www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
DEBATE DE ESTRATÉGIA
A crise do Movimento Passe Livre e a falência do autonomismo
Fernando Pardal

Em 2013, o Movimento Passe Livre (MPL) foi colocado diante de um impasse: sendo um pequeno grupo de algumas dezenas de militantes no país, foi alçado repentinamente, e para sua própria surpresa, à testa de mobilizações de centenas de milhares que conseguiram derrotar governos e empresários e revogar aumentos das tarifas por todo o país. Essa história, todos conhecemos. Pretendo aqui dar uma visão que é também um balanço de um militante que, em 2005, participou da fundação desse movimento, tendo construído ele por cerca de um ano antes de romper e fazer uma crítica das concepções que o fundamentam, e que nos anos seguintes esteve em diversas lutas contra o aumento lado a lado com os companheiros do MPL, sempre pontuando tais divergências e suas implicações práticas para o movimento.

Ver online

Para saber qual a crise do MPL, é importante pensar sobre sua história anterior e os desdobramentos dessa nova situação no interior dessa organização. Nos dois anos que se seguiram a junho, o que ocorreu foi uma profunda crise dentro do movimento diante da sua própria impossibilidade de estruturar e dar uma expressão orgânica à revolta da juventude que foi às ruas. Essa crise, que gerou uma sucessão de rupturas, cartas de afastamento, artigos de balanço e divergências ideológicas, agora se expressa de forma aguda a partir da ruptura de um dos fundadores do MPL em 2005, Lucas “Legume”, que manifestou seu balanço em um artigo. Mas, afinal, qual é a crise do MPL?

O Movimento Passe Livre e o espírito de sua época

Em 2005, quando se fundou o MPL, uma ideologia se encontrava enraizada em grande parte da juventude que era contra o capitalismo ao redor do mundo: o autonomismo. Ela se constituía a partir da crítica do que esses jovens frequentemente chamavam de “velha esquerda” (como, inclusive, Legume a denomina em sua carta de ruptura), e o que viam como reprodutora de práticas ultrapassadas, burocráticas e autoritárias. O MPL era contra a forma de organização partidária, e se dizia “apartidário”, mas não “antipartidário”, na medida em que defendia a liberdade de participação de indivíduos pertencentes a partido em seu interior. Essa liberdade, contudo, estava restrita pela adesão a outros “princípios” do MPL, como a chamada “horizontalidade”, o “consenso” e a “independência” frente a partidos e instituições. Por horizontalidade, se entendia que nenhum militante seria hierarquicamente superior aos demais, não teria mais direitos ou deveres que qualquer outro, sendo todos membros iguais do coletivo. E o consenso era a forma usada para tomar as decisões: as votações eram vistas como formas autoritárias de decidir, que impunham as decisões de uma maioria sobre a minoria e minavam as possibilidades de diálogo e construção verdadeiramente coletiva.

Esses princípios, derivados da ideologia autonomista, se encontraram com uma forte onda de mobilizações contra o aumento de tarifas em algumas capitais (essencialmente a “revolta do buzu” em Salvador, em 2003, e a luta contra o aumento em Florianópolis em 2004 e 2005, que conseguiu barrar o aumento das tarifas), dando origem ao MPL em alguns municípios organizados de forma “federativa”.

Uma estratégia para mudar o mundo ou para reduzir as tarifas?

As questões organizativas sempre estiveram à frente das questões políticas no MPL (basta ver seus princípios), mas isso, na verdade é apenas a expressão de um problema muito mais profundo: o MPL sempre careceu de uma estratégia. [1] Na verdade, a questão do MPL, em sua origem, era a luta contra os aumentos e pelo passe livre estudantil. Concebia-se como uma “frente”, dentro da qual se reuniriam ativistas com diferentes estratégias: anarquistas, revolucionários, reformistas, autonomistas. Todos cabiam. Contudo, era impossível, evidentemente, estabelecer uma organização política sem delimitar como atingir os objetivos. E, ainda menos, sufocando qualquer posição divergente com o martelo do “consenso”, que, como afirma Legume em seu texto de ruptura: “Passamos a querer alcançar o consenso em todas questões (…) Os problemas desenvolvidos foram vários: algumas decisões eram barradas por um grupo pequeno de militantes irredutíveis em algum ponto, militantes eram pressionados a concordar com uma posição para não inviabilizar o consenso, construía-se uma posição que tentava contemplar duas vias completamente contraditórias para contemplar a todos. Como consequência dessa concepção peculiar de consenso, a discussão pública tornou-se um tabu.”

