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MARIELLE FRANCO
O que o assassinato de Marielle tem pra contar sobre as relações raciais no Brasil?
Letícia Parks
Marcello Pablito
Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.
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Com o avanço de uma situação de profunda crise política, econômica e social, o Brasil está vivendo um choque à direita nas relações raciais. A vitória de Jair Bolsonaro foi um questionamento ao que se conhece como o mito da “democracia racial”, marcado duramente pelo assassinato de Mestre Moa entre o primeiro e o segundo turno eleitorais. Esse mito percorre o cotidiano de cada negra e negro brasileiro, dos exemplos mais concretos da vida até o seu drama íntimo da identidade racial.

Em um país marcado pela enorme presença negra, a elite colonial precisava garantir uma forma de dominação material que não precisasse de leis segregacionistas, como as que foram implementadas nos EUA frente à abolição da escravatura. Em lugar disso, vendeu a ideia de que o Brasil era um país miscigenado, onde se havia eliminado as raças a partir da vontade do português de misturar-se, e da docilidade do negro de se adaptar. Essa história absurdamente falsa foi, por muito tempo, a tônica das relações raciais no Brasil, um discurso sobre si mesmo que o país explicitava para todo o mundo, que dificultava a percepção e denúncia do racismo que se manteve poderoso na relação de trabalho e na repressão estatal, comprovados estatisticamente. As mulheres negras recebem 60% a menos que um homem branco; um jovem negro tem quase 3 vezes mais chance de morrer assassinado do que um jovem branco.

A tensão começa a surgir quando os movimentos negros rompem com essa ideia e começam a dizer que existe sim racismo no Brasil. Os primeiros movimentos a dizer isso abertamente eram no marco da luta contra a ditadura, que revelou um lado cruel do racismo como política de Estado na perseguição às massas negras que protagonizaram greves e lutas nas ruas contra o regime militar.

O bolsonarismo choque à direita nas relações raciais

O Bolsonarismo eleva como presidente uma figura abertamente racista como Jair Bolsonaro, que inclusive já foi condenado por declarações racistas contra povos quilombolas, o que coloca a tese da democracia racial em choque aberto. Como negar a existência de uma fissura racial profunda no país frente a um presidente como esse?

Mas antes disso, a morte da Marielle já dava dicas do rumo que o regime brasileiro poderia começar a tomar. Isso porque há uma diferença importante entre as mortes que o Estado já realizava contra as massas negras - com números de guerra civil - e a morte de uma vereadora. Gramsci, em seu estudo sobre a hegemonia no Estado capitalista de regime democrático, entende que esse regime exige que o pensamento divergente esteja inserido no Estado, como ala minoritária, para criar uma ilusão de que a democracia funciona e a divergência tem seu lugar - minoritário e irrelevante, mas tem. Esse espaço minoritário é fundamental para que a democracia pareça ser democracia, e à medida em que esse espaço se restringe e se estreita, menos a democracia parece democracia.

Isso porque quanto mais a diferença está fora dos espaços de poder, mais o Estado é forçado a exercer hegemonia por meios menos pacíficos, apoiado cada vez mais na coerção e menos no consenso, ou seja, quanto menos diferença dentro do parlamento, menos ilusões há nas massas e na vanguarda, logo há mais necessidade de o Estado exercer controle sobre as massas pela via da repressão.

A relação de hegemonia do Estado capitalista brasileiro (apoiado no imperialismo) com as massas negras sempre foi limítrofe entre consenso e coerção, já que mesmo sob o discurso ultra hegemônico da tese da democracia racial - que contava com seus parlamentares negros eleitos dentro do congresso, ou mesmo em cargos executivos - sempre foi necessário ao estado brasileiro exercer medidas de repressão constantes contra as massas negras, não à toa temos algumas das polícias mais assassinas do mundo em alguns estados brasileiros.

O caso de Marielle mostra como esse espaço da hegemonia do estado sobre o discurso da democracia racial se fraturou em tal nível que é preciso a esse estado, agora, eliminar de dentro do poder essa voz divergente, avançando em medidas mais profundas de repressão e controle pela via da coerção. Isso não significa dizer que a nível nacional estamos vivendo o que acontece hoje no Rio de Janeiro, mas é preciso saber que o que ocorre ali aponta tendências em um país tão profundamente marcado pelo racismo estrutural, que nos marcos de uma crise econômica tão profunda, expõe os traços mais cruéis do racismo para manter lucros e precisa contar mais duramente com a repressão e o controle como método, mesmo em relação aos parlamentares.

Marielle se torna um escândalo ainda mais assustador quando vemos que toda a investigação do próprio estado não consegue esconder o nível de envolvimento de políticos com os assassinos dela. É a prova mais cabal de como os que antes eram forcados a manter discursos de igualdade e fraternidade com os negros, agora atuam não sob o método do consenso e da democracia que hegemoniza pela discurso e pelo lugar que da a esquerda, mas sob o método da coerção direta, inclusive de execuções, comprovando uma profunda crise de hegemonia do Estado em relação ao questionamento do racismo estrutural do país.

Batalhar por um choque a esquerda nas relações raciais

Se de um lado da crise social que vivemos há um choque a direita por parte do regime para controlar os rumos do fim da tese da democracia racial, essa necessidade de controle está diretamente relacionada ao medo de que os negros se apropriem de uma saída a esquerda para as relações raciais no Brasil, e não seria a primeira vez.

Historicamente, houveram sempre respostas a esquerda em todos os momentos mais agudos de choque com o racismo estrutural, seja no Brasil, EUA, Haiti, África. Frente a desilusão com o governo Obama, por exemplo, as massas negras norte americanas se uniram sob o grito de “as vidas negras importam”, um movimento com um potencial profundo de convulsão social a esquerda, que foi infelizmente controlado para se tornar potencializador de uma recuperação do próprio Partido Democrata de Obama, que hoje financia o movimento Black Lives Matter e construiu uma direção burocrática que impede que o movimento de radicalize e defina seus próprios representantes.

Aqui no Brasil, o limite a que esse questionamento vá a esquerda é o papel setorialista que as próprias direções sindicais cumprem, que impedem que o movimento negro se expresse como parte das demandas do conjunto da classe operária, e vira as costas para as demandas negras que surgem do chão da fábrica e dos locais mais precários de trabalho, como a exigência por igual salário para negras e brancas, homens e mulheres, ou a efetivação de todas e todos os terceirizados, uma medida que atuaria contra a enorme divisão que reina na classe operária brasileira, também marcada pelo racismo estrutural que carimbou a história nacional.

Nesse um ano da morte de Marielle, a tarefa de todas as centrais sindicais e direções estudantis também deveria ser a luta por justiça para Marielle, sem nenhuma confiança nas instituições do capitalismo, como a polícia e o judiciário, maiores atores do racismo estrutural do país. Apenas uma enorme luta será capaz de conquistar justiça para Marielle, que deve ser em base a uma investigação independente, garantida pelo Estado acesso a todas as provas e proteção para que os agentes dessa investigação (membros do PSOL, especialistas em direitos humanos) possam trabalhar em segurança.

É preciso batalhar para que o choque racial vá a esquerda e coloque novos rumos para o movimento negro e operário no Brasil, começando com a justiça por Marielle.

 
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