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SARTRE, BEAUVOIR E O AMOR LIVRE
A liberdade numa casca de noz
Fernando Pardal

Os intelectuais franceses Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre formaram um dos casais mais importantes para o pensamento do século XX. Sua literatura, sua filosofia existencialista e seu engajamento político tiveram uma imensa repercussão; eles foram ativos em momentos tão importantes quanto a resistência francesa à invasão alemã na II Guerra Mundial, a luta pela independência da Argélia contra o colonialismo francês, o maio de 1968 francês, os protestos contra o sufocamento da rebelião húngara pela URSS em 1956, a vitoriosa campanha pela legalização do aborto na França, entre tantos outros.

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Mas não é apenas a sua vida pública, sua atuação profissional e seu ativismo político que dão a eles a dimensão de um casal que desperta a atenção e serviu de modelo a muitos jovens de diversas gerações: a sua relação pessoal como casal tem uma vertente transgressora e questionadora da moral de sua época que lhe confere um valor imenso para qualquer um que procure desafiar os limites da camisa-de-força de nossa hipócrita moral sociedade. É esse aspecto instigante de suas vidas que a magistral obra “Tête-à-Tête”, de Hazel Rowley, aborda.

O livro de Rowley – que impressiona pela profundidade e detalhamento de sua pesquisa, mas também pela forma viva, envolvente e cativante que percorre os 51 anos de relacionamento entre Beauvoir e Sartre (entre 1929 e 1980, com a morte de Sartre) – é uma peça de valor inestimável para quem deseja compreender essa relação amorosa que serviu de inspiração a mais de uma geração de jovens em busca da transformação das amarras da monogamia, da família e do casamento.

O existencialismo

A liberdade foi uma busca permanente nas vidas desses dois amantes, e isso se expressa no mais famoso lema da filosofia desenvolvida por Sartre e aprofundada também por Beauvoir – o existencialismo – reproduzida na epígrafe desse texto. A base do existencialismo é afirmar a liberdade e a responsabilidade do sujeito perante si próprio e o mundo. A vida e os seres humanos, na visão existencialista, não possuem um significado a priori, ou seja, pré-determinado. Não possuem, portanto, uma “essência”. Isso implica na necessária liberdade de escolhermos nosso próprio significado como sujeitos, o sentido de nossa existência, a partir de nossas ações; são elas que determinam quem somos e nossa finalidade. Sartre dizia que a maioria das pessoas fugiam de sua liberdade porque ela era assustadora. Ele queria encará-la de frente e se fazer responsável perante ela.

Essa ideia fundamental do existencialismo é bastante bela; mas só poderia ter sido desenvolvida por alguém na posição de Sartre e Beauvoir, pois comete um imenso erro ao atribuir ao indivíduo a responsabilidade completa por sua vida, por seus sucessos e fracassos, pela forma como se desenvolve. Sendo assim, acaba caindo num individualismo imenso, já que não coloca na equação (ou pelo menos minimiza muito sua importância) um fator fundamental, que são as circunstâncias que cada indivíduo tem para ser “livre”.

A liberdade de um jovem intelectual francês, com formação universitária, um bom emprego e bastante tempo para refletir, ler, escrever, amar, enfim, desenvolver suas paixões e um trabalho no qual veja sentido, sem dúvida é muitíssimo diferente da liberdade que pode ser exercida por um trabalhador que não teve acesso aos mais elementares bens culturais de nossa civilização e se vê na obrigação de vender sua força de trabalho para um patrão por quarenta ou mais horas por semana, exercendo um trabalho com o qual não se identifica ou se realiza, e cujos frutos não pertencem a ele (alienado, portanto). Para conseguir um pingo da liberdade de que dispunham Sartre ou Beauvoir, uma pessoa nessas condições tem que empenhar-se num tremendo esforço; e muitas vezes simplesmente não lhe surgem tais condições para ser “livre”, já que há todo o peso de uma sociedade de exploração a lhe impedir. Essa ideia da relação entre liberdade e circunstâncias históricas e sociais é brilhantemente sintetizada em um trecho do livro “O 18 de Brumário de Luis Bonaparte” de Marx que diz: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, e sim nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”

