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TEORIA FEMINISTA
O agressor, os homens e o patriarcado
Andrea D’Atri
@andreadatri
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Ilustração: Iara Rueda

A campanha #MeToo, que as atrizes de Hollywood levaram adiante, conseguiu a visibilização massiva da violência sexual contra as mulheres, convertendo o ano de 2017 – segundo Marina Mariasch – no “ano do giro denunciante”1. Mas além disso, o que é menos conhecido, o ano de 2017 abriu também debates não só com suas colegas francesas, mas também nos feminismos: as perguntas incômodas2 mostraram a diversidade de enfoques que levam a diversos posicionamentos políticos e a suas diferentes consequências.

Ainda que pela ausência de registros adequados é quase impossível avaliar se a violência contra as mulheres é maior atualmente do que em outras épocas, ou inclusive se a mesma violência tem uma visibilidade maior do que antes, o que se pode afirmar categoricamente é que nos últimos anos as mulheres estão trazendo à tona a questão da violência de gênero e suas múltiplas maneiras de se manifestar. Existe um novo espírito de época em que o “umbral social de tolerância” diminuiu (“nós não nos calamos mais”) e, portanto, a definição de violência sexista e as condutas que engloba essa categoria mudaram substancialmente.

Como traçar a linha entre um comportamento brutalmente violento e outro impertinente sem consequências graves? Parece difícil estabelece-lo de uma única vez, porque precisamente esses limites – que se redefinem constantemente ao mesmo tempo que comportamentos e pareceres que permaneciam naturalizados são desconstruídos – são um terreno em disputa (social, política e ideológica).

As denúncias de vítimas de distintas violências – não só patriarcal – conseguiram, nos últimos anos, transformações na área do Direito Penal. Entretanto, o Estado capitalista-patriarcal, apesar de reconhecer as mulheres como vítimas e aumentar as normas punitivas – em um reconhecimento distorcido à existência de uma violência diferenciada contra elas –, não só as revitimiza em delegacias, fiscais e julgamentos, mas também, mais do que isso, é incapaz de prevenir ou pelo menos diminuir a taxa de feminicídios com medidas elementares, como a construção suficiente de refúgios para vítimas, a implementação de licenças com bons salários ou subsídios que cubram a renda mínima familiar para aquelas que atravessam essa situação, a outorga de créditos baratos para o acesso à moradia própria, etc.

A miserável resposta do Estado frente aos brutais feminicídios, a violência sexual e outras formas de violência patriarcal é o terreno onde proliferam diferentes estratégias políticas que colocam no centro a denúncia pública e a vingança individual.

Justiça patriarcal e estratégias do feminismo

É necessário que uma vítima seja acompanhada e seja escolha sua de como, quando e onde expressar seu sofrimento ou de que modo reclamar reparação; ainda assim, compartilhamos com Marina Mariasch que “se alguém incorre em uma prática abusiva não necessariamente se converte ontologicamente em um abusador”, como um fundamental direito à defesa, que permita transcender da vingança à construção do que ela denomina uma “justiça feminista”. Mas é necessário que não se exija de uma vítima que seja ela quem trace, desde sua dor, as estratégias de um movimento social e político. Este último é assunto dos feminismos e é neste terreno onde nos permitimos as perguntas incômodas e o debate. Ileana Arduino apontava – no número anterior da Ideias de Esquerda argentina – para que se discutam os métodos das denúncias públicas e os escrachos no combate contra a violência “para não ceder irreflexivamente ao papel de vítimas que cedo ou tarde exige que nos ajustemos a fórmulas muito conservadoras, despolitizando nossas ações”.

A despolitização das ações contra a violência patriarcal é o que impõe a lógica punitivista. Como já apontamos no artigo argentino “Patriarcado, crime e castigo”, para o Direito o agente de um delito é singular: é impossível fazer com que o patriarcado se sente no banquinho dos acusados. O Estado capitalista-patriarcal reconhecer às mulheres o direito de viver uma vida livre de violência, castiga aqueles que transgredem este direito e, nesta mesma operação, os indivíduos singulares que exercem concretamente a ação, são afastados do sistema social de relações entre os gêneros que naturaliza a subordinação do feminino. Estes indivíduos serão considerados anômalos, patológicos, criminais, invisibilizando – nessa operação – que são os agentes/emergentes de uma violência constituída como o último (e em ocasiões, letal) elo de uma cadeia de violências sociais, culturais, políticas, econômicas “normalizadas”. Desde este ponto de vista, a luta contra a violência às mulheres se torna impotente por se tratar de uma (infinita) somatória de punições que, ainda que se pretendam exemplificadoras, está comprovado que não conseguem eliminar, nem mesmo reduzir o número de vítimas ou dos sofrimentos da opressão.

