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MEMÓRIA
Nas mãos dos capitalistas nem os mortos estão à salvo: o que aprender do ódio a Chico Mendes
Redação

O que o ódio e desprezo do ministro do meio ambiente de Bolsonaro a Chico Mendes mostra? Como esse desprezo se relaciona com o programa de governo e unifica diferentes alas? O que aprender deste desprezo e ódio?

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Foto: tática do "empate". Fonte: Flickr do senador Jorge Viana

“ O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. (Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história, 1940)

O triunfo eleitoral de Bolsonaro e todo um condomínio de reacionários em outubro passado mediante farta ajuda judicial com apoio militar implica não somente em preparação a selvagens ataques aos direitos trabalhistas como a Reforma da Previdência, não implica somente em privatizações e inquisitórias incursões aos direitos das mulheres, dos educadores, das crianças, dos LGBTTs. Significa também uma tentativa de escrever outra história. Já vemos Mourão e o presidente do STF, Toffoli, falarem em “movimento de 64” e não mais em golpe. Já vemos a anos o ódio a Paulo Freire. Agora é chegada a vez de cuspirem em Chico Mendes para tentarem abrir – ainda mais – o campo ao agronegócio e pisotear, ainda mais os direitos de trabalhadores rurais, povos ribeirinhos, quilombolas e indígenas.

Chico Mendes, fundador do PT e da CUT no Acre, teve sua vida arrancada por pistoleiros que se opunham a expropriação de uma fazenda para que ela se tornasse “reserva extrativista”, propriedade da União sob gestão dos seringueiros, ribeirinhos e povos indígenas. Chico Mendes defendia a expropriação de terras para uso coletivo destas comunidades e assim se colocava em choque com a expansão do agronegócio e sua sanha por pasto, terra para soja e derramamento de sangue quando isso estiver em seu caminho.

Assim que iniciou-se a luta pelos direitos dos povos, dos seringueiros e da floresta Chico Mendes esteve marcado para morrer. E não somente ele, como dezenas de outros sindicalistas e ativistas na região. Com desdém a mídia nacional olhava o drama nas entranhas da Amazônia. Poucos dias antes de sua morte o Jornal do Brasil recusou-se a publicar entrevista dele, quando deixava claro quem o ameaçava e poderia assim ganhar um tempo de vida. Leia na íntegra a entrevista neste link. Eram tempos de tentar acalmar as feridas, sangrentas, da Constituinte. Abertas no Acre, abertas em Volta Redonda.

Poucos dias depois do assassinato a entrevista foi publicada. A atenção a sua denúncia cabia aos trabalhadores e brigadas de defesa organizadas pela CUT, aos ambientalistas e parte da mídia internacional que por motivos de pressões da luta de classes em seus próprios países tinham que abrir algumas portas a Mendes e seu grito.

Há quem veja nesse programa defendido 20 anos atrás por Chico Mendes como uma precursão de “ecossocialismo”, como escreveu recentemente o famoso intelectual Michel Lowy. Para além das polêmicas sobre este conceito, fica evidente em qualquer relato feito pelo próprio Chico Mendes, como ele depositava suas esperanças no que poderia ser conquistado na Constituinte, e portanto na conciliação com os velhos e podres poderes, ao mesmo tempo que seu programa de desapropriação e sua tática de empates - a resistência pacífica aos tratores do desmatamento – entravam em rota de colisão com o latifúndio, com o agronegócio, e esta colisão lhe custou um tiro de escopeta no peito em 22 de dezembro de 1988.

O retorno do ódio a Chico Mendes mostra o retorno da chaga não fechada em 88 e impõe reflexões sobre o que move o ódio dos latifundiários, dos capitalistas, e do governo Bolsonaro bem como que lições tirar em um vôo de pássaro sobre sua combativa trajetória de vida, sem com isso deixar de ver os limites para uma interpretação "socialista" ou revolucionária como tem sido feita.

O retorno do espectro odioso de 1988

Debaixo da alçada do ministro detratator de Chico Mendes está um instituto que carrega o nome do seringueiro assassinado em 1988. Mesmo ano da finalização da Constituinte e do assassinato pelo exército de 3 operários em greve na CSN em Volta Redonda, RJ.

O ódio de Salles gerou amplo repúdio nas redes sociais, e até mesmo o general Mourão se delimitou do ministro. Essa delimitação diz respeito também às disputas entre alas no condomínio de poder Bolsonaro. Mas as declarações de Salles não foram palavras de um idiota, cheias de som e fúria e significando nada. São parte constitutiva do programa de governo de Bolsonaro e que vão bem além da ala “ideológica” a que ele se relaciona.

