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DIVERSIDADE SEXUAL
Argentina: O terrorismo de Estado a serviço da moral católica
Juan Moralejo e Facundo Martínez Cantariño

A última ditadura eclesiástica-cívica-militar na Argentina teve em um papel central a igreja católica, ditando a moral que deveria ser imposta e condenando tudo que a questionara. O peso que continua tendo na democracia a igreja católica como braço moral do Estado fez que fossem encobertos muitos aspectos da repressão genocida, reforçando a moral conservadora.

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Juan Moralejo / Facundo Martínez Cantariño

A Frente de Libertação Homossexual enfrentando o prelúdio do golpe eclesiástico-cívico-militar

No primeiro número da revista Somos, da Frente de Libertação Homossexual – FLH (na qual publicavam sobre opressão patriarcal e de classe que sofriam xs gays, as lésbicas e trans, as mulheres e xs trabalhadorxs na Argentina) no ano de 1973, se alerta sobre a Campanha de Moralidade lançada pelo governo Perón através da Polícia Federal. A nota se intitula “A tia Margarita impõe a moda Cary Grant”, em referência ao chefe de polícia Margaride, e denuncia ironicamente: “as forças da ordem estão postas a competir com Channel, Cristian Dior e outros centros de modas, munidos de eixos e tesouras. Policiais recorreram as ruas da Capital e da Grande Buenos Aires dispostos a impor o protótipo dos galãs ianques dos anos 40 para os jovens argentinos”. Reprimindo qualquer manifestação sexual que não coincidia com o modelo heteronormativo e monogâmico da ideologia conservadora, os agentes cortavam os cabelos cumpridos, cortavam as barras dobradas para fora das calças e tiravam todo o pelo facial dos ‘infratores’.

A FLH levantava consignas contra relativas contravenções e toda legislação discriminatória, pedia a libertação de homossexuais detidos e de presxs políticxs, a cessação da campanha de moralidade e das razias e de toda a ofensiva direitista que se pregava contra os movimentos sociais e políticos revolucionários, aos que pertenciam vários de seus militantes.

No ano de 1975, já sob o governo de Isabel de Perón, e sob tutela de López Rega, a revista “El Caudillo”, dependente do Ministério de Bem-Estar, chama a seus leitores a “acabar com os homossexuais”, os quais veem como armas de exportação do “marxismo internacional”, propõe a criação de campos de concentração e trabalho forçado, e brigadas de rua “que saiam a recorrer os bairros das cidades, que deem a esses sujeitos vestidos de mulheres, falando como mulheres. Corta-lhes o cabelo na rua ou raspa-lhes e os deixem amarrados às arvores com legendas explicativas e didáticas”. Logo depois, foi sendo cada vez mais frequentes as agressões, detenções e assassinatos, denunciados nas páginas de Somos, e a FLH passa à clandestinidade.

A dissidência sexual como “subversão”

Assim que um de seus membros foi assassinado no ano de 74 e várixs de seus militantes detidos em janeiro de 76, e com o estabelecimento do poder do Estado nas mãos da junta militar dois meses depois, a FLH se dissolve deixando uma tradição militante de esquerda pela libertação sexual, audaz e de vanguarda... Esta tradição talvez foi considerada pelos militares no momento de incluir a homossexualidade no catálogo de subversões: “Subverter não é só colocar uma bomba”. Rapisardi e Modarelli, em seu livro ‘Festas, banhos e exílios’, os gays portenhos na última ditadura contam que “o chefe da Divisão de Moral da Polícia Federal”, em 1977, aproveitou sua intervenção como orador nas Jornadas de Psicopatologia Social da Universidade de Buenos Aires para definir a direção do policiamento do qual era responsável: sua cruzada tinha por objetivo “espantar os homossexuais das ruas para que não perturbem as pessoas decentes”.

A ditadura significou uma sistematização e fortalecimento de todo este aparato repressivo para frear todo questionamento à ordem política, econômica e moral da burguesia, e isto significou também em reprimir e torturar com brutalidade as pessoas que não viviam sua sexualidade e seu gênero de acordo a ideologia e moral burguesas. A escassa visibilidade que tinha o coletivo LGBT pela ideologia homo-lesbo-transfóbica da época, se opôs ao aparato policial e militar que perseguiu aos ativistas que faziam de sua identidade sexual uma posição política militante, e que por sua vez, foi fortalecida, e fez ainda mais brutal a perseguição em forma de razias e detenções pela “moral”, nas quais as pessoas trans em situação de prostituição foram mais vulneráveis ainda.

As mulheres que abortavam, defensores do aborto e feministas, sindicalistas, integrantes das forças revolucionárias como as pessoas com identidades sexuais dissidentes, militantes e xs que foram vistxs (em lugares de levante como as cafeterias, quase único reduto disponível depois que os bares, saunas e cinemas que frequentavam terem sido fechados, ou nas festas particulares) eram “sujeitos de punição”. Deu-se um dos maiores retrocessos em matéria de gênero, desarticulando e clandestinizando as organizações feministas e de libertação sexual que vinham se desenvolvendo nos anos sessenta e setenta, conjuntamente com um movimento operário que começava a questionar o poderio do sistema econômico capitalista.