No outro extremo, como se tratasse de um espelho, há um feminismo que não acredita no poder punitivo do Estado, se vê como executor e garante para as vítimas uma nova modalidade simbólica de justiça “por mão própria” que por não transcender virtualmente carece de efeitos “reais”. Ao contrário do que é dito pelo sistema penal, é estabelecido que se a agressão não é uma anomalia, então o agressor não é um “caso isolado” (“os violadores e feminicidas são filhos sãos do patriarcado”), e sim que representa um coletivo de potenciais vitimários.

Por essa via, como declara Marina Mariasch, “os perigos que corremos são os de confundir a semeadura de agência e direitos com construção de medos”3. Arduino, por sua vez, adverte no número passado de Ideias de Esquerda da Argentina sobre outras consequências contra as mulheres:

“O escracho em si mesmo pode parecer irritante, mas não revisar essa tática também não nos mantém a resguardo dos custos: o backlash das mitómanas, da descrença, da banalização de nossos reclamos, da reedição de mensagens moralistas conservadoras sobre nossas liberdades, a devolução em forma de denúncias contra quem denuncia ou a captura instrumental punitiva e o fomento da delação como modo de relação são exemplos disso”.

Não é um homem (o agressor), e sim todos os homens que se convertem em “inimigos” de todas as mulheres, que automaticamente constituem um conjunto de vítimas atuais ou potenciais, irmanadas e homogeneizadas nessa vitimização que é cega às diferenças (daí o imperativo da sororidade). Ainda que esta época em que se conquistou o respeito à diversidade carregue um valor positivo, a identidade que permanece verdadeiramente invisibilizada na operação que homogeneíza as mulheres como vítimas, é a de classe social.

A luta contra a opressão das mulheres volta a cair, por outra via, na impotência: se há algo “natural”, “estrutural” ou “essencial” em (todos) os homens (ou na masculinidade), que os predispõe à violência contra (todas) as mulheres, então se mina toda possibilidade de estabelecer alianças entre as grandes maiorias oprimidas e exploradas da sociedade capitalista-patriarcal, debilitando a luta das mulheres. Não haverá escapatória para elas, destinadas a sucumbir diante da violência que são vítimas ou a exercer uma eterna resistência, sem alcançar nunca sua eliminação. Esta concepção gera um profundo ceticismo em relação a que, por mais que nos vejam juntas, o patriarcado não vai cair.

Entretanto, como apontava Mariasch no número anterior de Ideias de Esquerda da Argentina, o desejo feminista deveria ser o fim do feminismo “para que não haja machismo contra o qual lutar”, para arrematar com que “no pântano patriarcal estamos todas(os) afundadas(os). E mais vale sair ajudando-nos e dando-nos as mãos”.

Maior igualdade perante a lei ocultando a brutal desigualdade perante a vida

Que no pântano patriarcal estamos afundadas e afundados todas e todos, parece ter sido uma das conclusões mais estimulantes do feminismo radical dos anos 1970. Mais além das diferenças que nós marxistas sustentamos com as distintas correntes feministas, um de seus aportes essenciais foi que, partindo de experiências subjetivas do “mal-estar feminino”, concluiu que este não se explicava pela relação singular entre um homem e uma mulher, e sim que encontrava seu esclarecimento na existência de um sistema social (patriarcal), que estabelecia a desigualdade de poder entre os gêneros. Daí que essas inequidades do âmbito do privado deixaram de ser consideradas apenas uma experiência pessoal e foram denunciadas como um assunto político próprio da sociedade patriarcal, heteronormativa, capitalista. Esse é o conteúdo do “o pessoal é político”: “não era ele, não era eu, era a sociedade”4.

Atualmente, o pessoal é público. Mas público não é, necessariamente, sinônimo de político. Os contextos históricos destas ondas feministas são marcadamente diferentes e falam por si só das características notoriamente distintas entre ambas: os movimentos sociais dos anos ’70 emergiam com uma tela de fundo de radicalização social e política de massas a nível internacional; enquanto que as décadas seguintes só foi visto as massas retrocedendo frente a contra-ofensiva neoliberal, que liquidou suas organizações, suas conquistas e sua subjetividade.
Entretanto, nas democracias capitalistas ocidentais se estabeleceram limites parciais à desigualdade (cotas de representação em sindicatos, parlamentos e outras instituições; leis trabalhistas que restringem a brecha salarial ou garantem a igualdade de oportunidades, etc.) e outros direitos democráticos elementares (direitos sexuais e reprodutivos, direito ao aborto, casamento igualitário, etc.). E o mais recente, é que os Estados capitalistas ocidentais estão configurando novas figuras penais como o assédio nas ruas, o assédio no trabalho, a violação marital, a violência de gênero, os crimes de ódio, os feminicídios como homicídios agravados, etc., o que demonstra – como apontamos anteriormente – um relativo reconhecimento da existência da opressão das mulheres5.