O ódio ao tudo que cheire a respeito aos povos tradicionais, ao meio ambiente e a reforma agrária recebem a enérgica reprimenda e cusparada de todas as alas do governo. Bolsonaro não poupava críticas a legislação ambiental até ocorrer Brumadinho; Mourão e Heleno querem atropelar direitos de povos indígenas para fazer obras na Amazônia como o “linhão norte” e a expansão da BR-363; Tereza Cristina da Agricultura quer liberar qualquer tipo de agrotóxico; Sérgio Moro redige leis repressivas supostamente para atacar o narco-tráfico mas que providencialmente podem servir para Bolsonaro cumprir sua promessa de enjaular militantes do MST e MTST como “terroristas”.

O ódio a Chico Mendes remete a feridas da Constituinte de 1988, remete a um dos temas mais violentos daquela carta magna tutelada e mutilada pelos militares, pelo centrão e por interesses capitalistas que não se recusavam até mesmo a recorrer às armas para intimidar.

Passados pouco mais de 20 anos daquela Constituinte e dos assassinatos no campo e na usina siderúrgica e nesta crise da “nova república”, ver como temas centrais a história do país e de violentas discussões na época voltam à tona, entre eles, o latifúndio, o agronegócio.

Surgida como braço político para realizar lobby na Constituinte, e como braço armado para espalhar jagunços pelo campo, e de notório envolvimento no assassinato de Chico Mendes e de muitos ambientalistas e sindicalistas no campo, a União Democrática Ruralista (UDR) emplacou seu presidente, Nabhan Garcia, em cargo crucial no governo Bolsonaro, como chefe de “assuntos fundiários” do Ministério da Agricultura.

Eis um ponto a mais para refletir como o ódio de Salles a Chico Mendes não é um ponto fora da curva mas consequência direta do programa de todo condomínio bolsonarista e ilustra como pretendem revistar as feridas ainda abertas de 88 para espezinhar mais os mortos e assim arrancar mais terra, mais direitos, mais sangue dos vivos.

Para ver para além do Xapuri no Acre onde Mendes teve a vida arrancada, estava em pleno e aberto funcionamento o braço armado de jagunços do latifúndio vale retomar os trabalhos e métodos parlamentares do DEM na Constituinte.

Um importante articulador do “centrão” naquela Constituinte, José Lourenço, líder do PFL, partido herdeiro da Arena da ditadura e que hoje atende pelo nome de DEM, e ocupa ministérios de Bolsonaro, e a presidência da Câmara com o apoio do PCdoB e do Senado com apoio de Randolfe Rodrigues da REDE. José Lourenço diz em entrevista que parte da articulação do centrão (que segundo o tucano José Serra no mesmo livro, “não era a direita, era o atraso”) tinha a ver com direito de propriedade, especialmente a da terra, que os constituintes biônicos e eleitos viam como correndo sério risco. Na entrevista ao livro 1988, Segredos da Constituinte ele menciona que havia distribuição de AR-15s no campo e relata ameaçar com um revólver um constituinte de “esquerda”. Diz o “democrata” ao responder a pergunta “como aconteciam essas disputas nas comissões e subcomissões?”:

Agricultura, por exemplo. Eles [a esquerda, que incluía o PSDB na visão do entrevistado e muitos na época] tinham maioria por um voto. E havia um senador do Mato Grosso, Saldanha Derzi, que me disse, eu como líder do PFL: “deputado, nós não podemos deixar que fiquem com o controle da Comissão de Agricultura, porque por aí vão entrar todas as emendas da esquerda para fazer a reforma agrária”. No dia de uma votação importante eles estavam sem maioria, porque um tinha faltado. Como eu tinha um suplente do PFL mandei que ele assinasse o livro e ficasse apto para votar. Eles vieram para cima: “Não pode!”. O Saldanha Derzi estava com um revólver .38mm e passou. Eu encostei no sujeito e disse: “se der mais um passo eu lhe fodo, seu filho da puta.” (página 182)

No mesmo livro o presidente da República Sarney narra entre outras “artimanhas” da Constituinte, como seu ministro do Exército sequestrou (!) o relator da Constituinte, Bernardo Cabral, para garantir a redação atual do artigo 144 (aquele que prevê intervenção dos militares).

Chico Mendes pagou com a vida ao se enfrentar a esses podres poderes e querer a expropriação das terras amazônicas para “reservas extrativistas”.

Algumas reflexões para salvar os mortos das garras dos inimigos

Em tão breve artigo não podemos nem queremos esgotar nenhum balanço sobre a vida vivida por Chico Mendes, arrancada pelo latifúndio, ao mesmo tempo que pontuar alguns limites para interpretação "socialista" e até mesmo "revolucionária" que tem sido feita, bem como o balanço heróico do PT que pula como até mesmo o programa do seringueiro foi pisoteado pelo partido.

Chico Mendes deixou um breve e bonito escrito póstumo em defesa da revolução socialista mundial endereçado aos jovens do futuro:

“Atenção jovem do futuro,
6 de setembro do ano de 2120, aniversario do primeiro centenário da revolução socialista mundial, que unificou todos os povos do planeta, num só ideal e num só pensamento de unidade socialista, e que pôs fim à todos os inimigos da nova sociedade.
Aqui ficam somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte.
Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado”.

