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Selma James: “Sem nós, nada!”
Andrea D’Atri
@andreadatri

A feminista Selma James nasceu em 1930 e ainda continua ativa à frente da Greve Mundial de Mulheres. Em 1972, foi coautora —com a italiana Mariarosa Dalla Costa— de um ensaio que revolucionou a visão existente sobre o papel do trabalho doméstico não remunerado no sistema capitalista. Mais de meio século acompanhando as lutas das mulheres e outros setores oprimidos socialmente.

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Foto: Eamonn McCabe/ The Guardian

Colaboração e tradução de Alejandra Ríos

Em meados do século XV, Kentish Town era uma aldeia próspera. No século XIX, converteu-se em uma localidade populosa, conectada à Londres pelo transporte público. Atualmente, já integrada como um distrito da capital britânica, está sofrendo os efeitos da gentrificação: os aluguéis se encarecem; na avenida principal há cada vez mais tendas de produtos orgânicos delicatessen [lojas especializadas em produtos “gourmet”, N. T.] e de redes internacionais de alimentação, enquanto os pequenos comércios são obrigados a fechar.

Apesar das mudanças, pode se adivinhar seu passado populoso, que fez de Kentish Town o lugar escolhido por Marx para se estabelecer com sua família em 1856. Para sua esposa, Jenny von Westphalen, aquela casa de oito quartos da rual Grafton Terrace parecia “uma moradia verdadeiramente principesca comparada com os buracos em que costumávamos viver” [1]. Muito perto dali encontra-se a sede do Crossroads Women’s Centre fundado por Selma James, que conheci a mais de uma década atrás em Caracas [2].

“Estar politizado aos seis anos era algo normal”

Apenas entramos, segurando minhas mãos, Selma me pediu para falar com ela em espanhol e me perguntou por que queríamos entrevista-la. Creio que os seus trabalhos sobre o feminismo são muito conhecidos em inglês. Mas me interessa , fundamentalmente, que nos conte sobre muitas outras coisas que fez em sua vida apaixonante, que são bastante desconhecidas. Sabemos que você nasceu em 1930, em Brooklyn, Nova Iorque, no seio de uma família judia operária…

Nasci depois da crise de 1929, na época da Grande Depressão, quando havia um grande movimento social. Eu não sabia que isto era um movimento; achava que o mundo era assim. Meu pai era caminhoneiro; ele emigrou da Polonia quando era um adolescente, sua língua era o Iídiche [língua tradicional dos judeus asquenazes na Europa central, N. T.]. Minha mãe era norte-americana, tive que deixar a escola aos doze anos para ir trabalhar em uma fábrica. Meu pai havia fundado a repartição do sindicato de caminhoneiros do Brooklyn e era simpatizante do Partido Comunista que, naquele momento, lutava pela liberdade dos meninos de Scottsboro [3]. Mas minha verdadeira experiência, quando me envolvi em política, foi em 1936, durante a revolução espanhola.

Pensei que tinha sido um erro de tradução. “ Mas em 1936 você tinha seis anos! ”, exclamei para certificar que eu não havia entendido mal.

Sim. Meu pai fazia entregas com seu caminhão, levava caixas e pedia aos chefes dos lugares onde fazia as entregas que o dessem brinquedos, carteiras e outros objetos, que depois rifava para juntar dinheiro e enviava aos combatentes da revolução espanhola. As vezes ele recebia bonecas e me dizia: “não são para você, são para a Espanha”. E eu entendia isso. Nos anos 1930 você não tinha que explicar o que significava a palavra “classe”. Você sabia quem era o inimigo e tinha que lutar contra eles.

Com as outras crianças, juntávamos o papel alumínio dos pacotes de cigarro, e fazíamos bolinhos que enviaríamos para a Espanha para que os revolucionários fabricassem balas. Estar politizado aos seis anos era algo normal em qualquer lugar do mundo. Mas é assim em todas as épocas em que há lutas sociais. Meu marido C.L.R. James [4] viveu nos Estados Unidos, onde eu o conheci. Contava que quando viajou ao sul dos Estados Unidos, para apoiar uma greve de meeiros, o delegado saiu de seu carro e perguntou aos meninos que estavam na rua onde se encontrava o Mister Johnson [o pseudônimo de C.L.R. James, N. de R.] e crianças de quatro e cinco anos responderam: “Não conhecemos a nenhum Mister Johnson”. É uma fantasia achar que é possível manter as crianças fora da política.