No discurso, todos eram anti-capitalistas; mas a prática restringiu-se, desde sempre, a lutar por uma demanda específica bastante pontual, fosse o passe livre ou a tarifa zero. E, como não podia deixar de ser, se procuraram alternativas “viáveis” (do ponto de vista da administração do estado capitalista) para alcançar esse objetivo. E não há nada de “anti-capitalista” em obter a isenção das tarifas em si. Isso ficou mais claro quando o MPL encontrou alguém que lhe forneceu uma “estratégia”: Lúcio Gregori, ex-secretário de transportes do município de São Paulo durante a gestão da prefeitura da ex-petista Luiza Erundina (hoje no PSB). Gregori chegou a implementar de forma piloto na Cidade Tiradentes o seu projeto, denominado “Tarifa Zero”: ele consistia em não cobrar a tarifa no ônibus, mas sim através de impostos. O que ele chamou de “municipalização” dos transportes era que a prefeitura contrataria empresas para fazer os trajetos e pagaria por trecho, e não por passageiro. As empresas privadas, contratadas pela prefeitura, continuariam, evidentemente, lucrando com isso. Para Gregori, isso pouco importava (seu absurdo argumento chegava a dizer que a prefeitura não poderia produzir os ônibus e os pneus, então alguma empresa privada teria que ser “contratada” em algum momento). Para o MPL também: o programa de estatização dos transportes (portanto, expropriação das empresas privadas que lucram com isso) sob controle dos trabalhadores dos transportes e usuários, sempre foi respondido por eles de forma ambígua, quando não diretamente recusado como uma “velha fórmula” da “velha esquerda”. Não raras vezes, os membros do MPL afirmaram publicamente, como Gregori, que não faz diferença se o transporte é estatizado ou está nas mãos da iniciativa privada, mas que o que importa é a garantia do direito à cidade por meio da Tarifa Zero. Mas como garantir o transporte como direito e como mercadoria ao mesmo tempo?

O MPL, após conhecer Gregori, deixou de lado seu programa de “passe livre estudantil” - agora considerado muito limitado – e adotou o programa da “Tarifa Zero” com o modelo de municipalização proposto por Lúcio Gregori. Na verdade, uma parceria público-privada com a instituição de um imposto progressivo para custear o transporte público – que não deixaria de ser fonte de lucro para capitalistas. As fontes desse recurso, segundo defendia o MPL, poderiam ser impostos como IPVA ou algo do gênero. Assim, a falta de um horizonte que colocasse – não em palavras, mas em um programa e uma estratégia – a perspectiva de que um transporte público, gratuito, de qualidade e para todos só pode ser obtido com o fim do transporte como mercadoria e fonte de lucro, fez com que o “anti-capitalismo” do MPL ou mesmo sua defesa consequente do transporte público não fossem mais do que palavras ao vento.

