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IDEIAS DE ESQUERDA
“A exceção e a regra”, de Bertolt Brecht: Reflexões a partir de experimentos cênicos realizados em São Paulo, Brasil
Laura Brauer

Laura Brauer é uma atriz, diretora e professora de interpretação argentina. Especializou-se em Teatro Político. Estudou “Teatro do Oprimido” com Augusto Boal (Brasil) e Jana Sanskriti (Índia) e estudou Metodologia do trabalho do ator e do encenador brechtiano em Berlim entre 2006 e 2018.

Em Berlim participou de cursos de atuação e de direção da Escola de Teatro “Ernst Busch” e realizou experiências de teatro documentário no Berliner Festspiele. Foi bolsista da Secretaria de Cultura de la Nación Argentina, da Academia de Arte de Berlim, do Goethe Institut e do ITI (International Theataer Institut) para seus estudos e práticas de Brecht e Boal em Alemanha.

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Ilustração: Amanda Navarro

Há cerca de quatro anos venho realizando experiências de montagem de cenas da obra “A exceção e a regra” no contexto de cursos e oficinas teórico-práticas sobre as propostas de Bertolt Brecht. Estas são dirigidas a atores e não atores e foram realizadas em diversas províncias da Argentina – de onde venho –, na “Casa Bertolt Brecht” de Montevideo (Uruguai) e em diferentes espaços de São Paulo (Brasil), onde moro. Este ano decidimos montar a obra junto a um grupo de estudantes do terceiro ano da formação de atores da “Escola Livre de Teatro”1 de Santo André.

Vale a pena, antes de contar sobre este trabalho, descrever minimamente o contexto teatral no qual se insere esta experiência a partir do meu ponto de vista como argentina, estudiosa de Brecht e que teve contato com o teatro alemão dos últimos catorze anos e as propostas vinculadas ao teatro de Brecht da Escola de Teatro Ernst Busch de Berlim, tanto na área de direção como de atuação.

O que primeiro me chamou a atenção em São Paulo é o enorme interesse que existe em relação a Brecht, tanto por sua teoria, quanto por seu teatro. Um interesse muito maior do que existe na Argentina e talvez maior do que o que existe na América do Sul em geral. Me impressionou descobrir quantos teóricos locais escrevem sobre o teatro épico desde os anos 1960, quase ininterruptamente, até hoje. Alguns dos autores mais importantes e influentes são o exilado alemão Anatol Rosenfeld2, Fernando Peixoto3, José Antonio Pasta4 e Iná Camargo Costa5, para nomear apenas alguns. A maioria deles se dedicou também a pensar a experiencia literária e teatral do Brasil.

Também encontrei aqui vários grupos que se definiam como épicos ou brechtianos, sendo a “Companhia do Latão”6 – dirigida pelo dramaturgo e teórico Sergio de Carvalho7 - o mais importante. Trata-se de um grupo criado em 1996, que se propôs realizar um estudo da obra teórica de B. Brecht como modelo para construir o teatro épico dialético no Brasil.

Também me chamou a atenção a quantidade de obras de Brecht que se encenam e o aumento do interesse pelo autor em circunstâncias políticas como o ascenso de um governo de extrema direita. Brecht parece ocupar este lugar no imaginário coletivo, de ser um questionador eficaz em tempos sombrios; é visto como um autor necessário de ser encenado, estudado, etc. Na Argentina, por exemplo, não é assim.

Vamos, agora sim, à experiência da montagem de “A exceção e a regra”. Por se tratar de uma obra didática8, mas plausível de ser representada no teatro e por atores, pareceu ideal como material de estudo, assim como a discussão sobre a luta de classes pareceu pertinente em um contexto em que ela é mencionada como pertencente a uma análise obsoleta e o tema atual mais vigente parece ser a luta pela integração dos grupos minoritários9, que aparece – a princípio – cindida de uma análise sobre suas condições sociais e econômicas. Por sua vez, no contexto político desse ano, mostrou-se especialmente interessante trabalhar com esse material e discutir as questões de classe a partir de uma perspectiva dialética com estes jovens, também como possibilidade de criar um espaço para esta análise e reflexão a partir do fazer teatral.