Minha infância foi durante a presidência de Roosevelt. Um dia, minha mãe, enquanto me carregava com um braço, com a outra mão rompia o cadeado de uma porta, pois haviam despejado uma família por não pagar o aluguel e colocaram um cadeado para que não pudessem entrar novamente. Minha mãe me disse: “Quebro este cadeado e vou à oficina de Bem-estar Social, porque estamos lutando pela gente que não tem dinheiro”. A gente se organizava, dizia: “não vamos morrer de fome” e lutava.

“Mas eu não sei nada sobre ‘a questão da mulher’!”

Enquanto Selma nos oferecia chá, biscoitos e frutas, continuávamos conversando e admirando sua prodigiosa memória. Então, quando jovem, você trabalhou em fábricas…

Meu primeiro trabalho foi de garçonete. Para todo mundo em Nova York, seu primeiro trabalho era de garçonete e cuidando de crianças. Aos dezessete anos entrei em uma fábrica, na Califórnia. Trabalhava na linha de montagem de rádios, televisões, eletrodomésticos. Me dispus para estudar na universidade, mas depois decidi não ir. Pensei que a universidade ia fazer mal para minha mente. Aos quatorze ou quinze anos já conheci um grupo socialista que me surpreendeu: eles falavam de classes sociais e, dentro deste grupo, havia uma minoria que me interessou rapidamente.

Selma se refere à tendência Johnson-Forest do Socialist Workers Party —um partido trotskista norte-americano— liderada por Raya Dunayevskaya e C.L.R. James, o dirigente marxista caribenho com quem, quase uma década mais tarde, iria se casar. Antes disso, Selma se casaria com um trabalhador com quem teria seu único filho, Sam Weinstein. Essa experiência marcaria seu interesse pela opressão das mulheres na sociedade capitalista. Em seguida, rimos novamente com outra de suas anedotas, contadas com uma simpatia e vitalidade contagiosas.

Um dia, algumas mulheres me falaram que eu deveria falar em um grupo de discussão com outras mulheres, sobre esse tema. Eu disse a elas: “mas eu não sei nada sobre a questão da mulher !”. E elas me responderam: “mas você fala sobre isso o tempo todo!”. E eu falei “ Eu ?” – Selma representa para nós a cena que ocorreu a quase setenta anos atrás e nos faz rir –. “Sim”, me responderam. E quando me falaram isso, comecei a entender do que se tratava. Compreendi que eu falava todo o tempo sobre o trabalho domestico, sobre ser esposa, ser dona de casa, ser mãe… todas as coisas que faz uma mulher, mas não sabia que isto se chamava “A questão da mulher”.

E, então, pensei que teria que ler Engels, seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, que eu nunca tinha lido. E ainda não fiz, mas quero ler! E quando eu estava lá, uma mulher falou de Engels e eu falei sobre as donas de casa. A gente saiu rindo, porque falei como estou falando com você. Esqueci tudo o que eu tinha preparado e lembrei só de uma frase: o que qualquer mulher vivia era uma corrida desenfreada para sobreviver. E todo mundo riu, porque puderam desfrutar da conversa política. Era uma política prazerosa. Em general, nos debates políticos se escuta pessoas serias, que não fala de sua própria experiência, mas de livros… Mas eu disse “assim que é a vida”. Para muitos militantes da esquerda, particularmente os homens, era a primeira vez que ouviam alguém que falava sobre a realidade.

Foi por suas ideias sobre a opressão das mulheres que chamou a atenção de C.L.R. James, que em uma ocasião a preguntou o que opinava sobre o assunto e escutou atentamente à jovem, quase trinta anos menor que ele. Quando Selma terminou sua exposição, James disse “então, o que acabou descrever não é bom. Nunca ouvi algo como isto. Talvez tenha escutado algumas destas coisas, mas nunca com as ideias tão bem apresentadas desta maneira”. Se tratava das ideias centrais do que, mais tarde, seria seu primero ensaio, Lugar de mulher, publicado em 1952, quando Selma tinha vinte dois anos.