Métodos organizativos e composição social

A estratégia não passa apenas pelo programa a ser defendido, mas está também em como alcançá-lo. O MPL surge como um grupo de jovens universitários e secundaristas. A limitação disso para chegar a qualquer mudança social – inclusive medidas limitadas como a “Tarifa Zero” - sempre foi apontada por nós em discussões com o MPL. Mas, agora, como um saudável fruto de suas crises pós-junho de 2013, começa a ser pautada pelos seus próprios militantes, como nesse artigo de Fagner, militante de Goiânia: “a autonomia gerada e difundida atualmente pelo movimento não adentra o campo da produção econômica, pois o vínculo orgânico do MPL com as práticas de resistência dos trabalhadores do setor dos transportes e de outros setores econômicos é muito fraco ou mesmo inexistente, e se realiza muito limitadamente na relação com o Estado. (…) Na prática, o MPL tem se limitado, no geral, a expressar ideologicamente uma autonomia muito restrita, isolada e inofensiva, ao invés de generalizá-la numa unidade de ação com trabalhadores plenamente inseridos num dos setores mais importantes da economia capitalista (o dos transportes), sendo também pouquíssimo capaz de impulsionar ou de dar origem a novas instituições que, inseridas ou não na estrutura federativa do movimento e relacionadas diretamente ou não à luta pelo transporte, sejam capazes de aplicar a autonomia proletária numa amplitude crescente.”

Em que pese as divergências que poderíamos discutir em relação ao conceito de “autonomia” a ser alcançada pelo movimento, o texto de Fagner coloca corretamente a questão de que o MPL não tem como estratégia a ligação aos trabalhadores, ou seja, ao sujeito social da produção que é capaz de enfrentar decisivamente o poder da burguesia. Daí que seus métodos de luta girem exclusivamente em torno de atos de rua, abaixo-assinados, pressão parlamentar, atividades em escolas ou periferias, tendo como “objetivo final” a aprovação de um projeto de lei por meio da pressão popular.

Além disso, a questão dos métodos organizativos, como a impressionante e infindável discussão sobre o método do consenso, tomam o lugar central nas reflexões dos militantes, como se essas fossem mais importantes em si do que a finalidade estratégica do movimento. As concepções de organização e estratégia da “velha esquerda” eram relegadas como “doutrinárias”, enquanto se fazia um fetiche dos novos métodos “autônomos” no MPL. Aí chega-se a uma crítica feita por Legume em sua carta de afastamento, quando diz que “os princípios foram transformados em nossa própria doutrina. Considerávamos essa a única perspectiva correta de atuação e, portanto, seríamos superiores aos demais agrupamentos da esquerda; assim as articulações eram feitas preferencialmente com aqueles que tinham acordo com esses princípios, ou por vontades individuais de algum militante, mas não a partir de lutas concretas.”

Ainda, discutindo limitações como um forçado “igualitarismo” entre todos os militantes, renegando especializações de tarefas, ou a eterna rediscussão de todos os pontos decididos, Legume acrescenta que “Ao procurarmos criar um movimento novo, com novas práticas, negando as práticas anteriores, nos aproximamos de um a-historicismo, no qual não recorríamos às experiências de lutas acumuladas para pensar os atuais dilemas. Isso não se restringia às lutas feitas pelos trabalhadores e trabalhadoras em outros países e tempos históricos; englobava a própria atuação anterior do movimento. A ausência de registros fazia com que as práticas e reflexões feitas pelo próprio movimento só fossem passadas adiante em espaços informais.”

Parte de aprender com a história da luta dos trabalhadores está em reconhecer e incorporar, também, a necessidade de organização das mulheres, negros, LGBTs e demais setores oprimidos pelo capitalismo para que esses sejam linha de frente da luta contra sua opressão, que está necessariamente vinculada à exploração capitalista. O lema “dividir para conquistar” é aí o que dá o tom da política da burguesia, fazendo com que as opressões geradas pela ideologia dominante coloquem explorados contra explorados. Nesse sentido, remarcamos a necessidade de que, sim, a organização das mulheres em torno de suas demandas é imprescindível. E, que, no entanto, é fundamental, para qualquer perspectiva emancipadora, ter a consciência de que nenhuma opressão de gênero, sexualidade, raça, pode ser combatida seriamente por fora de uma estratégia revolucionária para derrotar o capital, que se vale a cada dia dessas opressões para intensificar seus lucros e sua dominação.

Junho escancarou a impotência do MPL e do autonomismo

O problema do método se confunde com a ausência de estratégia: os métodos organizativos não são um fim em si mesmo, mas uma expressão concreta de uma determinada estratégia. O MPL optou por taxar como “velhas” tanto a estratégia que entende a luta como transporte como parte indisssociável da luta revolucionária, como as formas organizativas que estão a serviço dessa estratégia, tal como a forma de partido desenvolvida pela tradição leninista.

