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LEGALIZAÇÃO DO ABORTO
Rússia revolucionária: o primeiro país a legalizar o aborto há quase 100 anos
Ana Sanchez

A Revolução Russa, que começou no Dia Internacional da Mulher de 1917, legalizou o aborto em 1920. Passados 100 anos de nossos debates, aqui contamos como foi a experiência.

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O direito ao aborto que se debate atualmente está relacionado com a saúde e a vida das mulheres. É isso que entendiam aqueles e aquelas que dirigiram a Revolução Russa, por isso, alguns poucos meses após o fim da guerra civil, uma das primeiras leis estava relacionada com a legalização do aborto. Com o tempo se demonstraria que foi a lei mais avançada da história no que diz respeito aos direitos das mulheres.

O decreto no qual se confirmava a legalização dizia: “Durante os últimos 10 anos, o número de mulheres que realizam abortos estava crescendo em nosso país e no mundo inteiro. A lei de todos os países luta contra esse mal com a punição às mulheres que decidem pelo aborto e aos médicos que o praticam. Este método de luta não consegue nenhum resultado positivo. Empurra o procedimento à clandestinidade e converte as mulheres em vítimas de abortistas gananciosos, e muitas vezes ignorantes, que se aproveitam dessa situação clandestina.

Isso significava também que “sob a lei soviética, o feto não era considerado uma pessoa com direitos. Uma mulher que abortou em qualquer etapa da gravidez estava isenta de processo.” (Wendy Goldman, Mulher, Estado e revolução, Boitempo, 2015). Uma mudança radical na legislação que há muito tempo, em 1885, definia o aborto como um “ato premeditado de assassinato” para a mulher que o praticasse.

Por quê na Rússia e há quase 100 anos?

A Rússia no começo do século XX era um país profundamente atrasado. Analfabetismo, sistema feudal de governo, pobreza generalizada, não exisitia nem sistema de saúde nem de educação, o poder estava nas mãos dos Czares e da Igreja.

Antes da revolução quase não havia direitos para a grande maioria dos camponeses e operário, muito menos para as mulheres. A 1ª Guerra Mundial, na qual a Rússia havia participado até 1917, havia levado as mulheres a ser parte do mundo do trabalho, enquanto os homens estavam no front. Isto significou que centenas de milhares se tirnaram costureiras, operárias da indústria alimentícia, têxtil, trabalhadoras da saúde, educadoras e também em mineiras, metalúrgicas, telefonistas, entre outras áreas de trabalho. Começaram a cumprir um novo papel social, agora podiam se organizar em seus locais de trabalho, podiam se reconhecer e assim participar dos eventos revolucionários que aconteceriam dali em diante. De fato, a Revolução Russa que começou com uma greve que consegue derrubar o Czar, se inicia com a mobilização das operárias têxteis do bairro de Viborg nas vésperas do Dia da Mulher, justamente um 8 de março.

Quem poderia imaginar que em um país desse tipo seria, de longe, o mais avançado nos direitos das mulheres? Leon Trotsky dizia que “se realmente queremos transformar a vida, temos que aprender a olhá-la através dos olhos das mulheres” e isso foi o que fez a Revolução.

Isso significou uma transformação absoluta em todos os aspectos da vida, especialmente para as mulheres. Os Bolcheviques tomaram as iniciativas mais revolucionárias do mundo para a época, que foi a expressão de uma política anterior quando, desde a II Internacional Comunista, liderada por Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin, quando proclamaram o Dia Internacional da Mulher em 1910, como uma aposta para organizar de maneira autônoma as mulheres pelos seus direitos.
O governo dos sovietes criou o departamento de mulheres do Partido Bolchevique, o Zhenotdel, para desenvolver políticas sobre os direitos das mulheres, da famílias e das crianças.

Inessa Armand, dirigente bolchevique disse que: “O poder soviético, apesar da desorganização, do bloqueio, das agressões dos guardas brancos (...) já garante parcialmente a manutenção públicas das crianças (...) A instrução é totalmente gratuita, desde o ensino fundamental até o ensino médio e superior (...) O trabalho infantil foi proibido até a idade de 16 anos (...) As mães são liberadas de todo o trabalho por oito semanas antes do parto e muitas outras depois; e durante todo esse tempo recebem um valor equivalente ao seu salário normal (...) Além disso, graças à criação de restaurantes públicos, a cozinha desaparece pouco a pouco da economia doméstica. A cozinha caseira, tão glorificada pela burguesia, mas que do ponto de vista da economia não é em geral adequada ao objetivo, é para as camponesas e em especial para as operárias um castigo insuportável, que lhes consome todo o tempo livre, as priva da possibilidade de ir a reuniões, de ler e de participar da luta de classes (...) O regime soviético é o regime de transição do capitalismo para o comunismo, um objetivo que é impossível de ser alcançado sem a absoluta emancipação de todos os explorados e, entre eles, as mulheres” (A trabalhadora na Rússia, Boletim Comunista, 1° anos, n°17, 8 de julho de 1920).