Durante algumas semanas, eu mostrava os rascunhos às minhas vizinhas, que não estavam na política; mas faziam muitos comentários. Eu não concordava com maioria deles; mas serviam para desenvolver argumentos melhores para responder a suas questões. Essa troca me ajudou, além disso, a esclarecer muito mais minhas próprias ideias. Isto se converteu, desde então, em minha forma de trabalhar e escrever, coletivamente.

Em Sex, Race and Class, publicado em 2012, Selma comenta como foi esta experiência: “Quando o folheto foi publicado, eu levei ao trabalho e vendi algumas copias às mulheres que conhecia na fábrica. Creio que também vendi umas copias às mesmas vizinhas que fizeram os comentários do rascunho. […]. Era completamente novo, até o momento, que as opiniões de una mulher da classe trabalhadora, especialmente uma dona de casa, fossem publicadas, inclusive por una organização socialista. Era a classe trabalhadora falando por si mesma. […]. Devem ter sido vendidos só mil ou mil e quinhentos exemplares; mas se esgotaram. E acho que pode ter sido porque os homens estavam quase tão interessados quanto as mulheres em descobrir o que se poderia dizer sobre a vida cotidiana a partir do ponto de vista das mulheres. E ninguém nunca me disse que isso não era ‘marxista’ ou ‘correto politicamente’ [5]”.

Recentemente, alguém me disse que eu fui muito corajosa ao escrever Lugar de Mulher. Mas eu falei: “Não foi uma questão de coragem. Eu só expliquei a vida tal como eu a conhecia”. Algumas feministas opinam que temos que conscientizar as mulheres sobre a opressão masculina. Mas sobre isso não há o que conscientizar. É absurdo! Isso nós vivemos. Eu tinha uma tia, que eu amava muito, que toda vez que via passar um cortejo de casamento, dizia –Selma faz um tom de voz mais sério e profundo para imitar sua tia–: “aí vai outra mulher que vai ser enterrada”. Sempre dizia isso! [risos].

Se o seu ponto de partida são as mulheres, todas as coisas são compreendidas de outra maneira. Se você está imersa profundamente na situação das mulheres e na relação das mulheres com a economia capitalista, com a sociedade em geral e com o mundo do trabalho, todo o resto também se enxerga de forma diferente. Se você se coloca no lugar das mulheres, adquire uma visão inteiramente diferente do mundo. Não é o único lugar por onde começar, pode ser por qualquer outra parte. Mas começando por ali e a partir dali tiramos conclusões sobre todo o restante.

Sua reflexão me recordou de uma frase de Leon Trotsky, que diz que “se na realidade queremos transformar a vida, temos que aprender a enxergá-la através dos olhos das mulheres” [6]. Lugar de Mulher trata, com uma linguagem simples, da mulher solteira e da casada, dos pequenos, da casa, das mulheres trabalhadoras e dos sindicatos. E termina com o seguinte parágrafo: “As mulheres passam de estar casadas a divorciarem-se, de serem donas de casa a trabalhar fora, mas em nenhuma parte encontram o tipo de vida que desejam para elas e suas famílias. As mulheres estam descobrindo cada vez mais que não há outra saída se não uma transformação total. Mas algo já está claro: as coisas não podem seguir como estão. Qualquer mulher sabe disso.” [7].

Neste primeiro escrito já se configura sua convicção de que os setores explorados e oprimidos farão o seu caminho, por si mesmos, na luta por sua emancipação. E esboça sua adesão antecipada ao autonomismo, que a terá como uma de suas vozes mais destacadas nos anos 1970, quando participará do lançamento da Campanha Internacional pelo Salário para o Trabalho Doméstico.

“Isso é maravilhoso!”

Os anos 1950, durante a juventude de Selma, foram o período em que os EUA se consolidaram como a primeira potencia mundial, enquanto a Europa e também o Japão começaram a elevar suas taxas de crescimento e se incrementou notavelmente a desigualdade em relação aos países do hemisfério sul. O resultado da IIª Guerra Mundial fortaleceu a burocracia estalinista na União Soviética, estendendo seu domínio a novos países no Leste Europeu e dando lugar a uma ditadura bonapartista policial muito más estável no final dos anos 1940. Mas esse fortalecimento foi também uma das razões pelas quais os Estados ocidentais se viram obrigados a fortalecer as políticas sociais, o chamado “Estado de bem-estar”, para garantir as condições de reprodução do sistema capitalista. Esta situação complexa pressionou as fileiras do marxismo revolucionário que se fragmentou em diversas correntes e tendências. Uma delas –entre quais se encontravam os fundadores da tendência Johnson-Forest– sustentou que na União Soviética havia “capitalismo de Estado”, quer dizer, não teria que ser defendida frente ao capitalismo ocidental.

