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LITERATURA
Carolina de Jesus – uma voz necessária
Fernando Pardal
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“Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.”

  •  Carolina Maria de Jesus, em “Quarto de Despejo”

    O nome da escritora Carolina de Jesus ressurgiu, nesse ano do centenário de seu nascimento, envolvido na estranha contradição que lhe seguiu desde que fez sua fama, e que é tristemente comum a autores como Carolina. Negra, moradora da favela do Canindé (que foi destruída pela construção da Marginal Tietê e a especulação imobiliária a seu redor), após ter chegado a São Paulo como migrante vinda da pequena Sacramento, no interior de Minas, o reconhecimento de Carolina como autora foi tardio e ambíguo: em 1960 o jornalista Audálio Dantas, ao fazer uma pesquisa para uma reportagem sobre a favela, acabou se deparando com Carolina e com os cerca de vinte cadernos que compunham seus diários. Surpreendido pelo que julgou ser uma autora de grande talento, Audálio desistiu de sua própria reportagem e se atribuiu o papel de editor dos diários de Carolina, tendo selecionado uma compilação e lançando como o livro “Quarto de Despejo”, com o título inspirado em uma passagem do diário que diz “Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos”.

    Logo após a publicação, Carolina foi subitamente lançada da condição de catadora de papel vivendo em um barraco em sua favela, apenas uma entre milhões a viver nas favelas, para o seu breve “estrelato”: a primeira edição de “Quarto de Despejo”, com dez mil exemplares, se esgotou rapidamente; em poucos meses vendeu cem mil exemplares e foi traduzido para treze idiomas. Com o dinheiro e a fama, os desentendimentos com seus vizinhos e o ódio que alguns lhe tinham – como se pode ler nas páginas do diário – aumentaram, e Carolina rapidamente se mudou da favela onde morava.

    Apenas dezessete anos após o lançamento de “Quarto de Despejo”, em 1977, Carolina de Jesus morria de insuficiência respiratória, com somente 62 anos. Como disse Audálio em seu enterro: “Morreu como viveu: pobre”. Sua fama, depois da explosão inicial, rapidamente se transformou em um conhecimento restrito a poucos círculos. E mesmo tendo espalhado sua história ao mundo, morreu na miséria. Isso persiste até hoje: Carolina é famosa sem o ser. Esse aparente paradoxo é na verdade a regra em uma sociedade como a que Carolina viveu. Como bem definiu Audálio: “Carolina, querendo ou não, transformou-se em artigo de consumo e, em certo sentido, num bicho estranho que se exibia ‘como uma excitante curiosidade’, conforme registrou o escritor Luís Martins.”

    Para a sociedade que lhe aclamou e acolheu Carolina como uma “criatura exótica”, ela era uma favelada que lançou um livro. Nada mais que isso, e era esse fato inusitado que despertava o interesse, muito mais do que tudo o que havia em suas palavras e ao redor delas. E, ainda que hoje já se tenha até uma importante bibliografia acadêmica sobre a curta obra de Carolina, ela continua relegada ao monstruoso papel de uma escritora que é tratada como um tipo de aberração, da mesma forma como havia sido tratada como “traste velho” antes da fama e nos últimos anos de vida. É que em um país (e um mundo) no qual a brutal desigualdade social transforma em “trastes velhos” uma parcela cada vez maior de pessoas, jogando-as em centenas e milhares de “quartos de despejo” pelos cantos, não marginalizando-os, mas, ao contrário, tornando essa inclusão às custas da miséria uma peça chave na engrenagem social de exploração, o reconhecimento como “animal exótico” é o único que se pode garantir à Carolina. Qualquer outro reconhecimento é perigoso. As páginas de Carolina, nas mãos dos acadêmicos, são permitidas; nas mãos dos trabalhadores, dos negros, dos pobres, no entanto, são um perigo.

    A pobreza, a fome, a violência praticadas pelo Estado e pela sociedade de forma sistemática e organizada, tão bem retratados nas páginas de Carolina por alguém que sente isso na pele a cada dia, é capaz de se tornar uma arma. Uma forma de tomada de consciência, de criação de sujeitos prontos a se rebelar contra esse estado de coisas. E, justiça seja feita, há aqueles que tomaram a escrita de Carolina dessa forma. Todas as gerações posteriores do que ficou conhecido como “literatura marginal” veem em Carolina uma precursora e desbravadora, uma mulher que rompeu barreiras e levou ao mundo a voz da favela.

    Mas, como acontece até hoje, esse caminho não foi isento de contradições. Como até hoje escritores “da quebrada”, como Ferréz, são assimilados e cooptados para que sua voz se torne, como fizeram com Carolina, um “artigo de consumo”, tirando o potencial explosivo de suas palavras para transformá-lo em “folcore”, em “nicho de mercado”. A literatura e a arte da periferia são cada vez mais tornadas artigo de consumo; vide o funk “ostentação”. Isso, no entanto, não apaga a força das palavras de Carolina, que tocam fundo nas feridas da sociedade de classes. É um desafio às gerações atuais e futuras resgatar a obra de Carolina do papel “decorativo” que assumiu e lhe devolver seu justo lugar de uma mulher que, contra o peso de um mundo inteiro, tornou-se sujeito da denúncia da situação dos pobres, trabalhadores, mulheres, negros; tomando apenas as páginas brancas de cadernos velhos catados no lixo, Carolina construiu narrativas fortes, rasgantes, que serão para sempre um testemunho profundo de toda a podridão dessa sociedade. A escrita de Carolina é vida, é arma, é feita de sangue, sonho e dor. Ela pertence aos explorados e oprimidos desse mundo. É nossa herança e tradição, e devemos tomá-la para nós, tirando-a das mãos de, por exemplo, um Instituto Moreira Salles, que foi criado pelos mesmos responsáveis pela manutenção dos “quartos de despejo” do mundo, mas que no centenário de Carolina lhe rendeu uma hipócrita homenagem. Carolina e sua obra pertencem a nós.

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