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ENTREVISTA COM DAVID MACIEL | A Constituição de 1988 manteve em seu núcleo elementos fundamentais da institucionalidade autoritária

quinta-feira 23 de julho de 2015 | 00:25

ED: Em seus livros A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985 )[São Paulo: Xamã, 2004] e De Sarney à Collor: reformas políticas, democratização e crise (1985-1990) [São Paulo: Alameda; Goiânia: Funape, 2012] vc analisa a transição da ditadura militar à democracia como um processo que não se completa e portanto que o núcleo duro repressivo, autocrático, segue de pé. Vc poderia esclarecer este ponto, considerando que parte da esquerda, especialmente a petista, acredita na democracia realmente existente e não a enxerga como democracia degradada?

O processo de transição politica à democracia não se completa porque, na verdade, a institucionalidade democrática criada a partir das diversas reformas institucionais promovidas pelos governos militares (em 1977 e 1979-82) e pelo governo Sarney (em 1985) e instalada definitivamente com a Constituição de 1988 manteve em seu núcleo elementos fundamentais da institucionalidade autoritária criada nos primeiros dez anos da ditadura. Esta herança fez com que, apesar de todos os avanços em termos de direitos civis, políticos e sociais, a nova institucionalidade politica tivesse um caráter autocrático, preservando mecanismos de controle do conflito politico e social, particularmente aqueles vinculados à organização, mobilização e à luta dos trabalhadores. Entre estes mecanismos se destacam a supremacia do poder Executivo sobre os poderes Legislativo e Judiciário, que concentra poder nesta instância do aparato estatal dificultando sua democratização; a autonomia politica dos militares diante dos governos civis, favorecendo sua intervenção no processo politico como mantenedores da lei e da ordem, impedindo a desmontagem efetiva do aparato repressivo e de informações, dificultando a apuração dos crimes da ditadura e a punição de seus responsáveis; a estrutura sindical estatal, que mantém a tutela do Estado sobre os sindicatos, impedindo sua real autonomia e fortalecendo a perspectiva de que estes funcionem como instrumentos de conciliação de classes; a estrutura partidária, que fortalece os partidos de tipo aparelhista, burocrático, eleitoreiro e fisiológico, em detrimento dos partidos de mobilização social; e a legislação eleitoral, que privilegia as forças políticas conservadoras e avaliza o uso e abuso do poder econômico no processo eleitoral. Deste modo, podemos afirmar que com a transição politica o Estado autocrático-burguês vigente no país desde a proclamação da República e que atingiu seu ápice com a ditadura militar, não foi abolido, apenas reformado.

ED: Na sua opinião qual a explicação para que a transição de regime político no Brasil tenha se desenvolvido da forma como se deu, para uma democracia degradada, autocrática? Havia possibilidade de outro cenário, que implodisse o núcleo duro repressivo? Por que ele não se deu?

Uma das razões para que a transição política apenas reformasse e não abolisse a autocracia burguesa foi o fato de que este processo politico foi conduzido pelas forças políticas conservadoras, representantes dos interesses do grande capital, primeiramente pelos próprios governos militares e depois pelo governo Sarney e seus aliados. O conjunto de reformas institucionais patrocinados por estas forças e conduzidos por seus governos condicionaram de tal maneira o processo de transição que as forças de oposição não quiseram ou não foram capazes de reverter.

Esta incapacidade reside no fato de que parte da oposição, ou seja, a oposição burguesa (hegemonizada pelo médio capital e representada partidariamente pelo MDB e depois pelo PMDB) tinha uma posição contrária ao cesarismo militar, quer dizer, contrária à direção politica do bloco no poder pelos militares e por sua posição preponderante no aparelho de Estado, mas não uma posição antiautocrática. Daí sua postura moderada e conciliadora diante da ditadura e das reformas institucionais por ela patrocinadas, que permitiu-lhe assumir a direção política do processo, em aliança com os dissidentes do regime (Frente Liberal e depois PFL), na exata medida em que o cesarismo militar entrava em crise. Esta posição favoreceu enormemente a operação transformista imposta pela autocracia burguesa sobre as forças de oposição, tanto sobre a oposição burguesa, quanto sobre a oposição popular.