A própria ingenuidade da ideia de liberdade individual do existencialismo – que ao longo de décadas vai se tornando nítida para o próprio Sartre – é um fruto das condições sociais em que ele vive, da divisão social do trabalho à qual também está submetido, exercendo ao longo de sua vida um trabalho exclusivamente intelectual e separado do processo produtivo em que a classe trabalhadora cria todas as condições para nossa existência, mas é simultaneamente alijada daquilo que produz. Contudo, essa noção da responsabilidade dos indivíduos perante sua liberdade e a luta contra as estreitas normas sociais foi muitíssimo valiosa para ambos. E foi aplicada em sua vida pessoal. Como afirmou Beauvoir, “Para mim, uma escolha nunca é final: está sempre sendo feita (...) O horror da escolha definitiva é que envolve não só o eu de hoje, mas também o de amanhã, razão pela qual fundamentalmente o casamento é imoral.”

A ruína da família Beauvoir e a independência econômica de Simone

Mas a experiência ensina progressivamente a Sartre e Beauvoir algo mais sobre a liberdade. Para Beauvoir, uma experiência marcante foi a morte de sua amiga de infância, Zaza, que foi criada como uma jovem católica em uma respeitável família burguesa, sofreu imensamente as privações destinadas às “mulheres respeitáveis” que, na época de 1930, não eram menos hipócritas que as de hoje, mas eram sem dúvida muito mais rígidas. Madame Lacoin, mãe de Zazá, aspirava a um “bom casamento” para a filha como o fator mais importante em suas vidas. Uma vida doméstica, para ser um bibelô bem educado de um rico burguês que a tomasse como esposa. Enquanto isso, curiosamente, a revolução bolchevique de 1917 na Rússia se encarregou de – por vias muito tortas – impulsionar a independência de Beauvoir. Seu pai, Georges de Beauvoir, investira toda sua herança em ações de ferrovias e mineração na Rússia. A expropriação feita pelos trabalhadores transformou seu capital em poeira. E, sem dinheiro para o dote das filhas, disse a elas com muita amargura: “Vocês nunca se casarão. Terão que trabalhar para viver”.

Muito tempo antes que Beauvoir optasse por lecionar filosofia no segundo grau do ensino público francês (o que, talvez pareça estranho a um brasileiro contemporâneo, mas era um ótimo e bem remunerado emprego), Marx e Engels já afirmavam que a primeira condição para a libertação das mulheres era sua inserção no processo produtivo, que lhes garantiria a independência econômica em relação a seus pais e maridos, e permitiria que não fossem escravas do lar. Beauvoir entendeu isso, e viu como, ironicamente, a ruína do capital de sua família com a revolução russa, havia sido um passaporte para sua independência.

Sua amiga Zaza não teria a mesma sorte, sendo zelosamente vigiada pela mãe para que tivesse um “bom casamento”, que por isso reprovou sua relação com o filósofo Maurice Merleau-Ponty, que, além de não ser rico, era fruto de um adúlterio de sua mãe, conforme a família de Zaza descobriu após contratar um detetive para investigar se Merleau-Ponty era um “bom partido”. Para tentar acabar com o relacionamento da filha, os pais de Zaza a mandaram passar um ano em Berlim. Zaza escreveu a sua amiga Beauvoir: “É muito difícil, Simone. Tem-se realmente que acreditar na virtude do sofrimento e querer carregar a cruz com Cristo para aceitar isso sem dar um pio.” Essa forte passagem expressa o peso de ser mulher, mesmo quando se era da classe dominante. Sua amiga morreu prematuramente, ainda em 1929. Beauvoir escreveu no primeiro volume de sua vasta autobiografia, “Memórias de uma Moça Bem-comportada”: “Durante muito tempo achei que tinha pago pela minha liberdade com a morte dela”, referindo-se justamente à possibilidade que tivera de exercer sua liberdade, enquanto sua amiga não.

