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SAMARCO
Dois anos da lama da Samarco: a morte dos sonhos e o reino da impunidade no capitalismo
Iaci Maria

5 de novembro. Não é feriado, não tem cor diferente no calendário, não pode ser celebrado, não cai no ENEM. Os mortos do 5 de novembro são singelamente homenageados em seus locais, as redes sociais sussurram “não esquecemos”. Dois anos após o maior crime socioambiental da história desse país, números e cifras apenas ilustram uma história que pode ainda ser vista em tons de marrom, de Minas Gerais ao Espírito Santo, sobre a morte de pessoas, animais, vilarejos, aldeias, oportunidades de sobrevivência, um rio e dos sonhos que a lama carregou. Mais um clássico do capitalismo, uma história de impunidade.

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No dia 5 de novembro de 2015 rompeu a Barragem do Fundão, uma barragem de contenção de resíduos de minérios localizada no distrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana, interior de Minas Gerais. O resultado foi um mar de lama tóxica que destruiu os distritos de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira inteiros e tirou a vida de 19 pessoas e diversos animais. Lembro naquele dia de sair do trabalho, onde eu não podia mexer no celular, e ver as pessoas em choque comentando no ponto de ônibus sobre o desastre, as informações desencontradas, os vídeos que circulavam o whatsapp, as fotos de um carro preso em cima de um muro. E lama. Muita lama.

Não foi o primeiro rompimento de barragem em Minas Gerais, mas foi o maior. Mas antes desse, é sempre importante lembrar de Itabirito (1986), São Sebastião das Águas Claras (2001), Miraí (2007) e novamente Itabirito (2014).

E então Mariana, 2015. Foram nada menos do que 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios que vazaram. Lama tóxica, que seguiu pelo Rio Doce e outros rios. Atravessaram Minas Gerais, destruíram 247 propriedades rurais, atingiram 663 km de rios, 1469 hectares de mata. Chegaram ao Espírito Santo, onde encontraram o mar, depois de atravessar 3 distritos e 39 cidades por todo o caminho. Ali no litoral, contaminaram ainda 200 quilômetros de mar.

Dessa história ainda há muito o que se contar. E também há ainda muito o que se vingar, por cada morte de gente, rio, praia ou sonho que a sede de lucro das empresas envolvidas matou. Impactos sentidos até hoje – e muitos talvez irrecuperáveis – pela população da região da barragem, as populações às margens do Rio Doce, as populações capixabas do litoral do Espírito Santo. E empresas responsáveis que não são responsabilizadas – Samarco, Vale e BHP-Billiton. Talvez seja essa uma mostra gráfica de como o capitalismo se instaura. Chega, explora, destroi, mata, fica impune. É também a mostra gráfica de como o capitalismo não dá mais.

Vamos então por partes. Após dois anos do crime, como encontram-se os afetados pela lama e suas consequências? E os culpados, como seguem?

“Não é fácil voltar a Bento Rodrigues, pisar nas terras onde eu tinha sonhos pra viver”

“Aqui era minha casa, tinha plantação de laranja, jabuticaba. Criação de galinha. Não é fácil voltar a Bento Rodrigues, pisar nas terras onde eu tinha sonhos pra viver”, disse o aposentado Manuel Marcos Muniz à reportagem do Jornal Hoje, da Globo. Há a promessa de uma Nova Bento ser erguida a 10 km da antiga, mas até lá, a população do distrito vive em imóveis alugados pela Samarco em Mariana, e contabilizam 8.274 cartões da empresa distribuídos, carregando mensalmente um salário mínimo + 20% por dependente + valor de uma cesta básica por mês.

Ao longo dos rios, pelas cidades de Minas, a lama ainda existe nas margens ribeirinhas, e a água que ainda corre aparenta ser cristalina, mas é apenas uma ilusão que esconde os detritos decantados no fundo, segundo especialista do SOS Mata Atlântica. Qualquer movimento na água faz com que a mesma mostre novamente que a cor da lama não é apenas uma lembrança, mas um fato vivo que ainda está ali para lembrar o fatídico 5 de novembro de 2015.

Uma pesquisa da UFMG aponta ainda que o solo e a água da região de Mariana foram contaminados pela éter-amina, uma substância usada no beneficiamento do minério. Ao longo dos rios atingidos, por todo estado mineiro, árvores seguem morrendo pela contaminação do solo, águas são impróprias para qualquer tipo de uso. Toda uma vida aquática – a que resta – está fadada à morte, pois a luz do sol não entra no rio, tomado de rejeitos, o que impede a fotossíntese e, assim, a produção de oxigênio na água. Onde antes havia uma fauna com 80 espécies nativas e 26 espécies exóticas, hoje encontram-se apenas 36 espécies, sendo 14 exóticas, segundo aponta estudo do professor da UFV Jorge Dergam.

