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HISTÓRIA DA VENEZUELA
Caracazo, a revolta popular que abriu uma nova etapa na luta de classes na Venezuela
Ángel Arias

A história de uma das maiores revoltas populares em nosso continente. Uma revolta que deixou milhares de mortos e feriu mortalmente o regime de Punto Fijo estabelecido em 1958.

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[Publicado originalmente em 27 de fevereiro de 2017, traduzido e com comentários em colchetes para entendimento no Brasil por Leandro Lanfredi]

A rebelião social contra o pacote neoliberal

O histórico e contundente protesto contra o governo de Carlos Andrés Pérez (apelidado de “CAP”, pelas iniciais) e seu pacote do FMI expressou a raiva e um basta que o povo dizia contra a pobreza, a fome e as precárias condições de vida a que era submetido. Enquanto isso a corrupção dos governantes era pública e notória. Um país marcado por enormes desigualdades sociais.

O Caracazo foi uma explosão do profundo mal-estar dos de baixo com a vida que levavam em um capitalismo dependente e em crise, que para se sustentar, derrubava o nível de vida do povo e conduzia milhões à miséria.

O país sofria o enorme peso da dívida externa da crise econômica interna, e para honrar os pagamentos da dívida Carlos Andrés iniciava seu segundo governo com a assinatura desse perverso mecanismo de dominação imperialista que se estendeu como uma praga em toda a América Latina: uma “Carta de Intenções” com o FMI. Na carta se comprometia com ajustes em troca de um empréstimo – ou seja mais dívida!

No dia 16 de fevereiro, poucos dias antes de sua posse, ele anunciava o pacote de medidas assinadas com o FMI: desvalorização do bolívar (moeda venezuelana) através de liberação da taxa de câmbio, redução do déficit fiscal, o que significava aumento das tarifas dos serviços públicos como água, luz, telefone e transporte, dobrar o preço da gasolina, liberação dos preços (excetuando 18 itens da cesta báscia), congelamento de contratações na administração pública, liberação das taxas de juro, junto a alguns programas sociais que em nada “mitigavam” o pacote neoliberal.

A especulação com os preços e a estocagem de produtos de consumo popular provocavam os ânimos, a desmedida alta do bilhete do transporte publico detonou uma explosão de raiva do povo trabalhador e pobre na manhã do dia 27. Saques, barricadas, queimas de veículos, comércios e guaritas policiais, enfrentamentos com a polícia e com o Exército em Guarenas, Guatire, Caracas e mais uma de uma dezena das principais cidades do país (La Guaira, Catia La Mar, Valencia, Merida, San Cristóbal, Maracaibo, Barquisimeto, Puerto Ordaz, San Félix, Cumaná, San Juan de los Morros). Em Caracas o enfrentamento superou a repressão policial e controlou partes da cidade até a manhã do dia 28.

Os trabalhadores que saiam diariamente de Guarenas nas madrugadas para trabalhar durante o dia em Caracas se viram de repente com um aumento da passagem em 30% mais do que o valor estipulado no aumento feito pelo governo. Começou o protesto, que, pelos mesmos motivos rapidamente se estendeu a La Guaira [na região costeira, próxima a Caracas que fica no planalto], contagiando rapidamente Caracas e o resto do país. O governo, é claro, desqualificou e condenou as ações: “Os assaltos e os saques, as queimas de automóveis e ônibus, o enfrentamento e a violência não são parte das múltiplas expressões de uma sociedade democrática, e o governo não os tolerará”. Esse foi o comunicado emitido.

Entretanto, nas ruas a opinião era outra. Desde a derrubada da ditadura de Pérez Jiménez (janeiro de 1958) não se via tal sentimento coletivo de irreverência e segurança que era justo ocupar as ruas e em massa desafiar a repressão estatal. Dezenas de milhares sentiram nas ruas a possibilidade de soltar toda a raiva acumulada com a situação de injustiça e sofrimento social, era o sentimento que legitimava qualquer ação “violenta” e “destrutiva”.

