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SEMANÁRIO

Victor Serge sobre a morte de Trotsky: "Sem a nossa corajosa derrota, a revolução seria cem vezes mais derrotada"

Victor Serge

Tradução: Caio Silva Melo

Victor Serge sobre a morte de Trotsky: "Sem a nossa corajosa derrota, a revolução seria cem vezes mais derrotada"

Victor Serge

Por ocasião do 80º aniversário da morte de Trotsky, republicamos esta homenagem escrita por Victor Serge, revolucionário libertário, sobretudo marxista, e escritor de língua francesa. Apesar de não compartilhar todas as suas idéias, Victor Serge, nos anos que se seguiram à morte de Trotsky, reuniu os arquivos do revolucionário russo para fazer sua biografia. Quando escreve estas poucas linhas, ele está no México, na casa onde o líder da revolução russa foi assassinado e que ele encontra pela primeira vez.

O velho

Ele tinha apenas quarenta e cinco anos mas já o chamávamos de O Velho, como antes fazíamos com Lênin mais ou menos com a mesma idade. Isso significava, na linguagem popular russa, O Ancião em espírito, aquele que merece mais confiança. O sentimento que inspirou, ao longo de sua vida, em todos aqueles que realmente se aproximaram dele foi este: de um homem em quem o pensamento, a ação, a vida "pessoal" formavam um bloco contínuo seguindo seu caminho até o fim, sem falhas; de um homem com quem se podia confiar absolutamente em todos os momentos. Ele não variaria no essencial, não vacilaria na derrota, não se esquivaria da responsabilidade ou do perigo, não perderia a cabeça na confusão. Feito para dominar as circunstâncias, seguro de si, com tanto orgulho interior que se tornou simples e genuinamente modesto. O orgulho de ser um instrumento lúcido da história. Na prisão, no exílio, no quarto de um hotel de emigrante, no campo de batalha, no auge do poder, ser, com total abnegação, apenas aquele que faz o que deve ser feito para ser útil aos homens em marcha. Tendo provado desde cedo que era capaz (ele foi presidente do primeiro Soviete de Petersburgo em 1905, aos 28 anos), ele não duvidou mais de si mesmo e isso o fez considerar a fama, governo, a maior potência sem desdém ou apego, utilitarista.

Ele sabia ser duro e até implacável, com a alma de um cirurgião realizando uma operação séria. Tendo escrito, durante a guerra civil e o terror, uma frase como esta: "Nada é mais humano nas revoluções do que sua maior energia". Se você tivesse que definir com uma palavra, eu diria: um realizador. Levada à pesquisa, à contemplação, com um grande sentimento lírico para a vida: perto dos poetas. Fugido de uma vila siberiana, ele admirava as neves; em meio a uma insurreição, ele entendeu o papel da imaginação criativa neste árduo trabalho; rodeado de assassinos, na sua solidão de Coyoacán, amava as plantas mais espantosas do México, aqueles cactos que revelam ao europeu uma forma marcante de energia vital. Oprimido pela loucura das mentiras, durante os debates da comissão de Dewey sobre os julgamentos de Moscou, ele esboçou a hipótese de uma nova religião, no rescaldo de futuras revoluções, quando a humanidade se sentirá cansada das lutas que terão aberto um novo futuro. Incrédulo, mas seguro do valor da vida, da grandeza dos homens, do dever de servir. Ainda mais incapaz de duvidar disso do que acreditar em velhas crenças, que são parcos remédios para as dúvidas.

A certeza de possuir a verdade tornou-o intratável no final e culpou sua mente científica. Autoritário porque em nossos tempos de lutas bárbaras, o pensamento que age torna-se autoritário. Mantendo a força nas mãos, por volta de 1924-1925, ele se recusou a tomar o poder, acreditando que um regime socialista não poderia, sem entrar em um impasse, continuar tomando posições (e, mais de fundo, sem dúvida, que se a história impõe o trabalho sujo, é melhor deixar que os outros o façam, deixar para eles e reservar a defesa de um futuro ainda mais distante).

Nunca o conheci como um maioral, e nunca foi me foi o mais caro, que desde quartos dos pobres trabalhadores de Leningrado e Moscou, onde o vi várias vezes, depois de ter sido um dos líderes indiscutíveis da revolução vitoriosa, falando por horas para convencer alguns homens na rua e na fábrica. Ainda membro do bureau político, estava perdendo poder e, possivelmente, sua vida. (Todos sabíamos disso, como ele me contou). Afirmou que era chegado o momento de conquistar a consciência dos proletários um a um - como no passado, na ilegalidade do antigo regime - para salvar ou criar uma democracia revolucionária. Trinta ou quarenta rostos de gente pobre o escutavam, algum operário sentado a seus pés no chão, questionando-o e pesando suas respostas ... (1927). Sabíamos que era mais provável que seríamos derrotados do que vencer; mas isso também seria útil. Sem a nossa corajosa derrota, a revolução seria cem vezes mais derrotada.