Além desses efeitos imediatos do rompimento da barragem, dois anos após o crime os conflitos por água em Minas Gerais aumentaram 240%, e isso ocorre não apenas nas cidades que ficam diretamente às margens do Rio Doce e seus afluentes, mas em todas regiões do estado que eram abastecidas por essa água. O crime capitalista pelas mãos da Samarco, Vale e BHP, não contente com todo estrago, agora coloca também atingidos brigando entre si pelo direito de receber água limpa.

“Depois do rompimento, a gente tem que aprender a viver de novo”

"Fiquei um tempo sem aguentar trabalhar, porque tive depressão. Hoje eu tomo dois antidepressivos, o que aumentou minha glicose. Fiz exame e chegou a dar diabetes, estou esperando para ver se vou ficar mesmo. Mas, antes de tomar esses remédios, eu só chorava", conta Leonídia, ex-moradora da falecida Paracatu, hoje vivendo em Mariana em casa alugada pela Samarco. "Depois do rompimento, a gente tem que aprender a viver de novo. E o pior é que, além de passar por tudo, você tem que lutar para conseguir as coisas". O prazo que a Renova – fundação criada para cuidar das indenizações e reparação – coloca para o reassentamento e pagamento das indenizações aos atingidos é de 2019, ou seja, mais 2 anos vivendo nessa situação provisória de vida.

Os impactos do tsunami de lama tóxica nas pessoas teve consequências profundas, além das perdas materiais. Décadas de vidas construídas que se perdem, somem embaixo da lama, não possuem apenas valor financeiro. Foram sonhos, projetos, planos, vontades que literalmente viraram lama. Lama tóxica. Que intoxicou até mesmo a mente daquelas pessoas, que após dois anos foram tomadas pela tristeza e a depressão virou rotina entre os ex-moradores dos três distritos que desapareceram sob a lama. “Passarinho na gaiola” é como referem-se a si mesmos, na nova vida que lhes foi imposta em Mariana, além da estigma de “povo da lama” pela qual são conhecidos agora na área urbana, que os culpam pelo aumento do desemprego na região, após a Samarco ter paralisado as atividades.

Aproximadamente 10% dos atingidos pela tragédia sofrem de depressão, além do enorme aumento de abuso de álcool e medicamentos. Mas o dado mais triste e doloroso é o de que nesses dois anos, as tentativas de suicídio em Mariana aumentaram 67%, e os próprios serviços de saúde do estado assumem que essa situação extrema tem ligação com a tragédia. Mais uma vez, são números que carregam em si a dor e desespero daqueles que perderam tudo, inclusive os sonhos. Dois anos depois e o capitalismo seguem tentando matar aquelas pessoas.

“O que era sagrado não é mais. Não sonhamos mais; o rio dava o sonho pra gente”

“Pode parecer aos olhos do homem branco, mas para a gente isso ajuda, mas não resolve. O que era sagrado não é mais. Não sonhamos mais; o rio dava o sonho pra gente. Nossa terra foi devolvida estragada, precisa ser recuperada.”, é o o que diz Tito Krenak, professora da aldeia Krenak, que fica às margens do Rio Doce – no caso o “Uatu”, como chamam o rio – e que conta com 339 indígenas e 126 famílias. “Não tem quem crê em santo ou em pedaço de pau? Então, os índios acreditavam no Uatu, conversavam com ele. Agora o rio corre calado.”, são as palavras de Laurita Krenak, a mais velha moradora da aldeia, com seus 86 anos e mais nenhuma fé.

Não bastasse todo o sofrimento que o capitalismo impôs ao povo Krenak com a guerra declarada entre o “homem branco” e os índios desde 1808, agora a tristeza no olhar de cada Krenak é de que o homem branco venceu, pois conseguiu destruir o lhes dava esperança. O sagrado do rio foi quebrado e os rituais que aconteciam junto ao correr do rio deixaram de existir. Os mais velhos perderam os sonhos, as crianças nem mesmo aprenderam a sonhar. E segundo Laurita, se elas não acreditam, então não existe mais.

A ajuda à qual o cacique se refere é a bolsa mensal que a Vale paga para cada família indígena, já que perderam seus meios de sobrevivência, que resumia-se a caça, pesca e agricultura. Além disso, a Fundação Renova fornece 3 mil litros de água diariamente e abastece 140 caixas d’água de 2 mil litros com água potável a cada 2 dias. Mas isso não basta. Eles perderam a fé.

“Desanimou tudo para a gente que tinha aqui só a pesca e a praia. Agora, nem a praia mais a gente tem.”