Na Avenida Intercomunal de Antímano a turba invadiu os depósitos e a fábrica de macarrão Ronco, enquanto os proprietários observavam impotentes um roubo que não parecia um.” (jornal El Nacional 01/03/1989). “Não estou arrependida. Foi um saque honroso. Na minha casa agora temos comida, quatro bermudas, uma camiseta, um sapato e um sinto para mim. Voltaria a saquear? Não sei.” (jornal El Diario de Caracas, 07/03/1989) [1].

A imprensa burguesa julgava a falta de existência de organizações como o que teria incitado o descontentamento:

“Onde estão os sindicatos que organizadamente defendem os salários dos trabalhadores? Onde estão as organizações capazes de orientar os consumidores na luta contra o custo de vida? Onde estão os partidos políticos em condições traçar as linhas de ação coerentes e racionais para a cidadania em um momento de crise política? Nada disso existe. Logo, o caos não pode nos surpreender” . (Jornal El Diario de Caracas, 02/03/1989).

Essa queixa dava conta do grande vazio de mediações políticas e institucionais capazes de conter o mal-estar dos de baixo.

Como mais tarde reconheceria Rafael Caldera [presidente de 1994 a 1999], em fevereiro de 1989 o povo enraivecido quebrou a vitrine da democracia latino-americana” que se supunha que era a Venezuela. O povo rompeu estrondosamente essa fachada da “democracia para os ricos” (como Lênin definia a democracia burguesa) que imperava no país.

Uma rebelião defensiva com grande poder desestabilizador

O Caracazo não foi propriamente uma insurreição, ao não ter objetivos de poder e direção. Entanto foi uma contundente rebelião popular, defensiva, frente ao ataque em regra às condições de vida da classe trabalhadora e do povo pobre. Foi uma das mais contundentes expressões do protesto operário e popular contra as políticas neoliberais que ocorreu na América Latina desde o final dos anos 80 que

Poderíamos dizer, de todo modo, tomando a expressão de Leon Trotsky que foi uma “insurreição de forças elementares”: “um movimento de massas, qe ligado por sua hostilidade ao antigo regime não tem perspectivas claras nem métodos de luta elaborados, nem direção que conduza conscientemente à vitória.”[2]

Nesse sentido, a definição como rebelião ou revolta permite compreender os limites dessa grande explosão de mal-estar social. “O dia que os morros desceram”, o “Caracazo” ou “a grande sacudida”, com esses nomes que entrou na história das numerosas revoltas protagonizadas pelos explorados, exploradas e pobres contra situações não mais aguentáveis. Ações espontâneas, inclusive com alto nível de violência, mas defensivas por não ter como objetivo substituir a ordem existente mas mostrar in extremisa não aceitação do mesmo.

Em nosso caso a revolta significou a abertura de um período de ascenso da luta de classes e instabilidade política: forte mobilização social, enfrentamento com os poderes do Estado, divisão nas Forças Armadas, alta abstenção eleitoral, fim do bi-partidismo e o desprestígio das instituições.

A esquerda reformista: do outro lado da barricada

Os partidos da esquerda reformista e parlamentar estavam totalmente desligados das ruas. Nem o Movimiento Al Socialismo (MAS) nem La Causa Radical (LCR) eram parte do movimento, nem tiveram política para tentar empalmar com o mesmo. Ao contrário, se colocaram claramente do lado da “ordem” e da “democracia” para os ricos. A Causa Radical com importante inserção e influência no movimento operário, e com a tribuna parlamentar declarou na voz de seu deputado e secretário geral Pablo Medina: “deploramos todos os acontecimentos e ratifico o repúdio a quem protagonizou atos de vandalismo e violência contra os pequenos comerciantes e consumidores. O MAS publicou uma nota na imprensa nacional advogando um “programa de ajustes mais gradualista, equilibrado e equitativo (sic)”, ao mesmo tempo afirmava que “é necessário re-estabelecer a ordem política sem suspensão das garantias [civis]. É fato que ocorreu um transbordamento e isso criou um clima de aflição, insegurança e medo” [3].

