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IDEIAS DE ESQUERDA
O Manifesto Socialista de Bhaskar Sunkara: Sonhando com a Suécia
Nathaniel Flakin

Karl Marx e Friederich Engels publicaram o Manifesto Comunista no final de fevereiro de 1848, em Londres. Mal tinha o manifesto sido impresso, uma revolta em Paris derrubou a monarquia francesa. Nos meses seguintes, barricadas se ergueram por toda a Europa, de Dublin a Bucareste. O panfleto de 23 páginas parecia ser o roteiro da nova narrativa social, em uma nova era revolucionária.

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O Manifesto Socialista, lançado por Bhaskar Sunkara no dia 30 de abril em Manhattan, tem algumas semelhanças formais com o seu predecessor. Os dois manifestos apresentam um resumo da História, seguidos por um programa de demandas imediatas (no primeiro caso, 10 itens, e no segundo, 15). Além disso, os autores compartilham a confiança típica dos jovens. Marx tinha 29 anos, e Engels 27, quando seu manifesto surgiu, e Sunkara hoje tem 29.

É aí que as semelhanças acabam. Marx e Engels escolheram a estrela vermelha como seu símbolo. Sunkara escolheu decorar seu livro com um símbolo que só se encontra nos cemitérios políticos: a rosa vermelha estilizada foi o símbolo preferido de diversos partidos social-democratas nas últimas décadas. Esses partidos, que implementaram medidas brutais de austeridade por toda a Europa, quase deixaram de existir: tanto o Pasok grego quanto o Parti Socialiste francês passaram da presidência para apenas 6% dos votos nas últimas eleições. Toda a Internacional Socialista está apodrecida: entre seus membros está até Juan Guaidó, o autointitulado presidente da Venezuela que vem tentando dar um golpe sob a tutela de Trump.

É só no mundo Anglo-Saxão que o reformismo social-democrata está vivenciando um renascimento senil, com Jeremy Corbyn no Reino Unido e Bernie Sanders nos EUA (ainda que esse último viva insistindo que é apenas um liberal do New Deal). É nessa onda que Sunkara, o editor fundador da revista Jacobin, está surfando.

O jovem jornalista, que estabeleceu uma rede de bem-sucedidas revistas de esquerda mesmo antes de completar 30 anos, não compartilha o estilo bombástico de Marx. Em vez disso, usa o tom de autodepreciação neurótica típico dos comediantes stand-up. É a linguagem perfeita para a nova geração: amigável, desbocada e despretensiosa, usando uma nota de rodapé sobre os Backstreet Boys para explicar o socialismo. Sunkara escreve que, se produzir teoria marxista é como preparar um bom macarrão, ele está fazendo miojo. Enquanto Marx era famoso por ridicularizar sem dó seus oponentes, Sunkara é alguém que, como gostam de dizer os analistas americanos, você gostaria de sair para tomar uma cerveja junto.

Hipóteses teóricas

O livro de Sunkara começa com uma longa suposição sobre a vida nos Estados Unidos socialistas, passando de 2018 a 2038. Essa introdução — que Sunkara afirmou ser a única parte realmente boa de seu livro — imagina o presidente Sanders e uma série de governos social-democratas cada vez mais de esquerda que implementariam pequenas mudanças que dariam mais liberdade e mais controle sobre suas vidas aos trabalhadores de Nova Jersey. Isso é um contraste com Marx, que, exceto em alguns comentários isolados, se recusava a especular como seria a vida no socialismo. Leon Trotsky, no entanto, chegou a oferecer uma visão fascinante sobre os EUA comunistas.

Se deixarmos de lado as divertidas referências ao Bon Jovi, o que chama atenção é que no pensamento estratégico de Sunkara existe uma aparente convicção de que temos tempo ilimitado para aperfeiçoar o capitalismo. Ele imagina um período de 20 anos sem crises, guerras ou outros contratempos. Só depois de 240 páginas ele se lembra de mencionar o aquecimento global, mas enquanto a Califórnia arde em chamas e Bangladesh afunda no mar, Sunkara permanece convencido de que podemos passar décadas e mais décadas tentando modificar as instituições capitalistas para domar o capitalismo.

