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MÚSICA
Elis Regina: 70 anos da “pimentinha”
Fernando Pardal
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"A música é meu arco, minha flecha, meu motor, meu combustível e minha solidão. Amigo, cantar é um ato que se comete absolutamente só e eu adoro"

  •  Elis Regina.

    Elis Regina foi a dona de uma voz sem a qual não se escreve a história da música brasileira. Não apenas tinha um domínio técnico brilhante de seu canto, como era capaz de dar a cada música que interpretava a sua marca própria; sem ter se dedicado à composição, mesmo assim deixou marcada na música brasileira dezenas de músicas que são vastamente reconhecidas como “da Elis”, pois uma vez tendo as interpretado, parecia que haviam sido feitas sob medida para e pela sua voz. Nesta semana, Elis Regina completaria 70 anos. Ela nos deixou, tragicamente, em 1982, com apenas 36 anos de idade. A abrangência de sua carreira, a marca profunda que deixou na música, são ainda mais impressionantes se pensarmos em quão breve foi sua vida.

    Elis não foi uma dessas cantoras que repetem à exaustão um grande sucesso, nem que se aferram a uma mesma fórmula ou marca. Ela transitava com maestria por cada estilo musical como se tivesse nascido nele. Em seu disco de estreia, Viva a Brotolandia (1961), lançado quando tinha apenas 15 anos de idade, Elis mostra apenas um pálido esboço do potencial a desabrochar. Com baladinhas românticas melosas “à moda de Celly Campelo”, a voz de Elis nessas gravações é bela, mas sua interpretação ainda não possui a forte personalidade da cantora. Na verdade, essa falta de brilho próprio marca os quatro primeiros discos da carreira de Elis, gravados antes de seus 20 anos de idade. Nota-se que Elis era então uma cantora a serviço das modas de mercado da época, feita para vender discos e sem ter autonomia sobre sua carreira.

    É em 1965 que a cantora efetivamente avança rumo à sua maturidade musical, consolidada no álbum Samba – eu canto assim, no qual é nítida a diferença no modo de cantar de Elis; somado a isso, o disco passa a vincular a voz de Elis aos grandes compositores da música brasileira, alguns dos quais firmariam uma frutífera parceria com Elis por toda sua vida, como Edu Lobo, Baden Powell, Ruy Guerra, Francis Hime, Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi. Para essa transformação, cumpriu um papel decisivo a sua mudança para São Paulo no ano anterior, uma cidade que atraía nomes de peso da música pelas possibilidades que o mercado musical concentrado ali abria. No mesmo ano do lançamento desse marcante disco, Elis é vencedora do I Festival de Música Popular Brasileira na TV Excelsior, com a música Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Por fim, para consagrar decisivamente 1965 como o ano em que o Brasil conheceu Elis, foi então que passou a apresentar o programa O Fino da Bossa, ao lado de Jair Rodrigues. Seus parceiros musicais, como Zimbro Trio e Gilberto Gil, se multiplicam.

    Daí em diante, Elis deixaria sua marca no samba, na bossa, na MPB e no rock. Em um país com uma quantidade impressionante de cantoras de excelente qualidade como é o Brasil, Elis foi uma das que marcou a história e fez escola porque soube unir de maneira singular sua vigorosa capacidade técnica com uma paixão e uma interpretação marcante em cada música que gravou. Para ficarmos em apenas um exemplo, uma música em que tal singularidade aparece com grande desembaraço é Vou Deitar e Rolar (Qua Qua Ra Qua Qua). Elis canta rindo, fazendo parecer algo extremamente simples e mostrando que era uma intérprete no sentido forte do termo.

