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IDEIAS DE ESQUERDA
Tchekhov e os esquecidos que fariam história
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

Talvez como em nenhum outro país, os escritores russos foram muito influenciados – e isso aparecia em praticamente toda a constelação das obras criadas na segunda metade do século XIX – pelos resultados econômicos e sociais da invasão cada vez maior de volumes imensos de capitais europeus na Rússia, o desenvolvimento de sua indústria, as desigualdade sociais que exalavam forte cheiro medieval num país banhado por um “oceano de camponeses” que abastecia o Estado autocrático em Moscou (um poderoso aparato militar que desde sua origem absorvia um excedente magnífico da produção, atrasando o desenvolvimento econômico russo e a diferenciação social de suas classes), e as conseqüentes disputas ideológicas entre os radicais – ligados às concepções terroristas dos populistas – e os liberais e defensores do czarismo – que já aqui não se diferenciavam muito.

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Numa atmosfera saturada de debates ideológicos entre os escritores, Anton Tchekhov (1860-1904) cultivou a discrição polêmica, e não participou deles tão diretamente como Leskov (1831-1895), Mikhail Saltykov-Shchedrin (1826-1889) ou Dostoiévski (1821-1881).

Sem intenção de investigar a profundidade dos tesouros literários deixados por Tchekhov, é interessante exemplificar como seus contos não deixam escapar nuances e sintomas da vida cotidiana, capazes de retratar a felicidade mais íntima, assim como insinuar, numa vulgar cena doméstica ou numa viagem de um funcionário público de Moscou para relatar as circunstâncias de um suicídio no interior agrário, os ritmos conturbados das mudanças que chegavam na Rússia.

Anton Tchekhov

“Em serviço”

No conto “Em serviço”, de 1899, Tchekhov retrata a ida de um juiz de instrução moscovita e um médico provincial para a aldeia de Sirnia, para fazer uma autópsia do agente de seguros Lesnítski, que metera um tiro na própria cabeça. As motivações e circunstâncias deste suicídio nunca são relatadas no conto. Tchekhov, no decorrer do conto, se utiliza desta imprecisão para mostrar revelar as relações entre o campo e a cidade, as diferenças entre os desejos luxuriosos de Moscou e a cruel descrição da vida campestre, entre o que valeria um suicídio na capital e o que vale um no interior. No fundo, a motivação não era o mais importante.

Ouvindo as lamúrias de Lochadin, um pobre mujique ajudante de polícia que tenta instalá-lo para passar a noite, antes da autópsia, numa incômoda e suja cabana de aldeia, sobre as misérias da vida e que “há trinta anos, só anda de lá para cá por formalidade”, sacolejando e entregando as encomendas que lhe faziam, o juiz de instrução começa a fazer crer o leitor, no ambiente de Tchekhov, que, em verdade, tudo que envolve a vida camponesa (dos pobres) existe por formalidade, sem objetivo, em que se multiplicam as figuras de Lochadin, velhos “fantasmas de ópera” descabelados, “que não valem nada”, sofridos e embrutecidos, cuja única significação é permitir as vidas “plenas de sentido” nas grandes cidades administrativas.

Importunado por ter sido enviado ao interior, na cabeça do protagonista aparente até se justificariam as dificuldades de achar a razão do suicídio pelo lugar em que foi realizado, “Se aquele homem tivesse cometido suicídio em Moscou ou em qualquer lugar mais próximo e fosse preciso abrir um inquérito, aí sim seria algo relevante, digno de interesse; mas ali, a mil verstas de Moscou, tudo aquilo se mostrava sob uma outra luz: aquilo não era vida, não era gente, mas algo que existia apenas ‘por formalidade’, como dizia Lochadin, tudo aquilo não deixaria na memória o mais leve traço [...] A pátria, a Rússia autêntica, era Moscou e Petersburgo; aquilo ali não passava de uma província, uma colônia.”

“Se a pessoa quiser viver, terá de ir a Moscou”

“Aqui [na aldeia] não se tem vontade de fazer nada, é fácil se conformar com uma posição insignificante, e da vida só se espera uma coisa: partir o mais depressa possível”. Essa visão da elite estatal, intocada pelas razões sociais da pobreza e insensível à origem de seus próprios privilégios, é revelada em seu mais puro cinismo pelos escritores russos como Tchekhov, propensos à crítica da autocracia e da nobreza dona de terras, em meio à politização resultante do profundo impacto que a emancipação dos servos de 1860 teve sobre a Rússia, emancipação que manteve de pé o estatuto servil e os privilégios da aristocracia.