Sobre a oposição burguesa o processo se deu da maneira tradicional, ou seja, integrando-a na institucionalidade autoritária de modo a torná-la “sócia” do processo de transição conduzido a partir de cima. Com a oposição popular a operação transformista exigiu procedimentos diferenciados, que iam desde a repressão política pura e simples até mecanismos de integração subordinada à institucionalidade politica, como a estrutura sindical e a estrutura partidária, que foram capazes de condicionar sua práxis política e social. Tais procedimentos conseguiram esvaziar progressivamente a perspectiva antiautocrática apresentada pelo PT, pelo movimento sindical e pelo conjunto dos movimentos sociais, reforçando a tutela estatal, o burocratismo e o eleitoralismo. Esta operação transformista só se consumou nos anos 2000, mas já apresentava efeitos significativos durante a transição, impedindo que a crise de hegemonia vivenciada durante o governo Sarney se transformasse numa crise revolucionária, favorecendo a reforma da autocracia burguesa.

ED: Qual a sua avaliação de cenários políticos nos marcos atuais da crise do governo Dilma?

A crise atualmente em curso no país pode ser caracterizada como uma crise conjuntural, com possibilidades de evolução para uma crise de hegemonia. A perspectiva antineoliberal vitoriosa nas eleições presidenciais de 2014 foi amplamente derrotada pela combinação exitosa entre a chantagem politica imposta pelo grande capital ao governo, cuja manifestação mais radical é a ameaça de impeachment, e o desejo do PT e do seu governo em se reconstituir como principal operador politico da hegemonia burguesa. Esta combinação levou o governo reeleito à radicalizar o programa neoliberal aplicado desde 2003 com a adoção de medidas que favorecem o rentismo e retiram direitos dos trabalhadores, solapando o apoio politico conquistado pela candidata Dilma nas eleições de 2014 junto às classes trabalhadoras e fragilizando ainda mais o seu governo diante da chantagem burguesa.

Esta situação abre possibilidades para três cenários: o primeiro é a continuidade do que ocorre hoje, ou seja, com o governo aplicando o receituário neoliberal mais extremado exigido pelo grande capital como solução para a crise e rendendo-se à pauta política imposta pelas forças conservadoras, garantindo com isto uma precária sobrevivência política; o segundo passa pelo próprio agravamento da fragilidade politica do governo, incapaz de aplicar o programa neoliberal a contento, somado ao açodamento da oposição e dos aliados de direita, o que pode levar ao impeachment da presidente; o terceiro cenário relaciona-se à intensificação das lutas sociais e ao avanço político dos movimentos sociais e forças de esquerda contra a predominância do receituário neoliberal e em favor de uma perspectiva alternativa. Estes cenários não são excludentes entre si, pois imbricam-se um no outro, porém, para os trabalhadores a terceira situação é obviamente a mais interessante, pois permite-lhes tomar a iniciativa politica e romper com a “chantagem do mal menor” imposta pelos governos petistas desde 2006 (ruim com o PT, pior com o PSDB/DEM).

ED: Terceirização: porque este governo que se autoproclama "dos trabalhadores" necessita, a todo custo, impor a terceirização, degradando ainda mais as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora?

Porque uma das conseqüências da operação transformista imposta pela autocracia burguesa à oposição popular foi sua “integração passiva à ordem”, o que redundou na transformação do PT, do seu governo e de seus aliados políticos, no principal operador politico da hegemonia burguesa no país desde 2003. Este papel vem sendo solapado pela crise de legitimidade que atinge o partido e seu governo, por isto mesmo tornando necessária a radicalização do programa neoliberal como caminho para sua sobrevivência política e a manutenção do apoio do grande capital. Neste sentido a terceirização se soma ao conjunto de reformas neoliberais aplicadas pelos governos petistas nos últimos anos, porém numa conjuntura de grave crise econômica e social, o que amplifica seu caráter perverso e, contraditoriamente, reforça as posições das forças conservadoras, algumas das quais querem a derrubada do governo.




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