Nesse contexto, o direito ao aborto estava intimamente relacionado com a necessidade de cuidar da vida das mulheres. Apesar de a guerra mundial e a subsequente guerra civil terem significado uma perda de 7 milhões e meio de russas e russos, mesmo assim esse direito foi proclamado, porque por mais que fosse necessário repovoar o país, isso não poderia ser feito sob imposição e punição para as mulheres. Para as e os bolcheviques, legalizar o aborto era uma política de saúde pública de primeira ordem.

Enquanto isso, Alexandra Kollontai, uma das dirigentes bolcheviques de maior destaque, escreveu que "em nossa república de trabalhadores temos uma disposição desde 18 de novembro de 1920 que legaliza a interrupção da gravidez. (...) O nosso país não é densamente povoado, mas fracamente (...) E por que podemos legalizar o aborto nessa situação? Porque embora as condições de vida das mulheres não estejam asseguradas, os abortos continuarão a ser praticados (...) Atualmente, os abortos são realizados em todos os países e nenhuma lei pode efetivamente impedi-los. Para a mulher há sempre alguma forma, mas essa ajuda “secreta” destroi a saúde das nossas mulheres (...) um aborto praticado em condições normais por um cirurgião não representa absolutamente nenhum perigo para a saúde da mulher (...)". E afirmou: "encontramos a resposta para esta questão - que para as mulheres de todos os estados burgueses não está resolvida". (A mulher no desenvolvimento social, Ed. Guadarrama, Barcelona, 1976)

Como foi implementado?

As mulheres na Rússia poderiam abortar por sua própria decisão. Tinham que comparecer ante um gabinete de tipo ministerial para solicitar o procedimento, já que a legislação indicava que deveria ser feito somente em hospitais públicos, para garantir as condições assépticas do mesmo. O pedido diante de um escritório do Estado tinha a ver com o estabelecimento de prioridades, uma vez que os recursos eram absolutamente escassos: "os critérios foram formulados de acordo com uma hierarquia baseada na posição de classe e vulnerabilidade" afirma Wendy Goldman em seu livro.

E acrescenta que: "uma vez que a mulher obtinha a permissão para realizar um aborto, a operação em si era relativamente segura. As mulheres raramente morriam por abortos realizados em um hospital ".

Quase 50% das mulheres abortavam por serem pobres, o que as impediam de cuidar de uma criança, 15% porque decidiam não ter outro filho e 12% o faziam por problemas de saúde. Além das condições de extrema pobreza em que as pessoas viviam após a guerra, uma das razões que levavam as mulheres a fazer um aborto era a decisão de não ter mais filhos. Isso estava relacionado às mudanças trazidas pela revolução: seus horizontes se expandiram, não tinham mais como único destino o trabalho doméstico e a maternidade, mas sim a nova vida revolucionária que transformava as expectativas das mulheres; elas poderiam estudar, trabalhar, participar da política e fazer parte da construção do estado operário.

Naquela época não havia quase nenhum método de contracepção, então o aborto era muito comum entre todas as mulheres. Com essa legislação os bolcheviques queriam evitar a clandestinidade, que só garantia a morte para as mulheres. Embora as mortes não tenham parado por causa do enorme déficit que havia para atender a todas, em muitas das principais cidades essa prática era garantida em instituições de saúde pública massivamente.

É importante dizer que as bolcheviques achavam que a necessidade de recorrer ao aborto tenderia a diminuir quando a vida material melhorasse e permitisse às mulheres que desejavam ser mães ter filhos em melhores condições de vida, na medida que fossem se desenvolvendo as conquistas da revolução. Elas entendiam o aborto, ter filhos e cuidar deles como uma questão social, não individual, pois o Estado dos Trabalhadores tinha que cuidar deles.

Quase cem anos depois o aborto é uma prática que segue sendo realizada todos os dias em todo o mundo. A experiência da Rússia acrescenta motivos para lutar pelo aborto legal em nosso país e mostra que somente com a força das mulheres organizadas e nas ruas podemos conseguir "educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar e aborto legal, seguro e gratuito para não morrer".

Traduzido por: Bruno Portela

 
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