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CHILE
A faísca acendeu a chama: jornadas revolucionárias, governo em xeque e quebra do "consenso"
Juan Valenzuela
Pablo Torres

No momento em que fechamos essa nota, a revolta massiva contra um novo aumento da passagem se transformou em uma verdadeira rebelião popular que colocou em xeque o governo do direitista Sebastián Piñera, deixou virtualmente ferido o regime chileno e o "consenso" da transição. A luta de classes retorna violentamente à cena.

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Uma verdadeira rebelião popular

Organizadas desde o início da semana por vários grupos de jovens secundaristas, sobretudo de colégios emblemáticos como o Instituto Nacional, que vinha sofrendo uma repressão brutal dois meses atrás, as concentrações nas estações, as pessoas sentadas nas plataformas do metrô e os catracaços ganharam a simpatia de milhões de trabalhadores e setores populares, que viram na juventude um exemplo de decisão e que expressou seus sentimentos e inquietações frente ao regime chileno e suas heranças da ditadura.

Sexta-feira se transformou diretamente em uma revolta social contra o governo. Começou com massivos protestos todo o dia, ocupando as estações de metrô. A brutal repressão contra jovens, mulheres, idosos, crianças e estudantes se massificaram e deram lugar ao enfrentamento em mais de 70 estações. O fechamento de quase todas as linhas de metrô por parte do governo levou Santiago ao caos, com as principais vias da cidade bloqueadas e o sistema metroviário sem funcionar, produto das manifestações. Essa estratégia buscava reprimir a vanguarda da juventude e jogá-la contra a população, como os "vândalos" de "grupos organizados" que haviam feito o "caos". Mas isso só incendiou ainda mais a situação. Como coloca corretamente o colunista Ascanio Cavallo, "’o santiagaço" [o que houve em Santiago] transbordou tudo. Os fatos sugerem que, ao afetar as linhas de metrô, o sistema nervoso foi afetado, não apenas o da cidade, mas de todo o corpo social".

A simpatia expressa nas redes sociais tornou-se um grande descontentamento e, à tarde, após o anúncio de Piñera de aplicar a “lei de segurança interna do Estado” da ditadura, Santiago se rebelou, não apenas na capital e aos arredores do palácio de La Moneda, mas com panelaços e barricadas na maioria dos municípios periféricos onde a raiva popular explodiu. No bairro de Maipú, houve uma verdadeira "batalha" que forçou a polícia a se retirar, e também em muitos outros bairros da periferia. Prédios de empresas privadas, estações de metrô e locais públicos foram incendiados e a polícia ficou completamente sobrepassada.

Piñera, que recebeu grande repúdio massivo pela ida a uma pizzaria em um bairro nobre em um aniversário de família no meio da revolta, decidiu à meia-noite impor o "estado de emergência constitucional" que colocou a região metropolitana no comando das Forças Armadas, uma medida autoritária sem precedentes na democracia e que fez voltar o imaginário das medidas de ditadura. No entanto, foi como gasolina no fogo, passou da correlação de forças e a revolta transformou-se em rebelião popular no sábado. Em Santiago, centenas de milhares de pessoas participaram das concentrações, com panelaços, barricadas e confrontos com a polícia e, em alguns casos, com os militares, em um desafio aberto que colocou o governo e o próprio estado de emergência em xeque. Os vídeos de manifestantes gritando com os militares com uma moral que não era vista há décadas atrás se tornaram virais em todos os lugares.

E foi além: o "santiagazo" se tornou uma rebelião popular nacional em todas as regiões do país. De grandes concentrações urbanas como Valparaíso, Concepción ou Antofagasta, a solidariedade contra o estado de emergência em Santiago nacionalizou o conflito nos locais mais remotos, em alguns casos com enorme ódio popular. O país inteiro se rebelou e explodiu um ódio social como expressão de um profundo mal-estar social da "onça" ou do "oásis" da América Latina.

Na tentativa de conter a escalada do levantamento, enquanto Piñera anunciou a "suspensão" do aumento da tarifa, o General a cargo do estado de emergência anunciava o toque de recolher, uma medida não usada desde 1987, a ditadura militar. No entanto, as 22h, no horário do toque de recolher, este foi desafiado com barricadas, panelaços e sobretudo uma dose de ódio, com dezenas de ônibus queimados, saques em centenas de grandes estabelecimentos comerciais como Walmart, queima de cabines policiais e postos de controles; incêndios de estabelecimentos públicos como a municipalidade de Quilpué. "Símbolos de poder" como o edifício de O Mercúrio de Valparaíso (diário histórico da reação chilena) também foi incendiado. A resposta do governo foi estender o estado de emergência a mando dos militares em Valparaíso, Concepción, Coquimbo, Serena e Rancagua, com toque de recolher em Valparaíso, e com um saldo de vários mortos em Santiago.