Isso, contudo, longe de fazer o MPL ser “novo”, fez com que fosse muito mais velho: adotou o programa reformista da Tarifa Zero, e em suas práticas organizativas “horizontais” estabeleceu as velhas práticas do “coleguismo”, dos “grupos de amigos” em detrimento das discussões políticas francas e bem delineadas. Isso, quem afirma, são os próprios documentos de ruptura e balanço.

Junho veio como uma bomba para o MPL: a princípio, a explosão espontânea de uma demanda social profundamente sentida e há muito represada no seio da juventude e dos trabalhadores teve o efeito de levar o MPL “à crista da onda”. Como nenhuma outra organização política, essa teve a oportunidade de organizar essa revolta; após a vitória contra o aumento, todos os olhos dos que estiveram nas ruas se voltaram ao MPL, como que perguntando: “e agora? O que fazemos?” A tragédia do MPL – que é também a da perspectiva autonomista na qual se baseia – está justamente em sua incapacidade inata de dar resposta a essa questão. Se a “horizontalidade e o consenso” podiam, ainda que de forma capenga, organizar alguns jovens questionadores, a mobilização de massas mostrou que a forma de organização do MPL, a sua falta de uma estratégia ampla e capaz de apontar uma solução de fundo ao problema do transporte – e que dirá de todas as demandas sociais que explodiram como um vulcão nos atos de junho – não é capaz de levar à vitórias mais profundas. Essa foi a questão central para levar a todas essas rupturas do MPL e a que um de seus fundadores declarasse “o fim” do movimento. É possível que, como afirmou Mayara, outra das fundadoras do MPL, seja arrogante da parte de Legume dizer que o movimento acabou porque ele saiu. Contudo, não nos parece que a questão seja a saída ou não de Legume, nem de outros membros e mesmo coletivos inteiros do movimento: foi junho e seu enorme potencial – que absolutamente não pôde ser aproveitado pelo autonomismo do MPL – que demonstrou que, ainda que possa continuar existindo por muito anos, o MPL chegou ao fim como perspectiva de luta pela emancipação e contra o capitalismo, e tende a cada vez mais ser um grupo de amigos decidindo as coisas “horizontalmente e por consenso”.

Nós do MRT atuamos com uma perspectiva distinta. A atuação dos movimentos sociais ou da perspectiva autonomista possui limites claros porque não pode apontar para uma estratégia capaz de enfrentar a burguesia até o fim, que possui não apenas o poder econômico, mas o Estado e todos os seus braços para nos combater. A única força social capaz de parar essas engrenagens é a classe trabalhadora, que tudo produz. E sua organização em partido é fundamental para passar da atuação estritamente sindical para uma atuação política. A partir dessa, os trabalhadores podem tomar em suas mãos o conjunto das demandas dos setores explorados, como é o caso da estatização dos transportes sob controle de trabalhadores e usuários. Esse é o exemplo que tomamos de nossos irmãos argentinos do PTS, que atuam não apenas nas fábricas e locais de trabalho ligando-se ao sindicalismo de base, mas dão uma expressão política nacional a essas lutas por meio de sua atuação na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT), que hoje se coloca como um fator relevante na política nacional, e nessas eleições está dando voz a milhares de candidatos operários em todo o país. Quando os trabalhadores levam suas vozes para expressar sua própria demanda, vemos a diferença substancial entre a pressão para a aprovação de um projeto como o Tarifa Zero. É para colocar essa perspectiva que hoje impulsionamos a campanha #MRTnoPSOL, para que possamos lutar pelas ideias revolucionárias no interior desse partido e dar voz aos trabalhadores. É essa discussão que queremos fazer com todos os que hoje assistem a crise do MPL e procuram formas de se organizar para lutarmos por demandas como um transporte a serviço dos trabalhadores e da população pobre.

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui