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Dossiê Stonewall
Carta Aberta à Leelah Alcorn
Virgínia Guitzel
Travesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC
Tatiana Cozzarelli

Leelah Alcorn , trans, 17 anos se suicidou no dia 29 de dezembro em Ohio nos Estados Unidos. Ela se soma aos 50% de pessoas trans nos Estados Unidos que cometeram ou tentaram se suicidar antes dos 20 anos.

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Leelah Alcorn , trans, 17 anos se suicidou no dia 29 de dezembro em Ohio nos Estados Unidos. Ela se soma aos 50% de pessoas trans nos Estados Unidos que cometeram ou tentaram se suicidar antes dos 20 anos. A carta de suicídio dela foi postada no Tumbrl e muito difundida nas redes sociais. Após sua morte houve várias vigílias em Ohio e abaixo-assinados pedindo uma “Lei Leelah” que tornaria as terapias de “cura” ou tratamentos psicológicos para as pessoas trans ilegal. Escrevemos à ela e todos os que sentem sua dor, uma singela resposta.

Carta da Leelah (Tradução nossa)

Se você estiver lendo isso significa que eu me suicidei e evidentemente não consegui apagar esse post.

Por favor, não fique triste, é melhor assim. A vida que teria vivido não vale a pena viver... Pois eu sou trans. Eu poderia detalhar explicando por que me sinto desse jeito, mas este texto provavelmente não será longo o suficiente para isso. Para simplificar, eu me sinto como uma menina presa em um corpo de menino, e eu me sinto desse jeito desde meus 4 anos. Não sabia que existia uma palavra para descrever esse sentimento, tampouco que fosse possível um garoto se tornar uma garota, então nunca contei a ninguém e continuei fazendo as coisas masculinas para tentar me encaixar.

Quando eu tinha 14 anos, aprendi o que significava ser transgênero e chorei de alegria. Depois de 10 anos de me sentir confusa finalmente entendi quem eu era. Imediatamente disse à minha mãe e ela reagiu de forma extremamente negativa, dizendo-me que aquilo era uma fase, que eu jamais seria uma mulher de verdade, que Deus não cometia erros, que eu estava errada. Se vocês estiverem lendo isso, pais, por favor não digam isso aos seus filhos. Mesmo que você seja cristão ou seja contra as pessoas transgênero nunca diga isso a alguém, especialmente para o seu filho. Isso só vai fazê-lo se odiar. E é exatamente isso que aconteceu comigo.

Minha mãe passou a me levar à terapia, mas apenas aos cristãos terapeutas, (os quais eram bem preconceituosos) de forma que nunca tive a terapia que precisava para me curar da minha depressão. Apenas consegui mais cristãos me dizendo que eu era egoísta e errada e que deveria pedir ajuda para Deus.

Quando fiz 16 anos percebi que meus pais nunca aceitariam, e que eu precisaria esperar até os 18 para começar algum tipo de tratamento para fazer a transição, o que destruiu absolutamente meu coração. Quanto mais você espera, mais difícil é a transição. Eu me sentia sem esperança, (sentia) que eu iria parecer com um homem para o resto da minha vida. No meu aniversário de 16 anos, quando meus pais me proibiram de começar o tratamento de transição chorei até pegar no sono.

Passei a ter uma atitude de "foda-se" para os meus pais e me assumi como gay na escola, pensando que seria mais fácil que se assumir como trans, já que chocaria menos as pessoas. Embora a reação dos meus amigos tenha sido positiva, meus pais ficaram muito bravos. Eles sentiam-se como se eu estivesse atacando a imagem deles, e que eu era uma vergonha para eles. Eles queriam que eu fosse o perfeito garotinho cristão, e evidentemente não era o que eu queria.

Então eles me tiraram da escola, tiraram meu notebook e celular, e proibiram-me de ter contato com qualquer pessoa, isolando-me completamente dos meus amigos. Essa provavelmente foi a fase da minha vida que eu mais me senti deprimida, e me surpreendo que não tenha me matado aí. Fiquei completamente sozinha por 5 meses. Sem amigos, sem ajuda, sem amor. Apenas a decepção dos meus pais e a crueldade da solidão.

No final do ano, meus pais finalmente me deram um celular e deixaram eu usar a internet. Fiquei feliz, finalmente teria contato com meus amigos. Eles também ficaram muito felizes de me verem e falarem comigo, mas isso foi só no começo. Eventualmente eles mostraram que estavam pouco se importando comigo, e eu me senti ainda mais solitária que antes. Os únicos amigos que eu achava que eu tinha, gostavam de mim apenas por que me viam cinco dias na semana.