A maior parte do livro consiste em um resumo da História do mundo. É incrivelmente valioso que Sunkara tenha produzido um livro com tal relato do movimento socialista internacional, que agora pode ser encontrado em livrarias e aeroportos em todo os EUA — isso vai apresentar a incontáveis jovens um lado da História dos EUA que a maioria das aulas nas escolas e faculdades não contempla. No entanto, o viés de Sunkara é o dos social-democratas da Guerra Fria, como Michael Harrington (cujo legado foi duramente criticado por Doug Greene). Sem comentar em cada questão, que transformaria essa resenha em um novo livro, vou apenas mencionar uma anedota histórica que se destacou para mim.

Sunkara dedica bastante espaço ao desenvolvimento do partido social-democrata alemão, o SPD, que foi o principal partido da Segunda Internacional. Em 1914, o SPD notavelmente apoiou a Primeira Guerra Mundial. Esse massacre sem precedentes destruiu a ilusão de que era possível superar o capitalismo por meio de um longo e lento processo de reformas.

A esquerda do SPD, liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, clamava por ações de massas (manifestações e greves nas cidades, e fraternização no front) pelo fim da guerra. O centro do SPD, dirigido por Karl Kautsky, em contraste, esperava poder se manter neutro. O objetivo de Kautsky era persuadir os governos capitalistas a encerrar o massacre rapidamente, para que a social democracia pudesse retomar seu processo de reformar o capitalismo.

Sunkara segue fielmente a visão de Kautsky, afirmando que não havia nada que o Partido social democrata independente (USPD) de Rosa e Liebknecht pudesse fazer para acabar com a guerra que matou milhões. Isso é patentemente falso. Em 1916, a primeira greve massiva contra a guerra na Alemanha contou com 50 mil metalúrgicos de Berlim tomando as ruas. Em 1918, mais de um milhão de trabalhadores de todo o país estavam em greve, exigindo o fim da guerra. Esses protestos, juntamente com as manifestações contra a fome e a agitação revolucionária entre as tropas foram o que convenceu os generais alemães a pedir a paz. Apenas alguns meses depois, milhões de trabalhadores alemães derrubaram a monarquia. Muitos desses trabalhadores eram membros do USPD.

Então por que o USPD não podia fazer nada? Simplesmente por causa da obsessão dos líderes reformistas pela legalidade e pelos métodos parlamentares — sua “deferência supersticiosa” ao estado capitalista, nas palavras de Engels. Vladimir Lenin, um dos críticos pela esquerda a Kautsky, se referiu a isso especificamente:

“Devido à traição de seus líderes, as massas não puderam fazer nada no momento crucial, enquanto esse punhado de líderes estavam na posição perfeita, e imbuídos do dever, para votar contra os créditos de guerra e firmar posição contra a trégua entre as classes e as justificativas da guerra, se expressar em defesa da derrota de seus governos, desenvolver um aparato internacional para favorecer a fraternização nas trincheiras, organizar a publicação de documentos ilegais sobre a necessidade de se iniciar atividades revolucionárias, etc.”

O método de Kautsky foi o mesmo usado depois por Harrington durante a guerra do Vietnã: Ele queria persuadir a Casa Branca a acabar com a guerra, enão queria que as manifestações contra a guerra fossem o mais moderadas e respeitosas possível. É de preocupar que Sunkara, diante de uma nova guerra imperialista, vai também decidir que os socialistas não podem fazer nada.

Nosso século vermelho

A revolução russa de 1917 mostrou o caminho que a classe trabalhadora podia tomar para colocar fim ao massacre imperialista da Primeira Guerra. Em fevereiro, mulheres operárias entraram em greve. Isso inspirou os trabalhadores de toda a capital, levando a uma insurreição massiva que derrubou o odiado czar. A monarquia foi substituída por um governo provisório que prometia reformas democráticas, mas na realidade tentava continuar a guerra e proteger os latifundiários. Os trabalhadores formaram suas estruturas próprias, chamadas conselhos — ou soviets. Em outubro, esses conselhos tomaram o poder em uma nova insurreição, liderada pelo Partido Bolchevique de Lenin e Trotsky. Isso criou o sistema mais radicalmente democrático que o mundo já viu: os representantes eleitos diretamente pelos trabalhadores decidiam a política governamental diretamente.