O trabalho começou com um semestre introdutório no qual o grupo manifestou interesse em conhecer mais sobre Brecht, já que as referências existentes não pareciam coincidir com as informações e propostas que eu trazia para nossas aulas. A análise a partir da perspectiva do materialismo dialético se mostrou como algo novo para a maioria deles. Foi considerada reveladora, mas também foi questionada.

Desde o começo foi proposto realizar duas montagens do mesmo texto, para que estes fossem apresentados em espaços como organizações sociais, sindicatos, escolas, etc., com o propósito de fomentar uma discussão sobre os assuntos do material, assim como sobre as formas de representação. Nos interessava que o público pudesse distinguir o que é dramaturgia e o que é direção, e ressaltar a importância do sentido social do material através de duas abordagens interpretativas diferentes, que, no entanto, produzem a mesma leitura social. Tentamos evidenciar, ao mostrar duas possibilidades muito diferentes, que não é possível entender a proposta de Brecht por meio de uma técnica de atuação ou de recursos isolados, nem a partir de um estilo determinado. Nos propusemos também mostrar o uso do humor e revelar contradições partindo de que as cenas não expressassem graficamente o texto, mas sim o “comentassem”, ou seja, que o tornassem compreensível, não de forma literal, mas sim de forma social. Isto por meio das configurações espaciais, o trabalho gestual, etc.

O trabalho foi árduo e implicou em tarefas de observação, de assistir e analisar criticamente outras encenações de textos de Brecht, pesquisa de casos jornalísticos para a inclusão de notícias locais que permitissem ver a atualidade do material10, muito trabalho sobre o tipo de interpretação, que foi feito em conjunto com uma professora de máscara (Cuca Bolaffi) e trabalho musical, feito em conjunto com um músico (Jean Pierre Kaletrianos) que os orientou em todas as composições e interpretações musicais, diferentes em cada grupo de montagem.

Vinculado ao fato de que nesse curso metade dos estudantes são afrodescendentes e que os temas raciais no teatro estão sendo muito discutidos, surgiu o questionamento sobre se era interessante ou não que um afrodescendente negro representasse o comerciante Karl Langmann em um elenco em que nem todos eram negros, já que isto reivindicaria o direito do ator a representar personagens que não sejam unicamente oprimidos, ainda que isso evidentemente deturparia a leitura, sobretudo em um país com um passado colonial e escravista e um presente consequentemente herdeiro desta circunstância.11 Finalmente, foi decidido que os brancos representariam o explorador, mas a discussão não foi encerrada.

Antes de terminarmos de ajustar algumas questões técnicas, já assumimos o compromisso de apresentar a obra em espaços estratégicos como um centro comunitário, na escola de formação “Florestan Fernandes” (do MST), na “Casa Marx”12 e em espaços teatrais. Dessa forma, nos dispusemos a mostrar a obra em processo de produção para que as discussões posteriores sobre o material nos permitissem pensar mudanças, ajustes e caminhos para continuar.

Talvez o mais chamativo dessas primeiras experiências tenha sido verificar como o texto é relevante e atual para o público de todos os contextos, mas sobretudo comprovar como se potencializar quando é feito para as pessoas que também interessavam a Brecht e para as quais escrevia, ainda que com as diferenças de tempo e geografia. Me refiro a trabalhadores organizados ou em processo de organização, que estão querendo justamente ver a obra para pensar melhor sobre suas próprias circunstancias. A experiência demonstrou que assistir a obra possibilitou reflexões fundamentais para eles, segundo nos informaram.13

O que estamos percebendo é que a dinâmica de apresentar as duas versões e depois conversar está abrindo um espaço de aprendizagem para todos os que estão presentes. Nele, estamos pensando juntos sobre a luta de classes, as estratégias da classe dominante, os tribunais, mas também sobre como fazer teatro, que função ele pode ter, que importância tem o texto, que modo de atuação interessa, que música, que coisas se espera que aconteçam, que corpos, que grau de expressividade, etc.