O papel da Igreja Católica

Como disse Osvaldo Bazán em História da Homossexualidade na Argentina: “não era somente uma ditadura, mas sim um processo de reorganização nacional com a benção e exigências eclesiásticas”. Neste sentido, foi a Igreja Católica a que entrou em cena como autoridade moral, quem seguiu legitimando papéis e modos de comportamento tradicionais tanto para os homens como para as mulheres. E seus porta-vozes como arcebispo de Paraná Adolfo Servando Tortolo e vigário militar, e Vicente Saspe, de Santa Fé (ironicamente lembrado como parte da ala “progressista” da Igreja) aplaudiam publicamente o poder da Junta e as sanções ao que chamavam de “corrupção moral” que o cinema, a cultura e os movimentos de libertação da mulher e a “frente alegre de libertação de homossexuais” (como chama Saspe), haviam originado na sociedade.

Testemunhas do horror. A CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas) e a Igreja como garantidores do silêncio. Valera Ramírez, uma ativista trans que esteve presa várias vezes, testemunhou em 2011 a perseguição, sequestros e repetidas violações que padeceram ela e muitas de suas companheiras. Faz 39 anos, estando presas no Pozo de Banfield, eram violadas se quisessem comidas e eram violadas novamente se quisessem ir ao banheiro.

Também Briggite Gambini, uma artista nortenha trans de varieté (uma das correntes do teatro, de variedades), relata em uma nota publicada pelo jornal Clarín em 6 de outubro de 1989: “Em março de 1976, exatamente no dia em que a senhora de Perón foi derrotada, eu atuava em um cabaré da província de Santiago del Estero. Na saída, junto a Jeanette, fomos detidas pela polícia e cruelmente golpeadas. Logo o comissário decidiu expulsar-nos à Córdoba; nessa província, em Carlos Paz, se reiteraram as ameaças. Tudo por estarmos travestidas. Nós podíamos provar ser artistas, não exercer a prostituição e nem provocar escândalos públicos e o mais importante, jamais havíamos tido ideias nem vinculações políticas”. Ela, que havia sido expulsa de seu colégio e rechaçada pela sua família, se exilou primeiro em Uruguai e depois na França, e conta que pouco depois sua amiga Jeanette “foi presa ao sair do trabalho no cabaré Luzbel. Nunca mais foi vista” e seu desaparecimento não foi um fato isolado, já que desde Montevidéu conta que ficou informada “pelos jornais da morte e desaparecimento de 17 travestis em poucos meses”.

Carlos Jáuregui, em A homossexualidade na Argentina, relata que o rabino Marshall Meyer (integrante da CONADEP) lhe afirmou a existência de mais de 400 homossexuais, lésbicas e trans integrando a lista do horror. E disse que “o tratamento que receberam foi similar ao dos companheiros judeus desaparecidos, especialmente sádico e violento". Isto não se contou ao Nunca Mais (nome do livro da edição final da CONADEP), e nem se havia cotejado encontrar as listas de presos onde ao final de alguns nomes se marcava especificamente si se tratava de um “puto” ou de um “judeu”.

Meyer tinha admitido que esta escandalosa omissão era devido as pressões da ala católica da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos. Ao radicalismo e sua CONADEP não lhes bastou com a lei de Obediência de Vida e Ponto Final, nem com a construção ideológica da reacionária teoria dos dois demônios, mas também, junto à Igreja Católica, criaram um manto de silêncio em aqueles corpos cobiçados que iam contra a moral burguesa e religiosa.

Foi justamente o peso que continua tendo na democracia a Igreja Católica como braço moral do estado burguês que foi silenciado esse aspecto da repressão genocida, legitimando-a e reforçando a moral conservadora. E hoje, com Bergoglio como Papa, com seu duplo discurso, com sua provada participação na cúpula eclesiástica durante a ditadura, e com seu silêncio encobrindo o desaparecimento de bebês e a perseguição aos sacerdotes terceiro-mundistas, esta instituição cúmplice do fascismo segue legitimando-se e reproduzindo sua suja moral manchada de sangue. Por isso pedimos a separação da Igreja do Estado.

A única maneira de enfrentar este silenciamento é com a luta nas ruas, enfrentando ao Estado e seus partidos patronais dos que só se podem esperar repressão e reconciliação. Para que se abram todos os arquivos secretos das forças armadas, a igreja e os serviços de inteligência (todas instituições nas quais ainda pipocam genocidas como Milani), que os governos democráticos mantêm ocultos. Para que sejam presos os responsáveis civis, militares, empresariais e eclesiásticos; para conhecer realmente quantas vítimas houve e quem eram; para que recuperem sua identidade tantxs filhxs expropriadxs.

 
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