Gerações mais velhas, trabalhadoras e trabalhadores que foram para seus locais de trabalho, mulheres aposentadas que pediram tempo aos escritórios e muito outros casos demonstraram muito apoio e simpatia. O aumento dos transportes não afetou a passagem dos estudantes, mas nas ruas também estão em peso os jovens lutando por todos: esse tem sido o sentimento geral. Mas não para ficar assistindo, e sim para acompanhar essa luta nas ruas. A juventude secundarista tem sido um "câncer" constante contra o regime herdeiro do pinochetismo, como mostrou a "rebelião dos pinguins" de 2006, após a luta massiva de 2011. O governo e o regime disseram-lhes para "guardar o ódio" e eles acumularam-no e agora oferecem-no a todo o país descontente. "Obrigado aos jovens por nos fazer perder o medo", se escutava das velhas gerações.

Já não se trata mais do aumento da passagem, mas sim de um mal estar social profundo pelas heranças da ditadura que seguem vivas, com salários e aposentadorias de fome, trabalho precário, preços altos, endividamento, e muitas outras coisas. "Se acordarem mais cedo para ir ao trabalho terão mais vida social” “se acordam mais cedo, pagarão menos ", "ninguém reclama quando sobem os preços dos tomates": essas foram algumas das frases dignas de Óscar proferidas por um governo que está a serviço dos capitalistas, completamente descolado da vida do povo trabalhador. E que foi acendendo a chama.

Se trata de um levante espontâneo que continua aumentando, sem que nenhuma organização política e sem que as organizações de massas - sindicais ou estudantis - mais importantes tenham encabeçado a luta. Por ora, ao contrário, ainda que se pronunciem a favor, seguem assistindo pela janela. Se trata de jornadas revolucionárias que identificam como inimigos o governo, a polícia e o exército, assim como as diversas instituições do regime, cujas bases são o mal estar social e que deixou ferido o "pacto social" da transição à democracia. Os incêndios, os panelaços, as barricadas, os enfrentamentos e os saques constituem uma expressão elementar deste ódio que tomou as ruas.

Uma situação com características pré-revolucionárias e a profunda ferida do “consenso neoliberal”

Piñera levou as Forças Armadas para as ruas e impôs o estado de emergência com toques de recolher para a "grave alteração da ordem pública". Se trata de um salto na "bonapartização" do regime: seu apoio, no momento, é o aparato militar e policial. Como o editorial de hoje em El Mercurio diz, caiu o "consenso mínimo" da transição para a democracia: "o estado de direito e o consequente respeito por uma estrutura de regras cuja validade é reconhecida, independentemente do direito legítimo de discordar delas e querer fazer reformas dentro da estrutura da legalidade”. O pacto social da“ transição pactuada” está quebrado, o que não significa necessariamente que está pronto para cair, para isso ainda são necessários objetivos e uma estratégia adequada.

Com o uso do Exército, Piñera buscou não apenas reprimir quando a polícia foi superada, mas também assustar a população com o histórico “os militares estão chegando” e, assim, evitar a ativação das principais reservas da classe trabalhadora e do movimento estudantil em um cenário que questionasse o conjunto dos poderes. As forças da classe trabalhadora, intervieram nessa rebelião, mas por enquanto "diluídas" na massa e não com suas organizações e métodos de greve e mobilização, são estratégicas para um novo salto na situação, e é isso que o governo busca impedir. As burocracias sindicais e os partidos reformistas de esquerda se recusam a impulsionar uma luta aberta e generalizada contra o governo e agem como uma força de "contenção" para que a situação não se torne revolucionária.

Este levante está em curso e está aberto até onde ele irá. A Unión Portuaria convocou a preparação de uma greve geral e, durante este domingo, uma série de assembleias estudantis e sessões plenárias estão sendo realizadas. Amanhã, uma "paralisação nacional" foi convocado pela Confech (organização de estudantes universitários) e por organizações de estudantes do ensino médio e secundaristas. Diferentes setores de trabalhadores chamam e exigem "Paralisação" ou "Greve". Segunda-feira ameaçará novamente acender a luta, e batalhões centrais da classe trabalhadora podem entrar em cena, o que imprimiria um novo curso para a rebelião, ao lado dos jovens de diferentes escolas, faculdades e universidades. Por esse motivo, o governo decretou a "suspensão" das aulas, buscando tirar as pessoas das ruas.