Sua personalidade não constituiu um sucesso excepcional apenas em um nível comum, da vida coletiva. Todas as características de seu caráter, de seu espírito, sua visão da vida pertenciam por mais de meio século à intelectualidade revolucionária russa. Dezenas de milhares de lutadores o tinham, tinham ao seu lado (e não estou excluindo muitos de seus adversários desta multidão). Como Lênin e alguns homens que as fortunas do combate tornaram menos ilustres ou deixaram na obscuridade, ele só carregou esse personagem por várias gerações a um grau muito alto de perfeição individual. Essas gerações o carregaram, o formaram, viveram nele e dele, produzido pelas mesmas circunstâncias históricas, era como um todo idêntico a ele, embora todos ao seu redor, atrás dele, fossem de alguma forma inferiores a ele. Esta geração teve que ser totalmente destruída para nos rebaixarmos ao nível de nosso tempo. Ela estava antecipando muito do homem de amanhã; separado do maior número, tão logo o maior número aspire ao repouso.

O fim de sua vida foi um drama de solidão. Ele costumava caminhar sozinho em seu escritório em Coyoacán, falando sozinho. (Semelhante a Tchernichevsky, o primeiro grande pensador da intelectualidade russa, que, trazido de volta da Yakutia, onde havia passado vinte anos em cativeiro, "falava consigo mesmo enquanto olhava para as estrelas" - os gendarmes escreveram em seus relatórios ) Um poeta peruano trouxe-lhe um poema intitulado Solitude des Solitudes e o Velho mandou traduzi-lo palavra por palavra, impressionado com o título, o Velho achou-o muito bonito. Sozinho, assim, ele continuou a discutir com o fusilado Kamenev: nós ouvimos várias vezes esse nome.

Embora ele estivesse na plenitude de seu poder intelectual, seus escritos posteriores estão longe de valer suas obras de outros tempos. Muitas vezes esquecemos que a inteligência não é um dom individual. O que teria sido Beethoven exilado entre os surdos? A inteligência de um homem, por mais genial que seja, precisa respirar. A grandeza intelectual do Velho era em função da de sua geração. Ele precisava do contato imediato de homens do mesmo calibre espiritual, capazes de entendê-lo sem entusiasmo, para se opor a ele no mesmo nível que ele. Ele precisava de Bukharin, Pyatakov, Preobrazhensky, Rakovsky, Ivan Smirnov, ele precisava de Lênin para ser ele mesmo. Já entre nós, mais jovens, e ainda entre nós havia cérebros e personagens como Yeltsin, Solntsev, Yakovin, Dingaelstaedt, Pankratov (eles estão mortos? Eles estão vivos?), Ele não podia mais ser raso: faltavam-nos dez anos únicos de experiência e pensamento. Alguns de seus pensamentos mais frutíferos só foram expressos em cartas de discussão: quase tudo relativo à teoria da revolução permanente.

Ele foi morto no exato momento em que o mundo moderno estava entrando pelos tortos caminhos da guerra em uma nova fase de sua revolução permanente. Ele foi morto justamente por isso, porque poderia tornar-se realmente grande novamente se um dia encontrasse a terra e o povo da Rússia que ele, em grau extraordinário, instruiu. Anteriormente, eles haviam se empenhado em matar sua lenda, uma lenda épica, baseada inteiramente na verdade. A lógica de sua paixão e dos erros secundários que eram também de sua paixão também o mataram: conquistar e tentar formar, mais uma vez, a consciência do homem obscuro, que não existia, que não era mais do que farsa e traição, de quem ele deixou alguém entrar em seu quarto solitário, e esse alguém, cumprindo uma ordem, bateu nele por trás quando ele se curvava sobre um manuscrito insignificante. O machado de gelo fez um ferimento de sete centímetros de profundidade em seu cérebro.

Victor Serge

México, 1º de agosto de 1942 [1]

Original: Victor Serge sur la mort de Trotsky : "Sans notre courageuse défaite, la révolution serait cent fois plus vaincue"


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FOOTNOTES

[1NdT: Assim como a introdução da carta, escrita por companheiros do Ideias de Esquerda francês, também não compartilhamos de todas as ideias desse autor, mas a profundidade e os sentimento emanados por todos aqueles que, como Leon Trótski, construíram revoluções tão fabulosas, são difíceis de se expressar em palavras. Nessa tarefa tão árdua, Victor Serge construiu uma das mais belas cartas sobre essa pessoa e esse espírito condensado de milhões de russos revolucionários, esperamos ter conseguido traduzir ao português grande parte desse brilho.
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Victor Serge

Revolucionário francês, reconhecido por sua biografia de Leon Trótski
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