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ENEM 2018
Enem: uma pedra no sapato da “escola sem partido” e um filtro social que exclui milhões
Redação

O Enem cumpre um papel absurdo: sob a aparência do “mérito”, legitimar a exclusão de milhões de jovens – em particular os negros e pobres – do acesso ao direito elementar de cursar o ensino superior. Mas nesse ano, em meio à ofensiva tramitação do “Escola Sem Partido”, do avanço da extrema-direita com a eleição de Bolsonaro e de uma bancada recorde da Bíblia e da bala, isso se combinou a um conteúdo que deixou de cabelo em pé os que querem transformar a escola num lugar sem crítica e reprodutor do que há de mais reacionário na ideologia de nossa sociedade.

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A luta pelo acesso universal ao ensino superior é uma luta democrática fundamental, pela garantia de um direito que deveria ser de todos, do acesso à educação, a uma formação profissional e ao patrimônio científico, cultural e educacional de que a humanidade dispõe, e que só pode existir graças aos esforços da classe trabalhadora, que com a riqueza produzida pela sua exploração gerou os recursos utilizados para todo tipo de avanço no nosso conhecimento. Toda as universidades são frutos indiretos e diretos da exploração, ou, como disse Walter Benjamin, “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”.

Alguns números da exclusão

O vestibular – hoje representado pelo Enem na maior parte das universidades públicas do país – é um retrato gráfico da exclusão e do elitismo em um país onde ingressam cerca de 3 milhões de estudantes no Ensino Superior por ano, e 82,3% destes em instituições privadas (dados do censo da educação superior do Inep. Nesse anos, foram 5,5 milhões de inscritos no Enem para concorrer a cerca de 240 mil vagas em instituições públicas na edição do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), e se preveem cerca de 200 mil na primeira edição de 2019. Ou seja, mais de cinco milhões de inscritos não poderão ingressas nas universidades públicas, um número escandaloso.

Se é verdade que o sistema de cotas, garantindo 103,9 mil das vagas do primeiro semestre, aumenta significativamente a fatia de estudantes negros que conseguem ingressar, também é verdade que a esmagadora maioria da juventude negra e filhos da classe trabalhadora continua completamente excluída do ensino superior. Por isso, não fazemos coro com quem “comemora” o Enem, já que ele é a materialização de uma exclusão imensa que combatemos, lutando pelo fim do vestibular no país, uma medida que só pode começar pela estatização dos imensos monopólios educacionais que fazem um negócio incrivelmente lucrativo daquilo que deveria ser um direito. Apenas a Kroton lucrou R$ 467,3 milhões no segundo semestre desse ano, explorando 936,8 mil alunos.

Uma prova oposta à “Escola Sem Partido”

O que é cobrado dos alunos que prestam o Enem é algo que nada tem a ver com a realidade do sistema público de ensino incrivelmente precarizado de nosso país. Salas superlotadas, falta de material básico e até mesmo de giz, professores com salários ínfimos e jornadas de trabalho absurdas são alguns dos mais graves problemas entre tantos outros. Nesse contexto, é muito difícil que os alunos tenham as condições adequadas para desenvolver o tipo de interpretação de texto e outras questões que são o centro do que é demandado numa prova extremamente árdua, de mais de cinco horas de duração, 90 questões em cada dia e uma redação. Por isso, não é à toa que mesmo no ano com menor número de ausências desde 2009, quase um em cada quatro inscritos não tenham comparecido à prova.

Contudo, esse sistema excludente e absurdo está tão naturalizado que são muito poucos os que denunciam seu caráter elitista de filtro social, extremamente racista e excludente. A ideologia do “mérito” que oculta esse sistema feito sob medida para uma sociedade de classes baseada na exploração é o que dá uma máscara “democrática” à segregação social. Mas vimos nesse ano um outro setor social que ficou revoltado com o Enem. Trata-se dos apoiadores da ideologia de extrema-direita do bolsonarismo, das bancadas evangélicas, de outros grupos sociais que vêm tentando minar qualquer possibilidade de ensino crítico nas escolas. Veja um pouco da revolta reacionária contra a “prova esquerdista” que eles manifestaram nas redes sociais:

Isso não é à toa: conhecida por ser uma prova distinta da maioria dos vestibulares, de caráter menos “conteudista” e que tenta integrar conhecimentos transdisciplinares com o estímulo à reflexão dos alunos, nesse ano vimos uma prova que batia de frente com uma ideologia reacionária da extrema-direita que vem se fortalecendo. E, em meio ao avanço da escola sem partido no Congresso, o Enem abordou temas como o racismo, a LGBTfobia, a escravidão, a agricultura ecológica, a ditadura militar.

