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IMPERIALISMO
O desaparecimento de um jornalista e a obscura relação entre EUA e Arábia Saudita
Claudia Cinatti
Buenos Aires | @ClaudiaCinatti

O desaparecimento de Khashoggi desatou uma crise geopolítica de grande magnitude, que envolve nada menos que os Estados Unidos, a Arábia Saudita e a Turquia.

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No dia 2 de outubro, alguns minutos depois do meio dia, Jamal Khashoggi entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul. Sua noiva turca, com quem ia se casar no dia seguinte, esperava-o na porta. O trâmite era supostamente simples: retirar um papel para o casamento. Mas Khashoggi nunca saiu.

Jamal Khashoggi é (era) um jornalista de origem saudita, que vivia exilado em Virgínia, há pouco mais de um ano, quando começou a criticar em suas colunas de opinião no jornal Washington Post o príncipe Mohammed bin Salman, que ganhou a pecha de “reformista” perante o ultraconservador reino saudita; e que o Ocidente comprou com alegria e sem fazer muitas perguntas, porque servia para mascarar seus negócios com este regime retrógrado, que vão desde petróleo a venda de armas.

Sua última coluna para o jornal estadunidense é de 11 de setembro e trata sobre os crimes sauditas na guerra civil no Iêmen, onde a Arábia Saudita entrou em guerra por pessoa interposta contra Irã, para a qual conta com a aprovação do presidente americano, Donald Trump.

O jornalista ainda não apareceu, nem vivo e nem morto. Mas seu assassinato dentro do consulado saudita já é assumido como um fato. Funcionários de inteligência turcos, que vigiam inclusive as embaixadas e delegações estrangeiras, entregaram aos Estados Unidos evidências quase incontestáveis sobre um grupo de uns 15 integrantes de serviços de inteligência sauditas que ingressaram minutos antes que Khashoggi no consulado, interrogaram-no, assassinaram-no, e logo esquartejaram seu cadáver com uma serra e supostamente o levaram em pedaços para a Arábia Saudita.

Além dos áudios e vídeos, o que está a favor desta versão é que o próprio Khashoggi suspeitava que estavam armando uma armadilha para ele. Tinha ido ao consulado em 28 de setembro, mas com justificativas pouco sérias o chamaram novamente para dia 2 de outubro. Talvez o olfato para detectar crimes que havia desenvolvido em muitos anos de relação com o regime saudita fez com que expusesse estas suspeitas, pouco antes de desaparecer, para a BBC e outras mídias.

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan jogou suas cartas nesta crise ao revelar o crime. Como é óbvio, não está motivado pela defesa da liberdade de expressão. Desde a tentativa falida de golpe de 2016 e com a consolidação do giro bonapartista, o governo de Erdogan encarcerou centenas de jornalistas, acusados de “terrorismo”, além de ter um recorde de mais de 15 mil presos políticos.

Erdogan parece ter um duplo objetivo: recompor a relação com os Estados Unidos e ver se isto ajuda a tirar a Turquia da crise econômica em que está imersa. E colocar um entrave na aliança dos Estados Unidos com a Arábia Saudita, o que talvez permitisse reviver as esperanças de liderança regional do líder turco, seriamente questionadas pelo giro reacionário que assumiu a região depois da derrota da “primavera árabe”. A aposta de Erdogan de exportar o chamado “modelo turco” fracassou com o golpe militar que derrubou a Irmandade Muçulmana no Egito, com apoio da casa Saudita. Seu papel na guerra civil na Síria e agora neste incidente, que tem alto impacto por se tratar de um jornalista, poderia lhe devolver algum holofote.
Durante duas semanas, a Arábia Saudita negou estar envolvida, mas diante das provas mudou de estratégia e agora assumiria que funcionários de seus serviços de segurança estariam envolvidos.

Para a tribuna, Trump ameaçou com um “duro castigo” se se comprovasse que a coroa está envolvida. Mas nos bastidores, já estava em marcha a operação de acobertar este crime de Estado. O presidente Trump foi o primeiro em formular a teoria dos “rogue killers” que seguramente se imporá como a versão oficial com a viagem do secretário de Estado, Mike Pompeo a Riad. Segundo esta versão fictícia, Khashoggi foi assassinado no consulado saudita por um grupo de serviços que decidiram interrogá-lo, passaram dos limites e, por via das dúvidas, tinham uma serra na oficina para se desfazerem do corpo. Todo isto pelas costas do príncipe Salman.

Os pedidos da família do jornalista por uma comissão internacional independente para investigar seu desaparecimento, dada a politização do caso, virão por água abaixo.

Para Trump se trata de proteger sua presidência: recordemos que foi seu genro Jared Kushner o encarregado de cimentar a aliança entre Salman e a Casa Branca, mas também alguns interesses vitais dos Estados Unidos. Do ponto de vista político, a Arábia Saudita é um dos pilares de sua estratégia no Oriente Médio, que é consolidar uma aliança sunita-israelita para liquidar as aspirações hegemônicas de Irã.

Do ponto de vista econômico, estão em jogo negócios milionários que envolvem não só o equilíbrio do preço do petróleo e seu impacto geopolítico, mas também contratos de venda de armas ao reino saudita e investimentos financeiros e tecnológicos das principais empresas imperialistas que tinham se inscrito para participar do chamado “Davos do deserto”, uma cúpula de negócios que agora está em suspenso. Um dos primeiros a aproveitar-se do evento, que ia ser uma celebração dos lucros capitalistas e da reconfiguração reformista da monarquia saudita, foi Jeff Bezon, o homem mais rico do planeta que além de ser dono da Amazon é o proprietário do Washington Post, o jornal onde trabalhava Khashoggi. O seguiram JPMorgan Chase, BlackRock (o mesmo fundo de investimento que tem uma grande parte dos bônus da dívida argentina), Google, New York Times, CNN e segue a lista dos que estavam dispostos a alimentar o mito da reforma da monarquia saudita.

A monarquia saudita, que tem uma carteira generosa, ameaçou responder qualquer castigo financeiro na mesma moeda. Entre outras questões, a missão de Pompeo contemplaria preservar esta cúpula de negócios.

A desaparição de Khashoggi desatou uma crise geopolítica de grande magnitude, que envolve nada menos que os Estados Unidos, a Arábia Saudita e Turquia. E pôs em evidência que, na hora dos negócios e da ordem, democratas e republicanos nos Estados Unidos privilegiam a aliança espúria com um dos principais bastiões da reação. Justificado por uma versão rigorosa do islã, a monarquia saudita mantém um regime de terror, onde a opressão de gênero e a perseguição contra a minoria xiita são questões de Estado. Só em 2017, o regime saudita decapitou 150 pessoas. E este ano poderia superar sua própria marca, se seguir executando opositores no ritmo sustentado pelos últimos meses.

A crise ainda está em curso, mas já está tomada a decisão de fechá-la absolvendo a monarquia saudita. Isto não pode surpreender. Desde 1945, a aliança entre Estados Unidos e Arábia Saudita tem um caráter estratégico para os interesses do imperialismo norte-americano. E agora que Trump se apressa em redobrar a ofensiva contra o Irã, os serviços que o reino presta para evitar um disparo dos preços do petróleo renovam a relação de benefícios mútuos. Por isso sobreviveu a crises piores, como a suspeita de responsabilidade saudita nos atentados às torres gêmeas, ou o financiamento de organizações terroristas reacionárias como o Estado Islâmico. Provavelmente, quando desaparecer dos jornais o jornalista desaparecido no consulado saudita, tudo retorne a sua hipócrita normalidade.

Tradução: Luciana Vizzotto

 
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