Esta era a posição dos partidos mais importantes da esquerda, enquanto milhares morriam nas mãos da repressão, estava decretado o Estado de Sítio, e continuava a repressão sistemática e seletiva nos bairros e morros de Caracas! Não somente demonstraram uma completa impotência para enfrentar o pacote de medidas que tinha levado as massas à rebelião como, no caso do MAS, tinham acordo com a política de fazer “ajustes” contra o povo – ainda que de maneira “gradual” – e de conjunto, apesar de críticas mornas, apoiaram a repressão pelo Estado dos capitalistas. Chegando ao extremo que o principal dirigente do MAS, Teodoro Petkoff [ex-guerrilheiro, ex-membro do PC Venezuelano, foi ministro de Caldera, o presidente que antecedeu Chávez] declarou que “quando o presidente nos ligou para anunciar a suspensão das garantias [civis] eu disse a ele que isso ia ser a ordem para um banho de sangue” [4]. Quer dizer, sabiam o que ia acontecer mas seguiram localizados do lado daqueles que defendiam o “re-estabelecimento da ordem”!

Estes partidos mostraram nitidamente seu caráter completamente adaptado e integrado ao regime burguês, sem nenhuma perspectiva para dar, de maneira revolucionária, um fim na ordem capitalista, limitando sua política opositora a ganhar parcelas de poder no mesmo sistema de domínio para conseguir alguma reforma parcial, ou até mesmo para passar eles mesmos a aplicar os planos capitalista, como foi o caso do MAS que depois apoiou Rafael Caldera e ofereceu dirigentes para participar de seu governo neoliberal.

A ascensão das lutas operárias, populares e estudantis depois da revolta

Depois do Caracazo vimos um forte aumento das lutas operárias e populares no país, tornando cotidianas as mobilizações de rua de diversos setores de trabalhadores (professores, operários, empregados públicos, médicos, professores universitários, aposentados, etc.), estudantes do ensino médio e universitários e setores populares, onde não faltaram enfrentamentos com as forças repressivas do Estado: somente no ano de 1991 foram contabilizados 25 assassinatos de estudantes nas mãos da repressão.

A burocracia sindical da Central dos Trabalhadores da Venezuela [CTV] dizia: “ainda não chegamos a um acordo sobre o tipo resposta, mas temos acordo que ela deve ser dada. Do contrário seremos ultrapassados pelos próprios trabalhadores.” Assim, apenas no dia 18 de maio daquele ano de 1989, um mês e meio depois de restauradas as “garantias constitucionais” que se declara a paralisação nacional. A mais importante central sindical do país, sempre aliada do estado e das políticas da burguesia, garantidora por década da “paz trabalhista e social” se viu obrigada a chamar essa paralisação de 24 horas. A primeira paralisação desse tipo em 31 anos do regime de “punto fijo”.

O El Universal, jornal fundamental da burguesia, entendia a burocracia sindical: “O movimento sindical está atuando com grandes sinais de maturidade e buscando nessa ação recuperar a lideranças das grandes maiorias trabalhadoras do país. Sua responsabilidade é muito grande, pois se não conduzirem adequadamente a situação perderão definitivamente sua liderança e o campo ficará livre para a mais perniciosa demagogia e dissolvente anarquia.”

A paralisação não serviu como válvula para descomprimir a raiva social acumulada. No movimento operário se desenvolviam processos anti-burocráticos que minavam o controle da burocracia da CTV ou diretamente a substituíam. Alguns processos vinham de antes de 1989, como no setor siderúrgico, quando em 1987 tinham sido substituídos os burocratas da CTV que mantinham uma intervenção no sindicato. Essas tendências, ainda que incipientes, davam conta de como se expressava também a crise do regime no seio dos assalariados que buscavam caminhos para se livrar da burocracia e avançar na construção de organismos eficazes para a luta por suas reivindicações, ou seja, se enfrentar com os planos da burguesia e o imperialismo através da democracia operária.

A crise terminal do “Pacto de Punto Fijo”: golpes, julgamento e queda de CAP e fim do bi-partidarismo

O Caracazo marcou o início da desintegração do regime de Punto Fijo [nome dado ao pacto assinado pela AD e COPEI, dois principais partidos na queda da ditadura em 58, onde asseguravam alternância no poder. O nome do pacto se refere a cidade de residência de Caldera, presidente em 1958 e depois novamente em 1994-1999].