Apesar da declamação de socialismo internacional não há evidências de que este era o programa de fato defendido por Chico Mendes, já que depositava esperanças na Constituinte, no que podia ser votado junto dos representantes dos militares, dos latifundiários, e mesmo sua tese de "reserva extrativista" que não previa propriedade da terra era erguida de forma concomitante ao capitalismo circundante, sem oferecer-lhe uma resposta global.

O programa de Chico Mendes para a região amazônica foi resumido em sua entrevista ao Jornal do Brasil do seguinte modo:

“A resposta veio através da Reserva Extrativista. Vamos utilizar a selva de forma racional, sem destruí-la. Os seringueiros, os índios, os ribeirinhos há mais de 100 anos ocupam a floresta. Nunca a ameaçaram. Quem a ameaça são os projetos agropecuários, os grandes madeireiros e as hidrelétricas com suas inundações criminosas. Nas reservas extrativistas, nós vamos comercializar e industrializar os produtos que a floresta generosamente nos concede. Temos na floresta o abacaba, o patoá, o açaí, o buriti, a pupunha, o babaçu, o tucumã, a copaíba, o mel de abelha, que nem os cientistas conhecem. E tudo isso pode ser exportado, comercializado. A universidade precisa vir acompanhar a Reserva Extrativista. Estamos abertos a ela. A Reserva Extrativista é a única saída para a Amazônia não desaparecer. E mais: essa reserva não terá proprietários. Ele vai ser um bem comum da comunidade. Teremos o usufruto, não a propriedade.”

Custou-lhe sua vida a atuação corajosa em defesa da expropriação dos latifúndios, o enfrentamento com a mineração, com as hidrelétricas, com o agronegócio e toda gestão capitalista da região em detrimento da natureza e dos povos na região. Propunha o usufruto, a gestão da terra pelos povos locais, apontando – ao menos para a região amazônica – um sentido de uma reforma agrária que não passa pela propriedade privada da terra – mas ao mesmo tempo convive com o capitalismo circundante. Essa elaboração programática feita por Mendes, pelos seringueiros, povos indígenas e ribeirinhos é um aporte a pensar outros modelos de gestão dos recursos naturais e seu controle pelos trabalhadores e povos locais, ainda mais em tempo de crimes capitalistas da vulta que vimos em Brumadinho.

A defesa de uma gestão dos recursos pela população local e os trabalhadores (seringueiros) choca-se também com o programa adotado pelo PT, que não somente não combateu, mas apoiou a expansão agrícola capitalista, o avanço da mineração predatória, deixou a Vale privatizada, adotou o uso desenfreado de inundações para hidrelétricas, tudo isso para garantir mais recursos para entregar de bandeja ao imperialismo diretamente com royalties de sementes transgênicas ou através do criminoso pagamento da dívida pública.

A integração do PT ao regime nascido em 88 passou por seu aplauso e incentivo à soja, ao boi, a JBS, a Kátia Abreu, em direto detrimento e choque com os direitos dos povos indígenas, ribeirinhos e trabalhadores rurais e soa totalmente fora do lugar (para dizer o mínimo) sua defesa do legado de Chico Mendes mesmo que limitadamente à questão ambiental.

O programa adotado por Chico Mendes, sem uma estratégia global para enfrentamento com os capitalistas terminou por lhe custar a vida sem ter deixado essa semente para sua continuidade, o esforço seu e de milhares de outros trabalhadores rurais e ativistas é pisoteado hoje num esforço reacionário para os capitalistas conseguirem mais terra, mais vidas.

O esforço de Chico Mendes e muitos outros, o enfrentamento com o latifúndio, mesmo assim, lhes custou a vida. Uma vida pela qual Chico Mendes batalhava e que afirmava na conclusão da entrevista que o Jornal do Brasil não quis publicar:

e descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta até que valeria a pena. Mas a experiência nos ensina o contrário. Então eu quero viver. Ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero viver.

Precisamos arrancar das mãos de nossos inimigos o destino não somente de nossas vidas, mas até mesmo dos mortos para vinga-los expropriando o latifúndio, derrotando o capitalismo. Para calar o irrelevante Salles e todo seus parceiros no condomínio bolsonarista é preciso pegar a obra de vida de Mendes, arrancar das bocas imundas do agronegócio, e leva-la a uma global crítica ao capitalismo, para do seio do Brasil, da Amazônia, ao cerrado, às montanhas de Minas ergamos outro uso da terra, um uso que esteja a serviço dos trabalhadores, de todos os povos, e estabeleça um outro metabolismo da humanidade com a natureza, o que é impossível sem batalharmos por construir um governo operário de ruptura com o capitalismo.

 
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