Já não se trata apenas do aumento da passagem e sim de uma luta que ameaça derrubar um governo que está suspenso no ar, e busca se reafirmar com os militares e com a oposição burguesa da Ex-Concertación. O que se coloca é a urgência da classe operária intervir, estruture este movimento em seus locais de trabalho, nas escolas e nas universidades, para desenvolver a greve geral que coloque em primeiro lugar a derrota do estado de emergência e a necessidade imediata da queda do governo, para que assim a luta tome um rumo revolucionário. Disposição de combate existe e muita. A discussão que se abre agora é qual é a estratégia para vencer.

Via institucional ou via revolucionária?

A ex-Nova Maioria desempenhou um papel favorável ao governo de Piñera. Primeiro suas figuras centrais, como José Miguel Insulza repudiaram as “evasões” e apoiaram a repressão policial. Depois, com o estado de emergência, se distanciaram da medida. Mesmo assim no dia ontem, depois da suspensão do aumento da tarifa e enquanto se instalava o toque de recolher em Santiago e o estado de emergência em Concepción e Valparaíso, com toque de recolher também nessa cidade, o PPD, PS, PR e DC, todo partidos da velha Concertación e do pacto de “transição” com os genocidas, realizam um novo giro aceitando o diálogo com o governo. No dia de hoje se reunirão com Piñera em La Moneda para encontrar uma saída à rebelião. Lamentável foi a posição direitista de Pablo Vidal do RD, que se localizou junto ao governo, saiu a público criminalizando os protestos como “violentos”.

Com isso não fazem mais que repetir seu papel histórico de se localizar como “falsos amigos do povo” para apoiar o regime herdeiro da ditadura. Fazem isso nesse momento em que há um governo em xeque e uma rebelião popular em curso que se nacionalizou e segue crescendo, desempenham assim um papel de sustentáculo de um governo que está isolado. Mesmo assim, o progressismo “neoliberal” já não é o que era, estão em franca decadência, o rechaço popular alcança suas principais figuras e partidos.

O Partido Comunista e a Frente Ampla que vem ganhando muito peso na situação como produto de sua agenda de reformas sociais, se localizaram rapidamente do lado dos protestos, prestando um apoio passivo. Depois disso fizeram um chamado ao governo para “escutar” o povo, a parar a repressão e realizar “diálogo”. Depois do decreto do estado de emergência, com chamado ao diálogo por Piñera, se distanciaram do chamado, denunciaram a militarização e condicionaram o diálogo ao fim do estado de emergência. Ambas organizações se uniram aos protestos ontem, colocando suas principais referências, contando inclusive com a participação do prefeito de Recoleta, Daniel Jadue (PC) e do deputado Gabriel Boric (Frente Ampla) que “enfrentaram” os militares lhes dizendo “fora”.

Enquanto taticamente condicionam o diálogo ao fim do estado de emergência, sua saída é estrategicamente uma “via institucional”, isso significa dizer mediante as velhas instituições do velho regime. No caso do PC, como assinalou seu presidente, o deputado Guillermo Teillier: “Se ele está renunciando governo, porque governar significa acolher as demandas da cidadania e se protege detrás dos militares, se ele não tem capacidade de governar, o melhor que poderia fazer seria renuncia e chamar novas eleições.” No caso da Frente Ampla, Beatriz Sánchez afirmou: “O governo renunciou à democracia (...) o país hoje está pedindo de nós uma definição (...) como Frente Ampla afirmamos: estamos claramente com o povo.”

Por um lado é correta a localização de se negar ao diálogo com o governo ao estar de pé o estado de emergência, porém isso é uma posição “mínima” para alguém de esquerda. Nesse momento não se trata de ficar para trás dos fatos e apoiá-los passivamente, mas trata-se de oferecer objetivos superiores, um método e uma estratégia que permita transformar esta rebelião em uma mobilização revolucionária para derrotar o governo e o regime político e social de conjunto.

Afirmamos que se trata de um “apoio passivo” e de uma saída “institucional” pois se trata de um grande peso político-parlamentar, com quase 30 parlamentares entre o PC e a Frente Ampla, prefeitos reconhecidos como Jorge Sharp de Valparaiso bem como seu peso dirigente nas principais organizações de massa, como a Central Única de Trabalhadores, a No+AFP, o Colégio de Professores, nos mineiros e na saúde, só para mencionar alguns exemplos. Estão olhando pela janela, sem contribuir para que a classe operária, de forma organizada, vá à batalha com suas posições estratégicas e as “reservas” de milhões de trabalhadores, cuja maioria se encontra desorganizada (sem sindicatos nem centrais sindicais) e intervém na rebelião, mas diluída e sem seus métodos de combate.