No entanto, além das diferenças teóricas e políticas –incluindo a da necessidade de construir um partido revolucionário–, compartilhamos com Selma o profundo desprezo pelas organizações burocráticas que restringem as forças e a energia revolucionária das massas. A estatização e o fortalecimento de suas próprias instituições é um dos elementos fundamentais para compreender o século XX. Os capitalistas viram de perto o perigo da revolução proletária e tomaram as medidas para se protegerem: desenvolver os mecanismos de consenso e integração ao Estado e, mais tarde, aprofundar a fragmentação cada vez maior da classe trabalhadora e entre esta e seus próprios aliados na luta anticapitalista. A auto-organização é o caminho mais propício para superar essa fratura. Mas, segundo nossa visão, este não é um caminho isento de obstáculos: é necessário resolver questões estruturais, superar diferenças culturais e, fundamentalmente, enfrentar as burocracias das organizações de massas, não somente dos sindicatos, mas também as que se formam nos movimentos sociais, como na juventude estudantil ou no movimento de mulheres. Enquanto as direções destas organizações e movimentos manterem divididos em distintos setores a classe trabalhadora entre efetivos e terceirizados, nativos e imigrantes, homens e mulheres, sindicalizados e precarizados, e também a classe trabalhadora separada de outros movimentos sociais potencialmente aliados, a direita cultiva essas rachaduras para fazer sua política.

Nina López cita um discurso de Selma James em que, há várias décadas, já se referia a estas divisões: “A única opção que nos davam era escolher entre movimentos de libertação nacional, camponeses e estudantis por cima e contrários a classe trabalhadora tradicional. Eu nunca poderia dar as costas aos trabalhadores assalariados. Meu pai era um sindicalista. Éramos uma família sindicalizada. Eu trabalhei em uma fábrica, como também minha mãe e minha irmã. Minha outra irmã era auxiliar de escritório, algo que não é muito diferente. Mas eu também era uma mãe e meu filho, um estudante tentando de escapar do serviço militar obrigatório. Necessitávamos de estar de ambos os lados da divisão salarial; nós não poderíamos prescindir de nenhum deles” [8].

Markus Rediker aponta no prólogo do livro de Selma: “Uma das ideias principais encarnadas nos escritos de James é o que o falecido George Rawick –outro companheiro próximo de C.L.R. James– chamou de auto-atividade da classe trabalhadora: essa quantidade de cosas, diversas y muitas vezes invisíveis, que a classe trabalhadora –definida amplamente– faz por si mesma na busca pela emancipação. A ênfase está na ação, a agência, os novos significados e as possibilidades geradas, muitas vezes de maneira imprevisível, a partir do movimento social e do conflito material. C.L.R. James sempre enfatizou a importância das novas formas de luta que brotam constantemente desde baixo, muitas vezes junto ou outras vezes contra as instituições estabelecidas da esquerda, como os sindicatos e os partidos políticos. […] Desde seu primeiro folheto, que discutiu com suas companheiras trabalhadoras e vizinhas, Selma James sempre confiou não só na dignidade da gente comum, mas também em sua capacidade para pensar e atuar. “Cada cozinheiro pode governar”, escreveu C.L.R. James em 1956. [Selma] James levou essa mensagem otimista ao mundo do trabalho da mulher, da cozinha, e ao faze-lo aprofundou e ampliou seu significado” [9].

Seu interesse naquelas experiências que contêm, em germe e no presente, as formas sociais que se desenvolveram na futura sociedade pós-capitalista, se transparece no comentário que me fez quando eu tentava enaltece-la. Disse a ela que foi uma jovem de vanguarda: branca, judia, casada com um homem negro do Caribe, um socialista marxista com quem compartilhou depois a luta anticolonial em Trinidad, a luta antirracista na Grã Bretanha, que era o dobro de sua idade. Selma não compartilha a minha opinião.

