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GRUPO DE ESTUDOS DE CULTURA E MARXISMO
Violência e corrupção: a polícia por Plínio Marcos
Flávia Toledo
São Paulo

Por meio de quatro personagens alegóricas em Querô, Plínio Marcos pinta um retrato da polícia brasileira desde o olhar do submundo.

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REPÓRTER: São milhares de menores abandonados que perambulam pelas ruas da cidade onde moro. Diariamente, centenas deles praticam crimes contra o patrimônio e contra a segurança dos cidadãos contribuintes. Diariamente, esses cidadãos contribuintes exigem soluções para o problema dos menores abandonados sem, contudo quererem abrir mão dos seus privilégios, dos seus tesouros, dos seus confortos.

Assim o Repórter de Plínio Marcos se dirige pela primeira vez aos espectadores de Querô – Uma Reportagem Maldita. Querô é um desses menores abandonados, e é a partir do confronto com os policiais que durante toda a sua vida o violentaram, que conhecemos a sua dura jornada.

A única forma pela qual o Estado se faz presente na vida de Querô é a Polícia, portanto, pela repressão e pela violência. É a polícia o elemento regulador das relações entre o centro e a periferia, entre o submundo e a cadeia produtiva da qual os marginalizados como Querô estão irremediavelmente separados.

Em seu primeiro contato com a lei, a ordem e o Estado, Querô, “empilhado, espremido, esmagado de corpo e alma no imundo cubículo do reformatório”, sofre intensa violência moral, física e sexual. O medo que sente da polícia logo se transforma em revolta, sabendo-se injustiçado, e ódio.

UM RETRATO DA POLÍCIA BRASILEIRA

Sendo ele próprio um “repórter do submundo”, Plínio Marcos conheceu muito bem o aparato repressivo do Estado. Para representar a polícia na relação violenta que tem com Querô, o autor desenvolve três personagens diretamente ligadas à instituição: Sarará e Nelsão, dois policiais operacionais, e o Delegado. Por essas três figuras, temos um retrato da polícia enquanto instituição corrupta e violenta, executora da ideologia dominante responsável pelas leis – e pela vista grossa a elas quando convém.

Sempre atuando em dupla (em uma dinâmica semelhante à de Branco e Augusto, que o palhaço Plínio Marcos com certeza dominava), Nelsão e Sarará formam o corpo operacional da polícia: o primeiro é o braço armado, o segundo, a cabeça corrupta.

Sarará, esperto e bom de lábia, cumpre a função de negociar e garantir seus benefícios e privilégios. Corrompe a tudo e a todos e estabelece os acordos que firmam o poder paralelo da polícia, cuja ação é sabidamente ilegal onde o Estado não chega de maneira produtiva. É a alegoria da corrupção, o cara que “se dá bem” às custas da segurança, do bem-estar e, por que não?, da vida dos outros.

“SARARÁ: [...] Eu não sou porra nenhuma. Não gosto de violência. Mas o Nelsão é foda. Foi lutador de boxe. Deu porrada, mas também levou muito soco na cabeça. Ficou meio devagar. Sonado, mesmo. Quer conversar, não sai muito papo, aí ele fica nervoso. Começa a bater. [...] Não tô querendo deixar o Nelsão te machucar, porque vou me interessar pelo teu futuro [, Querô]. Tás entendendo? Pode se abrir.”

Nelsão, por outro lado, é a força bruta que só faz receber ordens e violentar aqueles a quem a Lei é sempre dura. É a violência extrema que assassina crianças nas favelas, que faz sangrar professores em greve, que enche de gás as ruas da cidade em manifestações. Com apenas duas personagens, Plínio escancara a ação policial no Brasil: quem não firma um acordo com Sarará, tem de se resolver com Nelsão.

A POLÍCIA QUE FICA ATRÁS DA MESA

Outra figura institucional que compõe a polícia em Querô é o Delegado. Não suja as mãos, não faz negócios, apenas garante o seu sem se comprometer. Satisfaz o desejo sádico de fazer moleques pobres como Querô sofrerem, mas só dá a ordem de “tratá-los como merecem”. Tem ao seu lado o conhecimento acerca das Leis, e por isso sabe como quebrá-las da melhor e mais limpa maneira possível. Apenas observa todo o jogo sujo que se arma sob o seu nariz e mantém seu poder ostentando informação e conhecimento. É a parte engravatada da polícia.

E fechando a alegoria, Plínio nos oferece uma quarta personagem que não parece fazer parte do jogo policial, a princípio: Tainha, um jovem traficante que coordena a contravenção na área de Querô. Tainha, que já é maior de idade, provavelmente já foi um Querô – não teve oportunidades, foi levado ao crime pelos caminhos impostos pela vida. Mas ele faz uma escolha que Querô se nega a fazer: ele faz um acordo com a polícia e passa a trabalhar pra ela.

Tainha não só entrega Querô para a polícia, mas também estabelece a base do poder paralelo que Nelsão e Sarará impõem à população local. Ele negocia, é a própria imagem de organizações criminosas que vivem em uma falsa guerra com o Estado, já que, por meio de seus acordos e propinas, dão o suporte necessário para o abuso de autoridade da polícia sobre áreas mais carentes.

ATÉ QUE OS MARGINALIZADOS SE LEVANTEM...

Plínio conclui sua peça mostrando a crueldade de uma polícia que, impedindo qualquer dignidade em vida, não a respeitaria na morte. E frente a um quadro de total desprezo pela vida humana, faz um chamado para uma nova lógica social.

REPÓRTER – Era de tardezinha, quando os homens, com suas armas, encontraram o Querô. Mas já não era necessário despejarem o veneno de suas metralhadoras no corpo inanimado. Querô já estava caído pra sempre. Assim mesmo, despejaram ódios no pequeno bandido. E ele ficou lá caído para sempre. Ou caído até o dia em que, animado pela virilidade espiritual transformadora, ele e outros como ele se ergam das cinzas onde se sufocam, das chamas onde se ardem, das fomes onde se desesperam, dos cubículos onde são empilhados, espremidos, esmagados de corpo e alma, nos sórdidos recantos onde se degeneram e venham cobrar de nós, cidadãos contribuintes, as ofensas todas que em nome de nossos tesouros, de nossos privilégios, de nosso conforto, fizemos à dignidade humana.”

(Este texto é fruto da discussão feita na sessão do Grupo de Estudos de Cultura e Marxismo do dia 14 de Agosto, que discutiu a questão da Redução da Maioridade Penal a partir da leitura de Querô.)

 
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