A extraordinária feminização da força de trabalho6 e a conquista (sempre parcial, limitada e instável) de direitos democráticos que, em certo sentido, parece avançar na equiparação de “cidadãos e cidadãs de distintos gêneros”, elevou as aspirações das mulheres que hoje denunciam o notável contraste entre essa “igualdade perante a lei” e a persistente “desigualdade perante a vida”. Entretanto, sobre as novas gerações de mulheres, parece surgir um horizonte de impotência, onde a possível leitura de que “apesar de todas as mudanças, nada mudou” engendra uma necessidade de defesa, unilateralmente concebida mais como vingança do que como reclamo de direitos. Mas como aponta Ileana Arduino,

“É necessário pensar se mais além do tempo da fartura e do estouro não teria que se pensar no risco de que nossos gritos terminem funcionando para expandir perseguições que não alteram a ordem das coisas. Chegarão a distribuição igualitária de recursos, a desmercantilização dos afetos, a horizontalidade nas relações por esta via?”.

Patriarcado e capital: aliança criminal

Cada vez mais, o marco legal e o discurso político onde a equidade de gênero se estabeleceu como um valor positivo, contrastam notavelmente com essa desigualdade brutal na vida cotidiana, que permanece e emerge descaradamente com cada feminicídio; mas que também se manifesta nas dificuldade adicionais que as mulheres ainda têm para se abrir no âmbito público, nas copiosas estadísticas que demonstram as diferenças salariais e de condições trabalhistas entre trabalhadores e trabalhadoras, na persistente disparidade das cargas do trabalho doméstico, o cuidado e a criação e outras desigualdades que afetam milhões de mulheres e que são o substrato invisibilizado da violência contra elas. Isso afastado – no relato homogeneizador vitimizante – demonstra a profunda ligação entre opressão patriarcal e exploração capitalista. Como aponta Mariasch,

“(...) existe uma violência machista estrutural (...). Mas além disso, é no marco de uma sociedade estruturalmente desigual, onde as condições para as mulheres e as sexualidades dissidentes é pior – piores salários, trabalho precário e não remunerado, maior discriminação e violências – do que os abusos e violências sexuais, entendidos como abusos de poder. E é essa desigualdade estrutural que se deve apontar para exigir uma reforma radical e derrubá-la”7.

Esse “casamento por conveniência” entre patriarcado e capitalismo encontra ali a razão da sobrevivência de violências ancestrais contra as mulheres, atuando como disciplinamento e garantia da mais moderna exploração da força de trabalho feminizada que, além de ser super-explorada na produção, é sobre quem segue recaindo de maneira quase exclusiva a reprodução da força de trabalho global.

“O avanço punitivo faz com que demore as transformações reais imprescindíveis para desmontar a confusão de violências produzidas por muitas assimetrias”8, adverte Arduino, e assim as coisas que desejamos e necessitam de transformações reais devem ser refletidas e colocadas no debate: quais são os combates urgentes, quem é o inimigo e quais são as alianças necessárias para livrar essas batalhas. Porque “no pântano patriarcal estamos todas(os) afundadas(os)”, mas enquanto uma maioria de mãos curtidas pelo trabalho diário puxa para um lado para sair do pântano, uma pequena minoria de parasitárias mãos, suaves e refinadas, empurra no sentido contrário.

Referências:

1 - Marina Mariasch, “2017, año del giro denunciante”, LatFem, 31/12/2017.

2 - http://www.laizquierdadiario.com/La-pregunta-incomoda

3 - Idem.

4- A expressão é de um testemunho de Jacqui Ceballos sobre o feminismo dos anos 1970, no filme Ela é linda quando está irritada, de Mary Dore, 2014, disponível no youtube.

5 - Ver Andrea D’Atri E Laura Lif, "La emancipación de las mujeres en tiempos de crisis mundial" (Parte I E II), revistas Ideias de Esquerda 1 e 2 da Argentina, julho e agosto de 2013.

6 - Nas últimas décadas, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho alcança quase 50% a nível global, pela primeira vez na história.

7 - Marina Mariasch, op.cit.

8 - Ileana Arduino, “Feminismo: los peligros del punitivismo”, Inrockuptibles, 27/03/2018.

 
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