Mas é justamente quando o juiz de instrução é tirado da pobre cabana e levado para pernoitar na mansão de um dono de terras, von Taunitz – “tamanha transformação lhe pareceu digna de um conto de fadas, era inacreditável que uma transformação tão grande fosse possível a uma distância de apenas uma hora de viagem” – que as visões do cadáver (que não tem grande função no conto, é esquecido logo depois) e do mujique começam a atormentar o conforto do magistrado. O caráter incompreensível do mundo rural, “sinal de que ele não existia de maneira alguma”, diferente da vida urbana em que “tudo é consciente e nada é fortuito, e onde, por exemplo, todo suicídio tem uma razão de ser e pode ser explicado”, vai ganhando contornos diferentes.

A nevasca e os redemoinhos de neve que açoitam as janelas da mansão enchem de visões fantásticas os sonhos do magistrado, em que o ajudante de polícia e o agente de seguros andavam mutuamente amparados, cantando as ameaças surdas daqueles que “viviam por formalidade”: “A gente anda, anda e anda... Os senhores ficam no quentinho, na claridade, no macio, enquanto nós andamos no frio cortante, no meio da nevasca, sobre a neve funda... Não sabemos o que é sossego, não sabemos o que é alegria... Carregamos nas costas todo o peso da vida, da nossa e da dos senhores... [Nevasca agitando lá fora] A gente anda, anda e anda...”.
A nova avaliação do juiz de instrução apaga o caráter fortuito e incompreensível do mundo rural, descobrindo que mesmo no mais remoto e despovoado vilarejo nada acontece por acaso, tudo está repleto de uma mesma idéia comum, uma mesma alma e um mesmo objetivo, que não é simplesmente dado pelo raciocínio, mas exige “o dom de perscrutar a vida”.

Daí, com desenvoltura e clareza, sentia recair sobre si mesmo o suicídio e o infortúnio do mujique. O óbvio seria se Tchekhov incutisse um grau de culpa suficiente para levar o personagem, em contradição, a se suicidar também. Mas não faz isso, o que retira do conto a estupidez de uma moralização reconfortante. O juiz segue vivo e sem abdicar de um milímetro de seus privilégios. Mas perde todo o brilho de personagem principal, seguindo até o fim do conto perambulando cinzentamente na mansão de Taunitz, cercada pela neve.

Retrato dos camponeses na Russia - Ivanov Yuri

A sombria sonata dos que andam, andam e andam...

Essa reconciliação da mente aristocrática com as misérias da vida de gente submissa no interior da Rússia não tem o valor de conciliar os interesses entre as distintas camadas sociais. Tchekhov faz questão de ilustrar a convicção do aristocrata de sua posição superior como parte do organismo comum da sociedade até o final do conto. Em troca disso, deixa na cabeça do juiz de instrução o remorso de ignorar “aqueles que carregam o que há de mais amargo e pesado na vida, enquanto os senhores ficam com o que é leve e alegre”.

Não se trata de encontrar uma “literatura da luta de classes” onde não há; mas ignorar as disputas sociais e a clareza com que alguns autores enxergavam estes antagonismos crescentes, expondo-os em seus efeitos degradantes e cruéis, seria tão equivocado quanto achar que Tchekhov usava (ou devia usar) sua obra literária como baluarte do combate à servidão e à aristocracia.

Livre de cinismo e sentimentalismo, Tchekhov não deixa de mostrar seu talento singular para entender as origens das comoções sociais que viriam logo na virada do século. “Admitir que aquela gente, submissa ao seu destino, levava nas costas as coisas mais pesadas e duras – como era horrível! Admitir isso e desejar para si uma vida radiante e ruidosa, cercada de gente feliz e satisfeita – isso era o mesmo que sonhar com mais gente que se suicida, sufocada de tanto trabalho e preocupação, ou com mais gente fraca, abandonada, a respeito de quem só se fala durante o jantar, com desagrado ou sorrisinhos, sem nunca se lançar de fato à sua ajuda...”.
Observando a totalidade, Tchekhov chega mais perto de entender a junção social do campo com a cidade russa. A arte toda está em usar um aristocrata para fazer os olhos do público vislumbrarem a massa dos protagonistas ocultos, ainda atônita, mas agitada.

Pouco depois, os esquecidos fariam história.

 
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