Em relação ao resultado estético, inacabado e em permanente mutação, a experiência está sendo extremamente rica também para entender, aprender e descobrir como produzir aquilo que Brecht se propôs a fazer, mas aqui nessa latitude, com esses recursos e nessas circunstâncias concretas.

(Tradução: Fernando Pardal)

Notas:

1- A “Escola Livre de Teatro de Santo André” (São Paulo), mais conhecida como ELT, foi criada em 1990 durante a gestão do Partido dos Trabalhadores (PT). Trata-se de uma escola pública de formação de atores, que também oferece cursos abertos à população. Não outorga titulação profissional, mas se tornou tão conhecida que muita gente se interessa em estudar ali pelo prestígio que ela confere. Está destinada especialmente a jovens periféricos, dando prioridade – por meio de um sistema de cotas instituído há um ano – a negros, indígenas e LGBTs.

2- Chegou ao Brasil escapando do nazismo em 1937. Havia estudado filosofia, teoria literária e história na Universidade Humboldt, em Berlim, e, após um tempo em São Paulo, começou a escrever e dar aulas de estética, sendo seus escritos e aulas de grande influência para importantes teóricos e críticos locais. Seu conhecimento do teatro alemão e seu contato com o teatro de Brecht fez com que seus escritos fossem de grande utilidade e contribuição para o entendimento do teatro épico.

3- Escritor, tradutor, ator e diretor teatral, ligado ao “Teatro Oficina” de São Paulo até 1968. Autor de várias obras vinculadas às concepções brechtianas, membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Interessado em conhecer melhor as propostas do Berliner Ensemble, realizou um estágio neste teatro, ao que parece no final da década de 1960, e pôde acompanhar algumas montagens que posteriormente adaptou para o cenário paulistano. Também obteve a autorização pessoal de Manfred Wekwerth para traduzir um pequeno texto de sua autoria em 1984, que se tornou muito popular, e inclusive foi editado três vezes, chamado “Über Regiarbeit mit Laienkünstlern” (“Sobre o trabalho de direção com atores amadores”) e traduzido como “Diálogos sobre a encenação” (Editora Hucitec).

4- Professor e doutor de Literatura Brasileira na USP. Pós-doutorado na “École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris”. Seus trabalhos de pesquisa se concentram na novela e nos contos brasileiros, assim como estética teatral, tendo publicado o livro “Trabalho de Brecht: breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea”.

5- É professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da USP (FFLCH USP), autora de vários ensaios e livros sobre teatro brasileiro e uma reconhecida pesquisadora sobre a obra de Bertolt Brecht. Militou de forma intensa e criativa em vários grupos de teatro de São Paulo, e assessorou a área de cultura do “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” (MST).

6- Assim chamada em referência ao texto “A compra do bronze”, em português “A compra do Latão”, de B. Brecht. Seu site: www.companhiadolatao.com.br/site/

7- Diretor, autor e crítico. Se especializou no estudo do épico-dialético em seus espetáculos. Colabora com jornais e revistas como crítico e ensaísta no universo das artes cênicas. É professor de teoria do teatro e literatura dramática na USP. Colaborou, junto a seu grupo, frequentemente com o MST e outras organizações sociais.

8- As obras didáticas ou obras para ensinar/aprender (Lehrstücke) não precisam de público, estão pensadas como exercícios de dialética para que quem as faz, aprenda. A maioria delas foram realizadas com coros de operários, estudantes e partidos políticos. No caso desta obra, por motivos políticos, nunca foi realizada nestes contextos, apesar de haver sido escrita para eles. É considerada, por isso, uma obra “híbrida”: entre didática e épica. É a única obra “didática” que Brecht autoriza que se encene, e o autoriza tanto para atores como por não atores, tanto em espaços não teatrais como em teatros.

9- Nos referimos às lutas antirracista, feminista, lutas pelos direitos LGBT, direitos dos imigrantes, indígenas etc.

 
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