Depois de um verão sem ter quase amigos, pensando na universidade, economizando dinheiro para me mudar, mantendo minhas notas boas, indo à igreja toda semana e sentindo-me uma merda por que todo mundo era contra aquilo para o qual eu vivia, decidi que já era suficiente. Nunca farei a transição de forma satisfatória, mesmo quando eu me mudar. Nunca ficarei feliz com a minha aparência. Nunca terei suficiente amigos pra me satisfazer. Nunca encontrarei um homem que me ame. Nunca serei feliz. Ou viverei o resto da minha vida como um homem solitário que deseja ser uma mulher ou viverei o resto da minha vida como uma mulher solitária que se odeia. Não há saída. Não há outro jeito. Já me entristeci o suficiente, não poderia ter uma vida pior. As pessoas dizem que "tudo vai melhorar" mas não é verdade no meu caso. Fica pior. A cada dia fica pior.

Essa é a essência de tudo, o motivo pelo qual eu quero me suicidar. Desculpe-me se não há motivo suficiente para você, são motivos suficientes para mim. Para a minha herança, desejo que 100% de tudo que eu tenho seja vendido (mais o meu dinheiro no banco) e que seja doado para grupos que militam por os direitos de pessoas trans, não importa qual. O único jeito de eu descansar em paz será o dia que as pessoas transgênero não sejam tratadas do jeito que eu fui, quando forem tratada como humanas, com seus sentimentos e direitos humanos respeitados. Gênero precisa ser ensinado nas escolas, quanto mais cedo melhor. Minha morte precisa significar alguma coisa. Minha morte precisa ser acrescida ao número de pessoas transgênero que cometeram suicídio esse ano. Quero que alguém olhe esse número e diga: "isso é foda" e conserte isso. Consertem a sociedade. Por favor.

Adeus, 

(Leelah) Josh Alcorn

Nossa resposta:

Querida Leelah,

É difícil saber como começar esta carta. Nós lemos a sua nota de suicídio, como tantos outros lerão. Nos afetou profundamente, como pessoas LGBT, sentimos a sua dor. Até mesmo as pessoas que nunca vivenciaram essa sensação de profunda exclusão social e incompreensão podem com as suas palavras ter dimensão das dificuldades que sofremos diariamente. Mesmo com milhares de quilômetros nos separando, com experiências de vida profundamente diferentes, pessoas LGBT em todo o mundo conhecem a sua dor porque é a nossa também. Sabemos o que é ser rejeitados por nossas famílias, se sentir sozinha em um mar de amor hetero e não ter nenhum recurso para que nosso corpo se adeque aos nossos anseios. Somos também trabalhadoras, e por isso, sabemos o que é não ter a grana pra exercer o nosso gênero ou sexualidade plenamente e livremente. Não te conhecemos Leelah, conhecemos a sua dor e sua ida também levou um pedaço de nós.

Mas teve outra coisa que reconhecemos em você. Você entende o sistema que nos oprime e que é organizado para que mais de nós sejamos derrotadas por tantas humilhações e sofrimentos. Nesta sociedade que quer que vejamos tudo como um problema individual, você entende a sua opressão ligada aos problemas sociais: a falta de educação sexual nas escolas, o descaso do governo sobre nossa condição de extrema marginalização, etc. O seu sangue está nas mãos da sociedade homo-lesbo-transfóbica. Esta sociedade tem a sangue de muitas pessoas LGBT nas mãos, a igreja, o Estado e os governos são todos responsáveis! Você esteve certa, até o fim.

O artigo que encontramos no jornal "Daily Mail" fala que você culpou sua opressão no seus pais. Sentimos que nossas famílias são parcialmente responsáveis?por a nossa opressão, as incansáveis tentativas de cura, tratamento ou salvação divina nos faz adoecer. Nos odiarmos, nos sentirmos culpadas por sermos o que somos e desejar não ser nós mesmas é a consequência da sociedade capitalista voltada ao lucro, oprimindo e explorando para que poucos possam seguir vivendo sob as custas de poucos.

O capitalismo lucra muito na base da heterossexualidade, em naturalizar os papéis dos gêneros no qual a mulher tem que cuidar dos filhos e manter os trabalhadores com roupas e comida para que possam continuar trabalhando. A mulher faz isso sem nenhuma compensação monetária porque é visto como seu "papel natural". Os patrões organizam a sociedade para garantir que não tenham gastos com a reprodução da vida das pessoas e dessa maneira mantém as opressões para que não possamos dar uma saída coletiva, pois muitos de nós mesmos reproduzimos essa ideologia. Nossos pais não podem controlar essa influência tão disseminada nas televisões, rádios, revistas, universidades e nos livros didáticos. É um ciclo vicioso, da qual nossos pais, amigos, familiares, companheiros por vezes se deixam acreditar e não sabem o quão maldosos, opressores e responsáveis por nossa morte estão sendo.