Não sinto dessa maneira. Creio que as pessoas que não estão na política é quem sempre está na vanguarda. Essa gente pensa de forma diferente de quem estão na política. Tem muitas ideias muito atrasadas, mescladas com outras ideias que são do futuro. O que temos que fazer, nós que queremos destruir o capitalismo, é descobrir o futuro nessas ideias e começar a eliminar o passado, o lixo. Isto é, para mim, do que trata a política. Quando a gente se rebela um uma luta, numa greve, sai o que estava latente. Isso acontece todo o tempo.

Isso me lembra as experiências que vivemos na Argentina, durante a crise de dezembro de 2001. Conto a Selma sobre as operarias da fabrica têxtil Brukman. Se interessa com a anedota de uma trabalhadora falando frente a milhares de pessoas e dizendo “se podemos gerir uma fábrica, podemos gerir o país”. Encontra aí uma ratificação de suas convicções. Eu a falo que ideias tão avançadas conviviam, como ela mesma apontava, com outras do passado. Por exemplo, que as trabalhadoras eram uma esmagadora maioria na fábrica e mesmo assim se referiam a si mesmas como “operários de Brukman” até que narrei a elas as histórias das operárias têxteis da greve de Pão e Rosas em 1911 nos EUA ou a das que iniciaram a Revolução russa de 1917, que eu conhecia como feminista socialista revolucionária. Quando disse a Selma que, a partir de então, até os dois ativistas operários homens que havia na fábrica começaram a referir a si mesmos no feminino, dá una estrondosa gargalhada e exclama entusiasmada: Isso é maravilloso! Essa sempre foi também a minha própria experiência.

“Em cada movimento social, continua a luta de classes”

Em 1972, Selma James lança com outras feministas de distintos países, reunidas em Pádua (Itália), a Campanha Internacional do Salario para o Trabalho domestico, entre as quais se encontrava Silvia Federici quem a relembra numa publicação recente: “Nós coincidíamos com outras feministas na convicção de que o trabalho doméstico era a raiz de nossa opressão como mulheres. Diferente de outras feministas, acreditávamos que esse devia ser nosso principal campo de batalha por essa mesma razão e que a forma mais eficaz de nos liberarmos dele era nos negar a fazê-lo gratuitamente. Mas poucas feministas da época entenderam as motivações políticas desta escolha estratégica” [10].

A reunião de Pádua tinha o objetivo de pensar em um feminismo marxista baseado na classe trabalhadora, tomando a experiência do operaísmo italiano, distinto do que defendiam as organizações socialistas e o Partido Comunista. Sua primeira formulação se encontra nas páginas de O poder da mulher e a subversão da comunidade, o ensaio de Mariarosa Dalla Costa e Selma James, que revolucionou o enfoque tradicional sobre o trabalho doméstico e se converteu, até nossos dias, em um clássico nesse tema. Lá sustentam a tese de que a economia de mercado, baseada na exploração do trabalho produtivo da classe trabalhadora, se baseia no trabalho não remunerado das mulheres que reproduzem essa força de trabalho através do trabalho domestico e tarefas de cuidados.

Em 1970, conheci a Mariarosa, que era docente na Universidade de Pádua e necessitava uma hospedagem em Londres durante um curto tempo. Ela ficou em minha casa e nós ficamos amigas. No ano seguinte eu a visitei na Itália e lá falávamos muito sobre feminismo. Ela me pediu para explicar do que se tratava o feminismo e, em seguida, escreveu um artigo baseado no que eu lhe disse. Mais tarde, trabalhamos juntas no manuscrito e falei para ela assinar com o nome dela para que sua publicação a protegesse da perseguição sexista que sofria na universidade. Mas pouco depois foi publicado em inglês, com a assinatura de ambas, em uma edição que incluía também o meu primeiro ensaio Lugar de Mulher.

Em 1980, participei da Segunda Conferencia Mundial em Copenhague. Devia ser feita no Irã, mas ocorreu uma revolução e então tiveram que mudar a sede –Selma sabe que viveu grandes experiências de lutas sociais, greves, guerras, revoluções, um tesouro de lembranças que desejamos que compartilhe conosco–; Quem ia inaugurar a conferência era a princesa que haviam derrubado! [risadas].