Bianca Bienenfeld e a relação de poder no amor

As muitas contradições do relacionamento entre Sartre e Beauvoir e, principalmente, dos relacionamentos deles com outras pessoas, é mais uma flagrante prova da ingenuidade da ideia fundamental do existencialismo. Dentre diversos exemplos que poderiam ser citados e que são vastamente explorados no livro de Rowley, o mais poderoso é o de Bianca Bienenfeld. Como ocorreu com algumas outras jovens, Bienenfeld foi aluna de filosofia de Beauvoir no período que equivaleria ao atual Ensino Médio brasileiro. De uma admiração intelectual por sua professora, a relação de Bienenfeld avançou para uma amizade íntima e, em seguida, para uma relação amorosa, primeiro com Beauvoir e, logo, também com Sartre. Aquilo que poderia ser visto superficialmente como apenas uma expressão de relacionamentos amorosos livres, constituía na verdade uma relação desigual, em que a posição de autoridade do casal de professores foi utilizada de forma perversa sobre uma moça ainda jovem, o que lhe deixaria sequelas profundas.

Reencontrando Bienenfeld alguns anos após o término da ligação entre eles, Beauvoir assumiu isso amargamente em uma carta para Sartre: “Ela está sofrendo de um ataque intenso e terrível de neurastenia, e a culpa é nossa, acho eu. É a sequela muito indireta, mas profunda do caso entre ela e nós. Ela é a única pessoa que realmente prejudicamos, mas nós a prejudicamos... Ela vive chorando – chorou três vezes durante o jantar, e chora em casa quando tem que ler um livro ou ir à cozinha comer... Às vezes, parecia mesmo bem doida – recalcando coisas, ansiosa, mas com momentos de ternura reprimida e apelos mudos que me cortaram o coração. (...) estou cheia de remorsos (...) sei que você ficaria muito perturbado e cheio de compaixão por ela.” Bem mais tarde, no final dos anos 1940, em seu processo de análise com ninguém menos que Jacques Lacan – provavelmente o mais importante nome da história da psicanálise depois de Freud – ele chegaria com sua paciente à conclusão de que a relação entre Bienenfeld e o casal Sartre-Beauvoir era semelhante a uma relação entre pais e filha, e eles teriam quebrado o tabu do incesto ao transarem com ela, o que teria gerado consequências psíquicas nefastas em Bianca.

Machismo, mentiras, dependência econômica

Há também numerosos exemplos em que vemos a influência do machismo e do patriarcado nas relações que Sartre estabelece com suas amantes – e com frequência com a cumplicidade de Beauvoir. Ambos tinham um acordo entre eles de que sua relação era “essencial”, e as demais eram “contingenciais”, ou seja, não possuíam o mesmo nível de profundidade, comprometimento e, principalmente, sinceridade. Assim, grande parte de seus admiradores se chocou quando, após a morte de ambos, a correspondência entre eles foi publicada e veio a público o fato de que as mentiras que contavam a seus respectivos amantes eram recorrentes.
Beauvoir, já em sua maturidade, escreve: “Há muitos casais que fazem mais ou menos o mesmo pacto que Sartre e eu: conservar em todos os desvios da trilha principal uma ‘certa fidelidade’. (...) Tal compromisso tem seus riscos... Se os dois aliados permitem-se apenas ligações sexuais passageiras, não há dificuldade, mas isso também significa que a liberdade que se permitem não merece o nome que tem. Sartre e eu fomos mais ambiciosos; foi nosso desejo experimentar ‘amores contingentes’. Mas há uma pergunta que evitamos deliberadamente: como a terceira pessoa se sentiria em relação ao acerto?” Sartre, por sua vez, assumia ocasionalmente mentir. Como disse a seu secretário Jean Cau: “Há situações que chamo de podres. Por mais que a gente tente resolvê-las, é impossível sair delas externamente intacto. (...) Em alguns casos, a gente é obrigado a recorrer a um código moral temporário.”