Aqui no Brasil, houve um projeto chamado kit anti-homofobia pra se ensinar nas escolas sobre as sexualidades não-heterossexuais, mais foi vetado pelos acordos do governo com as bancadas religiosas. Depois um pastor assumiu a Comissão de Direitos Humanos (uma grande contradição com os direitos humanos!) e defendeu um projeto de lei conhecido como “Cura Gay” para permitir que os psicólogos voltassem a encarar como doença nossa sexualidade e assim oferecer “tratamentos” (popularmente conhecido como torturas psicológicas e/ou físicas).

Foram as massivas mobilizações de Junho que se colocaram contra isso e puderam barrar essa tentativa de retroceder numa resolução de 23 anos quando a homossexualidade saiu do Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas isso não bastou para que tivéssemos uma vida melhor no Brasil. Nós travestis e transexuais seguimos com a expectativa de apenas 35 anos, somos as que estamos mais excluídas tendo a prostituição como única alternativa e tendo ainda que recorrer aos métodos mais precários para construção de gênero, como silicone industrial e a utilização dos hormônios sem acompanhamento médico. Somos a maioria analfabeta e sem acesso à cultura, não temos o direito à vida, só podemos então sobreviver.

Escrevemos essa carta, mesmo sabendo que você nunca poderá lê-la, Leelah. Você foi mais uma vítima do capitalismo e de sua permanente perseguição, repressão e opressão contra os LGBT. Escrevemos então, porque há muitas Leelah pelo mundo que também estão batalhando para seguir vivas e que esperamos fazer com que nossa carta possa dar voz para muitas outras "cartas" que gritem que nossos corpos são campos de batalha, diárias, e por isso devemos nos organizar, todas juntas, para mudar essa situação.

Somos Leelah e também somos Geia Borghi, trabalhadora aqui do Brasil que foi brutalmente assassinada, ficando irreconhecível, que é uma prática de nos mutilar para nos desmoralizar enquanto LGBT e para aprofundar nossa invisibilidade, já que aqui nem registro de mortes temos, porque o governo se recusa a reconhecer que existe homo-lesbo-transfobia.

Sentimos ódio, Leelah. Sentimos muito ódio do estado capitalista, da heterossexualidade compulsória e tristeza por suas vitimas quando lemos sua carta. É tão profunda e tão cheia de denúncias que nossos olhos enchem de lágrimas ao mesmo tempo que fortalece nosso ódio e que nos mantém vivas. Você está certa que as coisas não vão melhorar quando crescemos, elas pioram e se aprofundam. Porém quando nos organizamos podemos preparar, desde baixo, nossa revolução.

Uma luta com tantos outros que por diferentes razões também não veem força para continuar e sabem que a tendência não é que melhorem para nós. Por isso, à todos e todas que ao lerem sua carta tenham se sentido Leelah, tenham se visto como tantas vezes já decidimos, tentamos ou preferíamos ter tomado essa decisão, dizemos que é preciso dar um basta nessa situação. Chega de transfobia e de homofobia! Se a cada 28 horas um de nós é morto no Brasil, se a cada 5 dos casos de homofobia no mundo, 4 são do Brasil. Então, temos que fazer algo a respeito.

Leelah, nos escute: vamos vingar todas as que foram vencidas por esse sistema. E lutaremos para que seus sonho, e a vida que não lhe foi garantida, seja uma realidade para as futuras gerações. Nós também não poderemos viver o mundo que queremos, o mundo que produzimos e o mundo que lutamos para construir. Nascemos e já estamos há muitos anos presa nessas limitações impostas. Mas temos a certeza que temos força, se nos unirmos, se olharmos para nossa história e nos levantarmos, com a moral de StoneWall, com o ódio dos Panteras Negras e com a indignação que tomou as ruas depois dos assassinatos de Mike Brown e Eric Garner assim como a indignação que sentimos a cada palavra que escreveu e nos rebelarmos.

A insurreição há de ser organizada. Seremos a linha de frente, pois o novo mundo nos pertence.

De suas companheiras de combate e opressão,

Em profunda solidariedade

Virginia, Tati e todas as LGBT que gritam e confiam que a vitória estará do nosso lado.

Publicado originalmente em: http://www.palavraoperaria.org/Carta-Aberta-a-Leelah-Alcorn

Texto publicado originalmente em 10 de Janeiro de 2015.

 
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