Lá em Copenhague, as Mulheres Negras pelo Salario para o Trabalho Domestico colocavam que deveria ser incluído o trabalho não assalariado no documento oficial, no paragrafo 1.0.3. E cantávamos “paragraph one, o, three… all our work in the GNP” [“parágrafo 1.0.3., todo nosso trabalho no PIB”, N. da A.]. Dali também saiu a consigna que diz “As mulheres contam. Contem o trabalho das mulheres”. Mas entendemos que para que os governos nos escutar, tínhamos que conseguir que fosse levado para as Nações Unidas. Assim que falou uma representante da Organização Internacional do Trabalho, eu a questionei. “Venho da Campanha pelo Salário para o Trabalho Domestico”, falei a ela. “Desculpe, poderia repetir de onde?” –voltou a sorrir malandramente, enquanto imita a calma da funcionária– e eu repeti.

Nós passamos toda a tarde escutando anedotas como essa, com Selma mudando os tons de voz, para representarmos as personagens de que falávamos. Sua risada antecipava os finais destas historias que são de sua própria vida, mas também de uma grande parte da historia do feminismo. Paramos uns minutos, para tomar outro chá e aproveitei para presenteá-la com um lenço verde da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto, da Argentina. Alexandra pergunta o que é que mantêm ela tão jovem.

O que me mantêm tão jovem? Falar assim como estamos fazendo! Estou desfrutando muito desta entrevista!

Ante de irmos, com tom firme que busca transmitir suas ideias com convicção, mas também buscando palavras simples, para que sua mensagem seja compreensível, Selma nos diz:

Acredito firmemente que a luta das mulheres está mal entendida. As mulheres reproduzem toda a raça humana e o capital oculta o fato de que esse é o trabalho central da sociedade e, por tanto, da economia. Querem fazer que o mercado seja o central; mas nós somos o central. “Without us, nothing!” –diz enfaticamente–. E depois repete em espanhol: “Sin nosotras, ¡nada!” [Sem nós, nada! , N. T.] . Sobre nós recai o trabalho reprodutivo gratuito porque há exploração capitalista. Se não houvesse exploração capitalista, não faríamos esse trabalho de reprodução da força da trabalho de maneira gratuita e não reconhecida.

É muito importante que o feminismo seja internacional, que não fique preso em um país ou em um setor. E há um setor que monopolizou o feminismo. Isso significa que a maioria de nós ficou de fora; porque as gerentes, as políticas, as CEOs que administram o capital e se proclamam feministas, não são feministas dos 99 %. Elas querem nos dirigir e nós negamos que nos dirijam e isso vai a ajudar a que os homens nos apoiem. Em cada movimento social, continua a luta de classes

Quando Selma começou a organizar as mulheres para lutar pelo salário para o trabalho domestico, a maioria do movimento feminista estava centrado nas relações de poder entre os gêneros, a sexualidade e a discriminação das mulheres no trabalho assalariado. Sua preocupação de que o trabalho reprodutivo das mulheres fosse levado em consideração implicava uma luta, também, contra as organizações sindicais e políticas que não consideravam que essas mulheres constituíam una grande maioria invisibilizada da classe trabalhadora. Suas ideias abriram um imenso campo de debates, que a nova onda internacional de movilizações feministas traz novamente à cena e sobre elas que temos comunicado em outros artigos [11].

Nas últimas décadas, sob o chicote da precarização e da flexibilização neoliberais, grandes setores de massas que eram exploradas sem salário se incorporaram ao mercado de trabalho transformando a fisionomia da classe assalariada, mas também aumentando seu peso social. Atualmente, milhões de assalariados, mas também assalariadas, gerenciar o fornecimento de energia e as telecomunicações, conduzem os meios de transporte que permitem a circulação das mercadorias e da força de trabalho, realizam a limpeza “invisível” de fábricas, empresas e escritórios diariamente. Podem colapsar as grandes metrópoles, interromper o funcionamento da economia e afetar os lucros capitalistas. Podem também, prefigurar uma nova ordem social, controlando a produção e o abastecimento à serviço das grandes maiorias populares que são vítimas da sede de lucro dos capitalistas, da carestia, da inflação, dos altos custos para sobreviver.