O PC e a Frente Ampla que poderiam desempenhar um papel central para que se desenvolva a situação em um sentido revolucionário, e que se coloque em perspectiva a derruba do governo e do regime, não busca isso. Buscam justamente “conter” esse desafio superior. Enquanto falam de apoiar, e olham pela janela, com as organizações de massa recusam-se a convocar a Paralisação e menos ainda a Greve Geral para derrotar o estado de emergência e o governo dos empresários.

A via institucional (ou eventualmente eleitoralista, de “eleições antecipadas”) para “resolver” os problemas sociais é completamente impotente. Não será esse regime que terminará com os aumentos de tarifas, com as aposentadorias e salários de fome, com os trabalhos precários, os aluguéis caro, e outras múltiplas heranças que estão na base do mal estar social. Não será com nenhum “pacto social” nem com diálogo parlamentar que teremos melhores salários e pensos, trabalho estável, saúde e educações públicas, etc. Será mediante a greve geral e a mobilização, com a intervenção da classe operária e sobre as ruínas desse regime que poderemos conquistar nossas aspirações e anseios. No entanto, não se trata de que a classe operária intervenha para “somar” somente suas reivindicações, mas de colocar-se à cabeça dessa luta e leva-la a uma luta política aberta contra o governo, com um programa que crie “hegemonia” para conquistar aliados em todas as classes oprimidas por esse regime.

As organizações como a CUT, No+AFP e demais organizações nem sequer responderam o chamado de organizações como a Unión Portuaria que chamou a preparar a “greve geral” contra o governo. No caso da CUT sua direção vergonhosamente segue olhando pela janela ou chamando concentrações pontuais que nada mudam. Como se mostrou nos últimos anos, as burocracias sindicais da Ex-Nova Maioria e do PC e agora também dos aliados da Frente Ampla, que convivem pacificamente com essa burocracia e estão assimilando rapidamente seus métodos, estão todos transformando a central sindical e os sindicatos em organizações completamente conservadoras frente à situação. Isso acontece em um momento de crise quando está colocado que o movimento operário entre massivamente em cena, com paralisações, greves e mobilização radicalizada encabeçando um greve geral. A via institucional da “esquerda anti-neoliberal” busca que Piñera retroceda mas mantenha-se no poder, e buscam facilitar que se resolva o conflito mediante as instituições odiadas pela população que protagoniza essa rebelião.

Para os revolucionários, por outro lado, se trata de lutar por um programa que comece da rebelião popular, desenvolva as tendências mais avançadas e se proponha derrotar Piñera mediante a greve geral com mobilização. Para isso a exigência às direções oficiais é central, para que assim, centenas de milhares façam experiência com seu papel, e obrigue estas direções a saírem de seus cômodos escritórios.

Porém, esta batalha deve ir acompanhando de uma estratégia que se proponha desenvolver massivamente a auto-organização das massas, que permita unificar a luta, planejar democraticamente qual programa e qual estratégia o movimento adotará para triunfar e impedir um ataque mais reacionário ou uma saída de “desvio” institucional. Se surgirem assembleias massivas de delegados ou coordenações estaríamos em muito melhor posição para que surjam organismos democráticos da luta de massas para sua unidade de ação e com um programa que ganhe a aliança das classes oprimidas. Até agora não se desenvolveram organismos deste tipo, e isso é um dos limites que tem a situação. Mesmo que tenham ocorrido tendências a convocações de reuniões em praças como se viu em Temuco, Valparaiso e Antofagasta, e desde segunda-feira em Santiago foram convocadas reuniões e assembleias em centenas de escolas, universidades e também em sindicatos. Não pode existir “programa de ação” para o momento que não contemple desenvolver estas tendências e que se coloquem como objetivo o surgimento de organismos auto-organizados de luta, que busquem lutar por outra perspectiva ao movimento.

Esta luta já deu um salto, e está colocado não somente a defesa das liberdades democráticas frente aos ataques bonapartistas mediante os métodos da luta de classes (terminar com o toque de recolher o estado de emergência), mas avançar para derrotar o governo mediante a Greve Geral e impor um Assembleia Constituinte Livre e Soberana sobre as ruínas do regime neo-pinochetista, com representantes revogáveis e que ganhem o mesmo que um trabalhador, eleitos a cada 20.000 eleitores, e que assim se instaure uma saída favorável aos trabalhadores e ao povo.

Detrás da estratégia institucional busca-se conter ao invés de desenvolver o movimento, sem tocar os pilares do regime e os “poderes reais” ou fatores de poder que governam o Chile. Para ir até o fim, é necessária uma via revolucionária. Para derrubar o governo, o regime e questionar os pilares do capitalismo chileno, conquistar um governo das e dos trabalhadores de ruptura com capitalismo, para assim resolver integral e efetivamente nossas aspirações e reivindicações.

 
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