“É só dar um vento que joga para fora (da água) o resíduo que sobrou. Está tudo contaminado. Desanimou tudo para a gente que tinha aqui só a pesca e a praia. Agora, nem a praia mais a gente tem. Se quiser tem de sair daqui para pescar ou curtir uma prainha. Está tudo contaminado, o peixe pode fazer mal para a saúde. Aqui, agora, acabou”, é o que diz Joel Marques Ferreira, 64 anos, pescador de Regência Augusta, distrito de Linhares, no litoral do Espírito Santo.

A lama com seus rejeitos chegou ao mar capixaba no dia 21 de novembro de 2015, 17 dias após o rompimento da barragem. Um encontro anunciado, mas impossível de ser impedido, levando a 17 dias de angústia e quase uma desesperada contagem regressiva para aquele dia em que o mar se tornaria marrom e tóxico. Dois anos depois, a lama ainda está depositada no fundo do rio e mar, e basta um vento distinto ou uma mudança na maré para que os pescadores sejam lembrados que não possuem mais suas vidas como construíram e desejaram que fosse. A areia também sofreu impactos, e até hoje machas pretas de minério de ferro tomam a praia ao longo de ao menos 2 quilômetros.

Se em Minas e na região onde se rompeu a barragem os moradores sofrem a falta de respostas e solução para a situação em que se encontram, no Espírito Santo os capixabas parecem ainda mais esquecidos. Há pescadores que ainda não foram cadastrados e por isso não recebem nada. Não foi feita análise dos peixes, e portanto eles nem mesmo sabem se podem pescar e consumir os peixes ou não; os equipamentos de pesca estão apodrecendo por falta de uso e o pescador ainda não recebeu a indenização. Além disso, o turismo também foi profundamente afetado, assim como plantações inteiras perdidas e agricultores que ficam sem sua produção devido à lama que entupiu os sistemas de irrigação.

E então o único sonho realizado (dos empresários e capitalistas): toda uma tragédia criminosa impune

A Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais aplicou trinta e seis multas à Samarco, o que poderia parecer que a empresa pagaria pelo seu crime e criaria meios para recuperar materialmente a vida de cada atingido – os sonhos, infelizmente, muitos já morreram. Mas a mineradora apenas começou a pagar uma multa, no valor R$127 mil, dividido em 60 meses. O Ibama também estipulou multas que somam mais de R$340 milhões, por danos ambientais, mas a empresa recorreu e até agora nenhum centavo foi pago.

Não bastasse o absurdo de a empresa recorrer às multas, como se não tivesse responsabilidade com o ocorrido, penas a Samarco em 2016 obteve um lucro de R$7,6 bilhões, o que faz com que essas multas sejam irrisórias. Isso sem falar da Vale e da BHP, em que a primeira apenas esse ano já lucrou mais de R$60 bilhões, e a segunda planeja junto com a Vale bater a marca R$8,5 bilhões em investimentos até o próximo junho.

Mas mais que isso, não apenas as empresas envolvidas não pagam pelo crime que cometeram. A justiça também tem seu lado e, sempre que há uma oportunidade, da suas mostras de qual lado é esse: o dos empresários, dos capitalistas, de costas para a população e os trabalhadores. Em agosto desse ano, a justiça federal suspendeu a ação criminal que acusa a Samarco, abrindo caminho para a absolvição da empresa. Além disso, havia também uma multa de R$1,2 bilhões a ser pago pelas 3 empresas, mas que no início do ano foi firmado um acordo entre empresas e Ministério Público, em que foi suspensa a obrigatoriedade desse depósito.

Não há dúvidas, é um crime capitalista. Uma tragédia anunciada, um crime que só aconteceu devido à sede de lucro dos empresários, capitalistas que antes mesmo do rompimento da barragem já exploravam o trabalho, com salários miseráveis aos mineradores, e já destruíam o meio ambiente. Tudo para sugar cada vez mais cada elemento que a natureza produz e pode ser vendido e gerar lucro para alguns poucos. Rompimentos como o da Barragem do Fundão já eram comuns, como já dito no início dessa matéria, mas isso pouco importou para aqueles que vão até o limite em nome de seus interesses. Mas acontece que muitas vezes, o limite se rompe. A grande preocupação atual das empresas é se ainda será possível explorar a região atrás de minérios, e não se as pessoas estão se suicidando, se os pescadores capixabas conseguem manter suas famílias, e menos ainda se os índios perderam a fé.

Esse crime ambiental, o maior da história do país, é uma amostra aqui nesse nosso Brasil de como o capitalismo não pode sobreviver sem ser às custas das mortes – de pessoas, animais, cidades, rios, praias e sonhos. E a humanidade, trabalhadoras e trabalhadores, não podem aceitar viver sob um sistema que destroi sonhos, e sim deve lutar pela construção de um outro mundo, um mundo de plenitude, de sonhos vivos e vividos. Porque cada coração humano deveria carregar consigo uma certeza: se algo é em sua essência um destruidor de sonhos, então não merece existir. E a única coisa que o capitalismo merece é perecer.

 
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