Sunkara corretamente rejeita a calúnia conservadora de que a revolução russa foi um golpe de uma pequena minoritária. O Partido Bolchevique só consiguiu atingir e manter o poder porque as massas trabalhadoras o apoiavam. Mas Sunkara repete a calúnia liberal de que o bolchevismo, com todo o seu fervor revolucionário — implementando a democracia direta, direitos para homossexuais, igualdade de gênero, direito ao aborto e uma economia socialista em um país camponês atrasado — tenha levado diretamente aos horrores burocráticos do stalinismo. Na verdade o stalinismo representou a derrota do Partido Bolchevique e dos conselhos de trabalhadores. Por que outro motivo os stalinistas achariam necessário executar centenas de milhares, incluindo todos os líderes da Revolução? Esses assassinatos sozinhos já deixam claro que o stalinismo é a negação contrarrevolucionária do bolchevismo.

O governo provisório criado após a insurreição de fevereiro continuou a guerra, levando à morte de 100 mil soldados russos nos seis meses seguintes. Em contraste, a insurreição de outubro encerrou a guerra de imediato, apelando à classe trabalhadora de todos os países que tomasse também o futuro em suas mãos. A Revoliução Russa continua sendo o mehor exemplo na História de como a classe trabalhadora, com suas próprias forças, pode transformar a sociedade. Se foi possível em um país agrário como a Rússia, onde a classe trabalhadora compunha menos de 10% da população, só podemos imaginar as possibilidades quando a classe trabalhadora tomar o poder em países desenvolvidos como os Estados Unidos. Mas Sunkara, convencido de que a revolução é a culpada pela contrarrevolução, tem outros modelos em mente.

Procurando reformistas mais capazes

O modelo de Sunkara para o futuro é... a Suécia dos anos 1970. Atualmente, os dois favoritos na disputa eleitoral de 2020, Donald Trump e Joe Biden, prometem um retorno a uma lendária “era de ouro” do sonho americano. Sunkara tem suas próprias ilusões com o passado distante, décadas antes de seu nascimento — mas as suas são na Europa. Essa obsessão com os países nórdicos é compartilhada por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez.

A Suécia, que Sunkara considera “o sistema social mais humanitário já construído”, oferecia aos seus trabalhadores salários altos e seguridade social — mas ele mesmo reconhece algumas páginas depois que o país ainda era propriedade de “quinze famílias” (e passa completamente em branco o fato de ainda ser uma monarquia). Então como esse estado de bem-estar social nórdico surgiu? Sim, um movimento organizado de trabalhadores teve seu papel. Mas também havia a pressão vinda das fronteiras ao leste, dos Estados proletários deformados e degenerados, lembrando os trabalhadores de que era possível outro sistema e incentivando a burguesia a oferecer concessões para se manter no poder. Ao mesmo tempo, os lucros imperialistas suecos foram enormes ao espoliar as riquezas e vender armamentos para países mais pobres. São esses superlucros imperialistas que financiam os serviços sociais. E não é nenhuma coincidêcia que agrupações racistas, nacionalistas e de extrema-direita estejam hoje em ascensão nos países nórdicos, chegando ao entorno de 20% dos votos.

Desinteressado em explicações materialistas, Sunkara se espelha nos corajosos líderes reformistas como Olof Palme (primeiro-ministro da Suécia entre 1969 e 76 e entre 1982 e 86) e François Mitterrand (presidente da França entre 1981 e 1995) como fontes de mudanças progressistas. Ele ensina que esses líderes tinham planos elaborados, com muitos passos, para passar o controle privado das corporações para o controle público, sob gestão democrática. Então por que as comissões instituídas para isso não completaram nem o primeiro passo, que dirá o plano todo? Será talvez pela incapacidade fundamental dos Estados capitalistas agirem contra os interesses do capital? Será que isso mostra a capacidade imensa de domínio que a burguesia tem sobre qualquer governo burguês? Quem sabe? Pelo pensamento de Sunkara, nós podemos esperar mais algumas décdas para ver se outro reformista mais capaz aparece.