    Mas não foi apenas na música que Elis Regina mostrou a forte e questionadora personalidade que lhe rendeu o apelido de “pimentinha” dado por Vinicius de Moraes. Ela deixou sua marca política. Em 1967 deu sua cara ao nacionalismo tacanho de certa parte da esquerda musical, liderando o ridículo episódio da “Passeata contra a guitarra elétrica” ao lado de figuras como Jair Rodrigues, Zé Keti, Edu Lobo, Geraldo Vandré, MPB 4 e até mesmo Gilberto Gil (que afirmou em entrevista de 2012 ao jornal Estado de São Paulo ter participado por causa de Elis e não ter nada contra a guitarra). A manifestação, que nas palavras de Nara Leão “mais parecia uma manifestação integralista”, tinha como objetivo protestar contra o “imperialismo musical” representado pelas guitarras elétricas, e defender a música “autenticamente” nacional. Era um movimento, a princípio, defensivo contra o grande estouro da Jovem Guarda, e evidentemente a posição de Elis “contra a guitarra” logo foi revista. Um pouco mais do debate sobre as concepções em jogo nesse episódio pode ser lido nesse ótimo texto de Afonso Machado.

    Contudo, episódios mais felizes marcaram a trajetória de Elis na política brasileira: a cantora também quis peitar a ditadura militar vigente no Brasil. Em diversas músicas as críticas apareciam como alusões, alegorias, como ficou consagrado na obra de vários artistas da época, com destaque para as músicas de Chico Buarque. Um exemplo marcante disso na obra de Elis é o espetáculo Falso Brilhante (1975), que foi também seu maior sucesso.

    Em 1968, diz em entrevista à revista holandesa Tros-Nederland que “o Brasil é governado por gorilas”. Os gorilas em questão não ficam sabendo dessa declaração até 1971, quando a entrevista chega em suas mãos. Como autênticos gorilas, os militares não deixaram barato, e convocam Elis Regina para depor. O documento do CIE (Centro de Informações do Exército) sobre ela contém afirmações como “nos anos de 1966-1967 atuou ao lado de alguns cantores de esquerda considerados subversivos após as agitações de 1968, destacando-se, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e Edu Lobo. (...) Na época, anos de 1966/67, esse grupo foi considerado de orientação filo-comunista;” e também que Elis “é muito afeita a gravar músicas de protesto, inclusive ligadas ao movimento do Poder Negro norte-americano (...)”. Anexa aos documentos há uma carta escrita de próprio punho por Elis, na qual nega a declaração feita na entrevista e também qualquer envolvimento em grupos políticos de oposição ao regime.

    Mas a sanha vingativa dos militares não se satisfez, querendo uma “prova” da fidelidade de Elis “à pátria” e uma demonstração pública de adesão ao regime militar. Para isso, obrigaram-na a gravar um comercial para a Semana da Pátria e também a cantar o hino nacional nas Olímpiadas do Exército de 1972. Tal episódio, como não poderia deixar de ser, marcou negativamente Elis aos olhos de todos aqueles que eram impiedosamente perseguidos pela ditadura. Se Elis, acuada pelos militares e sem participação militante contra o regime, errou ao ceder à sua pressão, deixamos para que cada um julgue por si; esses são os fatos, tal como ocorreram.

    Contudo, Elis continuou, à sua maneira, resistindo. Como por exemplo no festival Phono 73 no Anhembi, em São Paulo, que também teve um caráter de protesto (foi durante essa apresentação que ocorreu o célebre episódio em que Chico Buarque e Gilberto Gil tiveram seus microfones cortados pelos “fiscais” dos militares para evitar que cantassem “Cálice”); ou o também já mencionado show Falso Brilhante. Também foi consagrada na voz de Elis a música que ficou eternamente conhecida como “o hino da anistia”, a composição de João Bosco, “O Bêbado e o Equilibrista”.

    Com apenas 36 anos, Eis Regina morre. O laudo de sua morte aponta overdose de cocaína como a causa de seu óbito. Pode ser que tenha sido isso, efetivamente, que matou a “pimentinha”; mas nunca é demais lembrar que o legista de Elis foi o médico Henry Shibata, o mesmo que assinou o laudo falso do jornalista Vladimir Herzog, brutalmente assassinado nos porões da ditadura e cuja morte foi apresentada ao mundo por meio de uma risível montagem de suicídio por enforcamento com o cadarço de seus sapatos na cela onde estava preso. Independentemente do que a ditadura possa ter feito com Elis e do que possa ter assinado o médico cúmplice de torturadores, Henry Shibata, a sua voz sobrevive como um dos grandes legados artísticos de nossa história. Como presente aos seus fãs, aos setenta anos da cantora, a família lançou o seu site oficial, com textos, vídeos, fotos e músicas.

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