Havia algo de “não tão livre” nesse amor que construíam a muitas mãos. Sylvie Le Bon, uma grande amiga de Beauvoir que seria sua herdeira, em calorosas brigas chamou a atenção para isso. Rowley descreve-as assim: “Sartre se queixava se queixava de uma ou outra de suas mulheres indefesas. Le Bom retrucava que ele era paternalista e machista, que sofria de um ‘complexo de Deus’, e que tornara aquelas mulheres indefesas. Elas viviam doentes ou cansadas, criticava. De quê? De não fazer nada? Para um homem que nunca quis ter uma família, você tem o pior da vida de família!” E, mais a frente, retoma a contradição da posição pública de Beauvoir, já então um ícone do movimento feminista, e a prática de seu companheiro: “Em entrevistas, Beauvoir afirmava que a independência econômica era o pré-requisito básico para a independência feminina. E lá estava Sartre apoiando três mulheres que passavam praticamente o tempo todo, parecia a Le Bon, causando-lhe dificuldades”.
Sartre foi o promotor, ao longo de sua vida, da dependência econômica de diversas mulheres. A que ponto isso retirou delas a possibilidade de serem independentes? Qual era sua responsabilidade nisso? Essas questões não escapavam a sua aguda consciência, e não lhe deixavam em paz, mesmo que admitisse ser um “antiquado”. Rowley descreve: “Beauvoir passou a vida inteira observando o quão fácil era para as mulheres acuarem Sartre. ‘Aquela consciência pesada dele’, dizia. Sartre sentia-se em dívida com para com suas mulheres por elas o amarem. Perguntava-se com frequência até que ponto a infelicidade e a incapacidade de realização delas era culpa sua.” Outros episódios pontuais escancaravam uma faceta machista de Sartre de forma ainda mais pungente, como quando deixou uma companheira sua, Michelle Vian, para fazer sozinha em Paris um aborto de uma gravidez na qual tinha parte, e foi viajar com Beauvoir. Esse foi um duro golpe para a jovem Michelle, e uma marca indelével das contradições de Sartre.

A cumplicidade de Beauvoir com o machismo de seus parceiros não se limita a Sartre. Jacques Laurent Bost, a quem dedicou sua impressionante obra sobre as mulheres “O Segundo Sexo”, e a quem disse ser “o homem menos machia que conhecia”, foi uma de suas relações mais profundas e duradouras. Mas Bost era casado com sua amiga Olga, com quem não tinha um acordo como o de Sartre e Beauvoir. Ainda assim, Beauvoir manteve seu romance com ele pelas costas da amiga, enganando-lhe em relação a isso. Sem dúvida, uma flagrante contradição de Simone.

O que aprendemos com a liberdade de Sartre e Beauvoir?

Mas então eram Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre meros hipócritas, que diziam uma coisa e faziam outra? Essa está longe de ser minha opinião sobre esse casal, que ousou lutar por uma relação, uma vida e uma atuação pública na contra corrente da sociedade em que viveram. Se nesse breve texto dou muito mais ênfase às contradições de seus relacionamentos amorosos do que para suas grandes realizações e a forma corajosa como ousaram lutar pela liberdade de seu amor, isso é porque quero chamar a atenção para o fato de que a liberdade, por mais bem intencionado que sejam os sujeitos, é algo que não pode ser conquistado individualmente, ou por um casal.

A realidade ensinou Sartre e Beauvoir ao longo de décadas, e foi belo o movimento de suas vidas, que progressivamente deixava a mera atuação individual em nome de uma militância coletiva. Com os erros que tenham cometido – e não foram poucos, como o absurdo apoio acrítico de Sartre ao stalinismo em muitos momentos sob o pretexto de “não fornecer argumentos para a direita se apoiar nele para atacar a URSS” – Sartre e Beauvoir tomaram posições públicas cada vez mais audazes. Beauvoir ajudou milhões de mulheres, e até hoje ajuda, a questionarem o papel feminino na sociedade. Estiveram ao lado de povos negros e colonizados da África na luta contra o governo de seu país. Ousaram. E, ainda assim, não conquistaram a liberdade. Pois a liberdade é algo que só pode existir para todos, ou para ninguém. Não podemos ter um amor livre enquanto o amor não for livre nessa sociedade. Não podemos ser economicamente, politicamente ou socialmente livres enquanto irmãs e irmãos nossos forem explorados e oprimidos em qualquer parte do mundo. E, nenhum discurso de liberdade sobre nós ou os outros faz sentido se não escolhermos dedicar nossas vidas a lutar pela liberdade coletiva, social, contra essa sociedade que oprime e explora bilhões. Essa, acima de qualquer outra, é a belíssima lição que as vidas de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre têm a nos legar.

 
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