Pontos cegos

A versão da história apresentada no “Manifesto Socialista” inclui alguns pontos cegos bem grandes. Quase não há referências a Salvador Allende (presidente do Chile entre 1970 e 73), que tentou implementar um programa de reformas social-democráticas exatamente igual ao que Sunkara defende. O exército chileno, que tinha toda a confiança de Allende, não estava interessado no resultado de eleições, e sim em defender a propriedade privada. Derrubaram Allende em um brutal golpe, instituindo uma ditadura sangrenta, responsável pela moret e exílio de mais de 30 mil pessoas.

Essa experiência mostra aos socialistas que é necessário penasr seriamente em como confrontar e derrotar o Estado capitalista. Mas surpreendentementre, os reformistas baseiam sua estratégia na esperança inabalável de que os oficiais militares vão aceitar a vontade de uma maioria socialista no parlamento. Sunkara vai e volta à questão do Estado, em determinado momento citando a ideia de Marx de que os trabalhadores precisam esmagar o estado capitalista (que ele erroneamente atribui a Lenin), mas também defende um “Estado forte” que torne o capitalismo mais humano.

Enquanto Sunkara proclama sua solidariedade a diversos partidos de esquerda na Europa — o Bloco de Esquerda português, o Die Linke alemão, e o Podemos espanhol — ele notavelmente se esquece de mencionar o grego Syriza. Sua revista Jacobin organizou uma energética campanha em favor do Syriza, prometendo que isso acabaria com a austeridade e trasformaria a Europa. E o Syriza venceu as eleições, mas imediatamente formou uma coalizão com um partido de extrema direita racista. E em seguida foi o responsável por aplicar medidas de austeridade ainda piores do que a de seus antecessores. Por que o Syriza, que seguiu exatamente o programa de Sunkara, foi tamanho fracasso? Novamente, aparentemente é necessário depositar as esperanças num novo líder que seja melhor.

Outra resenha descreveu o livro de Sunkara como exemplo de primeiro-mundismo. É digno de nota que o livro mencione diversas vezes Victor Berger, o terrivelmente racista político do Partido Socialista de Milwaulkee, mas omita o Partido dos Panteras Negras, assim como exclui a escravidão de sua História do capitalismo nos EUA. Isso é típico da social-democracia: aqueles que sofrem a maior opressão são vistos no máximo como vítimas, que precisam ser ajudadas pelos políticos benevolentes que dirigem o Estado capitalista. Os social-democratas não veem um papel a ser cumprido pelos oprimidos na liderança de um movimento de massas que possa radicalmente reorganizar a sociedade.

Como água morna

O Manifesto Comunista foi um documento internacionalista. Foi escrito por exilados alemães na Inglaterra, e hoje é lido em todo o mundo. O Manifesto Socialista, ao contrário, foca apenas nas particularidades dos Estados Unidos.

O Manifesto Comunista proclamava que a História da humanidade é a História da luta de classes. O Manifesto Socialista, em contraste, trabalha sob a premissa de que a época de revoluções acabou décadas atrás. Agora, aparentemente, a única forma de ação política possível é modificar o sistema atual por meio de eleições, talvez de vez em quando pressionado por manifestações pacíficas e legais.

Marx e Engels ofereceram uma visão das lutas revolucionárias tão visionária que 170 anos depois, ainda é citado em conferências acadêmicas em todo o mundo. Não vai demorar para que o livro de Sunkara seja um romance de uma versão alternativa da História.

O futuro imediato que o capitalismo nos oferece vai ser marcado por crescentes contradições entre os grandes poderes, a estagnação da economia global, o que mais cedo ou mais tarde vai levar a novas e maiores crises, além da catástrofe ambiental se avolumando. A definição de Lenin sobre a época imperialista ser a época de “crises, guerras e revoluções” está cada vez mais presente. É sob o prisma dessas crises que os novos movimentos revolucionários surgirão. Mas se querem ser bem-sucedidos, os socialistas precisam começar a construir organizações baseadas nas lições dos últimos 150 anos da luta dos trabalhadores — incluindo as incontáveis derrotas dos experimentos reformistas.

A corrente da qual a Jacobin faz parte promete encontrar um caminho intermediário entre a social-democracia e o comunismo. É como alguém tentando achar um caminho intermediário entre o fogo e a água — e acabando com nada mais do que água morna. A Jacobin, dessa forma, acaba com nada mais do que a social-democracia, e ainda numa versão inofensiva que nem busca a independência política da classe trabalhadora.

 
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