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TEATRO
“Patética” da Cia. Estável resgata a morte de Herzog como alerta e lição para pensar o hoje
Fernando Pardal
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Foto: Jonatas Marques

A verdade precisa ser dita. E o passado não pode ser esquecido, sob pena de repetirmos seus erros e crimes. Já por isso, o resgate feito pela Cia. Estável de “Patética” deve ser saudado com entusiasmo. O texto original da peça, escrito em 1976 por João Ribeiro Chaves Neto, era desde o início uma luta para que a verdade viesse à tona, e que a morte do jornalista Vladimir Herzog, cunhado do autor, não fosse silenciada ou falseada pelos fuzis e censores da ditadura civil-militar brasileira.

Consagrando a voz do dramaturgo que contava a verdade sobre a absurda farsa do “suicídio” de Herzog nos porões do DOPS, brutalmente causado pelas torturas impiedosas dos militares, em 1977 o Serviço Nacional de Teatro conferia o prêmio de seu concurso de dramatugia à peça de Chaves Neto. Mas a ditadura havia confiscado a peça e impedido a premiação, que, contudo, pôde enfim ocorrer no ano seguinte, quando começavam os grandes levantes operários que forçavam os militares a procurar uma saída pactuada do regime com setores das classes dominantes, para impedir assim que os trabalhadores procurassem uma saída independente (a vanguarda dos trabalhadores, representada pelos metalúrgicos do ABC, era por sua vez “contida” em seus ânimos de derrubar a ditadura por meio das greves pela nova camada de conciliadores dos “sindicalistas autênticos” chefiada por Lula, que não poupava esforços em separar a luta sindical da luta política pelo fim da ditadura).

O resgate desse agudo relato da morte e tortura de Vladimir Herzog, transformado no texto de “Patética” em Glauco Horowitz, é feito pela Cia. Estável em um momento também de grandes convulsões no cenário político nacional, o que faz parte de forma explícita desse movimento da companhia para colocar lado a lado nossa história e nosso presente. As denúncias e críticas se sobrepõe em diversos temas e camadas.

No Circo Albuquerque, a trupe a quem cabe encenar a história de Horowitz, estão representados também os artistas do Brasil de hoje, que se no primeiro momento da montagem da Estável sofriam com duros ataques ao orçamento da cultura e às políticas de fomento – tanto no plano do governo golpista de Temer como da gestão “empresarial” de Doria em São Paulo – agora também estão sendo duramente atacados pelas tropas da “moral e bons costumes” da direita, que está numa cruzada para censurar os artistas.

A Estável, ao lado de Herzog, como o Circo Albuquerque, ao lado de Horowitz, enfrentam bravamente os que querem calar a arte independente, a liberdade de expressão, as denúncias das barbáries do período militar que hoje vem sofrendo uma renovada tentativa de “repaginamento” para ser apresentada absurdamente como um “período sem corrupção” e outras ficções que a reabilitem aos olhos das massas. E eis aí mais um motivo pelo qual, desde que a Estável colocou de pé sua montagem de “Patética”, ela ter se tornado ainda mais atual, pois foi nesse período que as vozes de generais da caserna, há tanto tempo sem se pronunciar publicamente, voltaram a defender o regime sangrento da ditadura e, o que é pior, o seu retorno.

Por isso a “Patética” da Estável não é uma peça para apenas rememorar o passado e honrar Herzog – o que já teria por si grande valor –, ela é uma peça para nos preparar para batalhas do presente e futuro. Se o texto original colocava os horrores do nazismo, do qual a família de Herzog havia fugido para o Brasil, lado a lado com os horrores da ditadura, a Estável coloca em cena os refugiados de hoje: sírios, haitianos, africanos e tantos outros, que morrem às centenas e milhares, que enfrentam as fronteiras fechadas e as políticas de cerceamento que os matam, humilham, os impedem de ter a sua vida e dignidade respeitada. A voz da Estável se levanta para dizer que nenhum ser humano é ilegal.

A comparação da ditadura que matou Herzog aos tempos duros em que vivemos hoje cumpre um papel fundamental para alertar e fazer da peça da Estável uma barricada na luta política e ideológica que travamos hoje com setores que vão do patriotismo anticomunista e militarista de Bolsonaro – fã da ditadura e do torturador Brilhante Ustra – à “nova direita” juvenil do MBL de Kim Kataguiri. É em meio ao turbilhão político criado na esteira do golpe, na desestabilidade surgida também entre o enfrentamento dos “de cima”, com os políticos privilegiados se enfrentando com os juízes também privilegiados e autoritários da Lava-Jato, com Sergio Moro à frente e a serviço dos interesses da burguesia imperialista, que se procura criar o “ovo da serpente” e ganhar adesão de setores de massa para saídas radicais ou pseudo-radicais à direita. É esse espaço de uma “nova direita” que seja supostamente “contra a corrupção” e a “velha política” que disputam Dorias, MBLs, Bolsonaros e generais. E sua denúncia é fundamental, bem como mostrar uma e outra vez o que foi e o que representou a ditadura civil-militar brasileira.

Contudo, é necessário, mesmo quando se tratam de comparações com a liberdade poética e metafórica do palco, termos cautela com os sinais de igualdade, que quando borram as diferenças podem acabar servindo para desarmar nossa luta e espalhar um sentimento de desesperança. E em alguns momentos esse pode ser o principal problema que nos apresenta a “Patética” da Cia. Estável. Colocando, por exemplo, um sinal de identidade entre o autoritarismo de Segio Moro e o teatro do julgamento farsesco do “suicídio” de Herzog, a mensagem é que vivemos em tempos de ditadura, e que o poder da “República de Curitiba” seria inabalável. Mas, se a censura e o autoritarismo fossem iguais aos daquele tempo, no entanto, com trabalhadores, estudantes, artistas e tantos outros desarmados frente a um regime militar implacável, então sequer poderíamos nos reunir publicamente para ver a Cia. Estável contar a história dessa ditadura; e muito menos para denunciar Temer, Moro e a direita de hoje – que, aliás, também possuem entre si muito mais conflitos do que a burguesia unificada em torno dos militares.

Para que a memória do passado, a cena e a poesia do teatro sejam armas eficazes na conscientização e nas lutas de hoje, precisamos dar-lher a precisão de uma lâmina afiada que possa cortar na carne do inimigo. Procurar os seus pontos débeis e nossas fortalezas também. Sem isso, corremos o risco de sermos tomados pelo desespero de que não há nada a fazer exceto cantar nossa derrota; o que felizmente está muito longe de ser a verdade. Como o Circo Albuquerque, que mesmo fechado muda seu nome e continua buscando as formas de existir e lutar, precisamos divisar no horizonte os caminhos para nossa luta.

Olhar os crimes do passado também deve nos trazer o exercício de olhar os erros dos que lutaram contra esses crimes. Com a Cia. Estável e os artistas que se levantam contra a censura, contra o governo golpista e os ataques aos trabalhadores, lutemos contra os inimigos de hoje sabendo tomar o passado como nosso patrimônio e arma de luta.

"Patética" está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363), de 05 a 16 de Outubro, quintas feiras, sextas-feiras e segundas-feiras às 20h, sábados às 19h, entrada gratuita.

 
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