Uma questão abordava Rosa Parks, mulher negra que, ao se recusar a ceder o seu lugar no ônibus a um homem branco nos EUA dos anos 50 (os assentos eram segregados, como todos os espaços públicos), se tornou o estopim e um dos símbolos da luta pelos direitos civis dos negros naquele país. Outra questão falava sobre o “pajubá”, dialeto da comunidade LGBT no Brasil. Diversas questões abordavam o machismo em distintos âmbitos sociais, como nos esportes, nos concursos de beleza, na publicidade, no assédio nos transportes, nos produtos de beleza. A literatura abordada trouxe figuras pouco canônicas como Torquato Neto, CUTI (com a temática do racismo), Angélica Freitas (falando sobre o machismo) e Natalia Polesso (com a temática da sexualidade lésbica). Outra questão questionava o modelo político do agronegócio falando em agricultura familiar como forma de incrementar a agroecologia no país. E, coroando os temas “polêmicos”, a redação propunha o tema de manipulação do comportamento do usuário por meio do controle de dados na internet: um assunto sob medida para colocar em pauta uma eleição presidencial em que a campanha suja de caixa 2 de Bolsonaro e empresários espalhou milhares de mentiras pelas redes sociais, utilizando o conhecimento de Steve Bannon, que fez o mesmo serviço para Trump.

Diante disso, muitos setores progressistas celebraram a prova do Enem como uma “afronta”, uma “subversão”. E, quando o congresso nacional e o presidente eleito estão propondo enterrar qualquer possibilidade de educação sexual e de gênero nas escolas, tendo feito do carro-chefe de sua campanha a difamação em torno do “kit-gay”; quando esse mesmo presidente eleito e seus deputados incitam a perseguição a professores nas escolas com a filmagem de suas aulas supostamente “doutrinárias” porque ensinam “absurdos” como a reflexão crítica ou o marxismo – um dos mais brilhantes métodos científicos de investigação histórica, econômica, filosófica etc. que a humanidade já produziu; quando o futuro ministro da educação propõe que o evolucionismo é uma “opinião” tão válida quanto o criacionismo que quer ver nas escolas em pé de igualdade; quando o ensino à distância para crianças é colocado como plano de governo; quando se propõe a militarização das escolas e o retorno da disciplina de “moral e cívica” para se instigar a obediência sem crítica; e, enfim, quando essas barbáries educacionais todas são apenas alguns exemplos de uma extensa lista de ataques sendo planejados à educação, de fato é compreensível que cause um alívio ver uma prova aplicada a 5 milhões de pessoas que vai no sentido oposto. E seria incrível que grande parte dos temas abordados nessas questões fossem ensinados, debatidos, refletidos nas salas de aula, algo totalmente distante da realidade.

Em tempos de uma disputa ideológica acirrada em torno do papel social da educação, não há como negar que temas trazidos pela prova do Enem são um contraponto importante ao obscurantismo que ocupa os palácios, casas parlamentares e tribunais. Mas não podemos esquecer que essa prova é, em seu objetivo e sua concretude, uma forma de legitimar o que há de mais absurdo na educação brasileira: uma exclusão brutal que atinge sobretudo aqueles que foram representados nas questões – os negros, os LGBTs, os setores mais explorados e oprimidos da nossa sociedade. Seus temas progressistas estão muito distantes das salas de aula, e é perverso e cruel que sejam utilizados não para promover a reflexão crítica, a inclusão social, a revolta contra uma ordem excludente, mas sim para perpetuar esse sistema. A comemoração do Enem não deixa de ser uma legitimação dessa exclusão .O que precisamos é lutar para que esses temas estejam presentes em cada sala de aula e não em uma prova feita para excluir milhões da educação. E, num governo de Bolsonaro, o Enem inevitavelmente terá contornos reacionários também no conteúdo das questões, colocando também um crivo ideológico direitista na prova.

Se queremos uma educação capaz de combater preconceitos, ideologias reacionárias e valores excludentes, precisamos lutar por uma educação universal, sem filtros sociais que deixem milhões de fora das universidades públicas e – na melhor das hipóteses – tendo que pagar fortunas para fazer cursos com currículos decididos por empresários bilionários da educação – os mesmos que estão de olho em abocanhar a “fatia de mercado” do ensino básico com o novo governo. Lutemos pelo fim do Enem, pelo fim de todos os vestibulares e contra o Escola Sem Partido.

 
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