À constrangedora situação em que se encontrava a burocracia da CTV, pilar sindical do regime veio se somar a crise nas Forças Armadas. Fraços dessa instituição repressiva, pilar da ordem capitalista, romperam o “consenso’ que vinham aproveitando durante décadas na “democracia” do Pacto de Punto Fijo e se lançado ao golpe de Estado com o objetivo de produzir uma mudança de governo (ou de regime). Ocorreram dois golpes de Estado falidos, um em 4 de fevereiro (4F) e outro em 27 de novembro (27N) de 1992. Dois golpes de Estado em menos de um ano!

O 4F [protagonizado por Hugo Chávez] e o 27N não seguiram uma mesma direção – nem política nem organizativa – mas movimentos muito diferentes, com sinais ideológicos diversos inclusive no interior de cada um, mostrando que a rebelião de 1989 e a grande crise social e política que a seguiu impactavam a tal ponto que as diferentes correntes ideológicas se moviam e conspiravam no interior das Forças Armadas.

No ano seguinte, pela primeira vez na história democrática do país um presidente em exercício ia a julgamento e era preso. Nas ruas o “Fora CAP” era uma constante, bem como um setor da classe dominante e seus partidos decidiram sacrificá-lo, tirando-o de cena em maio de 1993. Ele foi removido do cargo pela via institucional e por acusações de “corrupção” antes que fosse derrubado por mobilizações ou por um novo golpe militar.

Rumando às eleições do final de 1993, a crise do bipartidarismo se expressou nas fortes disputas internas entre as correntes e divisões, que aumentaram fortemente quando Caldera, experimentado político burguês, pai do pacto de Punto Fijo deixou a COPEI e fundou o partido Convergência. Caldera vence as eleições com uma coalizão heterogênea – apelidada de “Chiripero” [“baratinha doméstica”] – que ia da centro-direita à esquerda reformista e stalinista do MAS e PCV respectivamente.
Pela primeira vez em mais de três décadas de “democracia” no país a AD e a COPEI não ganhavam a presidência e não obtinham cada uma delas nem um quarto do total dos votos nacionais. A isso se somava as denúncias de fraude – não sem fundamento – por parte da candidatura de Andrés Velásquez da La Causa Radical (LCR), que contava com importante inserção e influência no movimento operário e popular, ficando a dúvida se as eleições não foram vencidas de fato por Velásquez. De todo modo, o bipartidarismo, mecanismo chave de décadas de regime do Punto Fijo estava morto.

Abertura de uma nova etapa

Era um fato que a burguesia não podia seguir governando com as mesmas pessoas e partidos políticos que vinha governando desde 1958. O chavismo, o novo regime que sucedeu ao Punto Fijo não pode ser explicado sem as jornadas de 1989 – e sem o enorme vazio de referência à esquerda que havia no país.

Estes dois dias em que a raiva popular foi dona das ruas, cuja ousadia exigiu pagar 300 mortos segundo os dados oficiais e 3000 segundo as organizações de direitos humanos. Dias em que os tanques e fuzis do exército ocuparam as ruas e entradas dos bairros pobres e inclusive as casas, demonstrando claramente a falsidade da convivência pacífica entre exploradores e explorados, a falsidade da ideia de conciliação de classes, uma ideia que, no entanto, Hugo Chavez veio defender em nome da “revolução bolivariana”.

Notas

* Este artigo é uma versão resumida do primeiro capítulo das “Teses Programáticas” que foram base para a fundação da Liga dos Trabalhadores pelo Socialismo (LTS) em maio de 2007.

[1] Essas resenhas jornalística da época estão publicadas no livro La insurrección de febrero. Un análisis para la lucha revolucionaria, Elio Colmenarez, Ediciones La Chispa, 1989.

[2] Trotsky, León, Historia da revolução russa, capítulo XX, “A arte da insurreição”.

[3] Ibid, "A insurreição de fevereiro".

[4] Ver nota [1].

 
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