Pela primeira vez na História, quase a metade dessa classe majoritária são mulheres que, a sua vez, garantem a vida de milhões de seres humanos sem receber um salário por isso, reproduzem gratuitamente a força de trabalho em seus lares –a sua, a de seus companheiros, a que se prepara para o futuro e a dos idosos que já foram despejados pelos capitalistas–. Nas mobilizações, nas reivindicações, nas organizações e nos movimentos sociais, aparece dividido o que não está dividido nas vidas de milhões de mulheres!

Selma, que abriu seus olhos ao mundo durante a revolução espanhola, se aproxima de seus noventa anos ao calor das revoltas e resistências que cruzam o planeta desde Chile, Equador e Haiti, até Hong Kong, passando por Catalunha, Porto Rico, Iraque, Honduras, Bolívia e seu querido Caribe. O desafio que têm as jovens gerações que são protagonistas deste presente, onde o feminismo voltou a emergir como um movimento nas ruas, é articular una política de carácter estratégico que possa unir esse movimento onde as mulheres participam individualmente, como “cidadãs” –sem exercer toda a força agregada da classe social majoritária que pertencem–, com a classe assalariada, onde pela primeira vez na história, as mulheres constituem mais de 40 %, para enfrentar o sistema capitalista patriarcal e transformá-lo radicalmente. Porque unicamente arrancando suas raízes, profundamente, é que podemos tomar o céu por assalto e ganhar, para toda a humanidade, o direito ao pão, mas também às rosas.

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Carta de Jenny Marx citada em Rachel Holmes, Eleanor Marx: A Life, Bloomsbury Books, Londres, 2014, p. 10.

[2] Agradecemos a Nina López, coordenadora da Greve Mundial de Mulheeres, por facilitar o encontro com Selma e colaborar, também, com a tradução durante a entrevista e sua revisão posterior.

[3] Os meninos de Scottsboro foram nove adolescentes afro-americanos acusados sem provas, em 1931, de estuprar duas mulheres brancas no Alabama (Estados Unidos),enquanto viajavam em um trem de carga.

[4] Cyril Lionel Robert James (1901-1989), mais conhecido como C.L.R. James, foi um historiador, jornalista, teórico socialista e ensaísta de Trinidad e Tobago. Foi uma das vozes pioneiras da literatura pós-colonial. Sua obra mais conhecida, Os jacobinos negros, sobre a revolução do Haiti, é considerada como um texto fundamental da história afro-caribenha. Sendo parte do Socialist Workers Party, liderou a tendência Johnson-Forest com Raya Dunayevskaya –que havia sido a secretaria de idioma russo de Trotsky no México–. Depois, sustentando que a URSS se havia desenvolvido um capitalismo de Estado, abandonaram o movimento trotskista. Finalmente, fundaram sua própria organização, chamada Correspondência. Nos años 1940, C.L.R. James havia estudado Marx e Hegel e concluiu que os partidos de vanguarda oprimiam seus integrantes trabalhadores e os impulsos revolucionários da classe trabalhadora, pondo os intelectuais no lugar dos trabalhadores, e fundou uma organização baseada no auto-ativismo, na qual os intelectuais aprendiam dos trabalhadores, e um jornal escrito pelos próprios trabalhadores, em que Selma teve sua própria coluna quinzenal.

[5] Selma James, Sex, Race and Class. The Perspective of Winning, PM Press, London, 2012, p. 14. [T. de la A.].

[6] León Trotsky, Problemas de la vida cotidiana, Edicions Internacionals Sedov, Valencia, 2015.

[7] Selma James, ob. cit., p. 31.

[8] Nina López, “A Winning Perspective”, en Selma James, op. cit., p. 9.

[9] Marcus Rediker, “A Grateful Preface”, en Selma James, op. cit., pp. 1-2.

[10] Silvia Federici, Salario para el Trabajo Doméstico. Comité de Nueva York 1972-1977. Historia, teoría y documentos, Traficantes de Sueños, Madrid, p. 23.

[11] Ver Andrea D’Atri e Celeste Murillo, “Nosotras, el proletariado”; Ariane Díaz, “Economía política de la reproducción social: trabajo y capital”, Parte I y Parte II, y Paula Varela, “Sobre la relación entre género y clase. Entrevista a Tithi Bhattacharya” na revista Ideas de Izquierda.

 
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