcionem de uma forma democrática, transparente, que invista em formação de público e que tenham um número significativo de sessões com entrada franca ou com ingressos populares. São coisas que a gente consegue fazer porque são espaços que são subsidiados pelo dinheiro público. É para isso que ele existe nesse formato público e é isso que justifica a sua função. Isso é essencial para a construção da cidadania, para a formação de público, para garantir espaços de difusão para filmes de diferentes nacionalidades e propostas estéticas.

 
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