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LITERATURA | Versos de tortura

Inventário de Cicatrizes é um livro de poemas escritos por Alex Polari de Alverga; poeta nascido em João Pessoa, Paraíba. Aos 3 anos foi morar no Rio de Janeiro, onde sempre se envolveu nas lutas estudantis. Em 1971, com 20 anos, foi preso por sua militância contra o regime civil-militar instaurado em 1964 e que nesse ano completa 51 anos.

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

quarta-feira 22 de abril de 2015 | 00:00

"A todos os companheiros, livres, na clandestinidade, nas prisões e no exílio.

Especialmente em homenagem de:
Stuart Edgard Angel Jones, assassinado na tortura.
Eduardo Leite, assassinado na tortura.
Juarez Guimarães de Brito, por suicídio depois de ferido.
Carlos Lamarca, fuzilado depois de preso
Yara Iavelberg, morta? assassinada? suicídio?

A TODOS OS NOSSO MORTOS,
À MORTE

A MEU FILHO THIAGO,
À VIDA

(Entre esses dois extremos
e compromissos,
eu vou seguindo)
"

Inventário de Cicatrizes é um livro de poemas escritos por Alex Polari de Alverga; poeta nascido em João Pessoa, Paraíba. Aos 3 anos foi morar no Rio de Janeiro, onde sempre se envolveu nas lutas estudantis. Em 1971, com 20 anos, foi preso por sua militância contra o regime civil-militar instaurado em 1964 e que nesse ano completa 51 anos.

Militante do VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), um dos movimentos de esquerda de luta armada, que praticava assaltos a bancos e seqüestros, como o do embaixador alemão, Ehrenfried Von Holleben. Foi preso no Rio de Janeiro, condenado duas vezes a prisão perpétua durante a ditadura, tendo que cumprir 40 anos de prisão. Foi solto em 1980, após quase dez anos de prisão, com a lei de anistia. Durante os anos de prisão foi violentamente torturado, viu seus companheiros serem torturados, e Stuart Angel (filho da estilista Zuzu Angel, que tornou emblemática a luta pelo direito de enterrar o corpo de seu filho) ser morto. Anos mais tarde, Alex Polari diria que isso foi apenas uma experiência e que hoje não é mais o cerne da questão; postura diferente do que encontramos em seus poemas.

Carlos Henrique de Escobar, na apresentação escrita para Inventário de Cicatrizes, em Julho de 1978 diz sobre a poesia de Alex: "Fluente em sua forma, imediata em sua captação, lúcida e transparente, a poesia de Alex chega-nos desde os cárceres políticos da Ditadura, das suas salas de tortura, numa linguagem direta, franca e rigorosamente cuidada. (...)

A poesia e a política lutam hoje contra camisas de força impostas desde um passado recente e não recente que procura redefinir todo ato político novo e todo produto artístico nas formas de uma impotência e de um poder burguês já assegurado. Ensaiar uma análise da realidade fora dos parâmetros burgueses ou reformistas, propor-se à ação política consequente sem as reservas pequeno-burguesas, ousar a poesia direta, clara e plena, simples e maravilhosa, sem os desvios autoritários-formais ou anarco-elitizantes, constitui uma coragem - e um caráter - que Alex nos exibe.

80 anos de pena, torturado barbaramente, testemunha de assassínios de companheiros nos cárceres da Ditadura, em sua decidida independência nos versos e na força irresistível de suas imagens, Alex convoca-nos outra vez para o respeito à poesia e para os caminhos novos e livres que ela vai agora assumindo"

É claro que se espera uma boa propaganda do livro que se irá ler na sua apresentação. Mas as palavras de Carlos Henrique Escobar se mostram verdadeiras e não apenas propagandistas, quando no primeiro poema ao falar cruamente da morte de Stuart Angel, Alex já comove o leitor descrevendo o que eram as celas, onde se encontravam os presos políticos, a esperança de que não fosse morto, o médico que vinha apenas para dizer que o preso ainda aguentava apanhar mais, ter como o único contato com os outros presos o grito durante a tortura e o choro noturno. Se a forma dos versos são simples e não encantam, o conteúdo que eles transmitem comovem e se perpetuam no leitor.

Inventário de Cicatrizes foi publicado em 1978, dois anos antes da soltura de Alex. As poesias ali ainda são de um tempo presente e todos acontecimentos e sentimentos descritos recentes. Essa característica, em que a escrita é tão próxima do que a originou, torna-a viva e mais angustiante, pois é escrita pelo eu lírico ainda ferido e sem tempo de cicatrização.

Encontramos entre os versos o tempo anterior à prisão, em que se vivia o tempo todo alerta e pronto à prisão que podia acontecer na esquina a qualquer momento, sobre os cinco minutos apenas em que se esperava o camarada e que quando ele não vinha era já sabido que ele tinha sido preso, morto ou desaparecido (que no fim era a mesma coisa). Encontramos o amor presente, sendo até ele afetado pelo medo.

Há uma descrição muito precisa e ao mesmo tempo íntima dos anos na prisão. Em três poemas intitulados "Trilogia macabra" é descrito a trindade da tortura: o torturador, o analista de informações e os instrumentos de tortura, que se acreditam como algo necessário nas engrenagens que mantém a ditadura e que não chocam os apoiadores da ditadura; que também acreditam neles como algo necessário. A tortura é um dos fatos mais presentes nos versos de Alex; aparecendo de diversas formas, chega a aparecer como esperança, pois ser mais uma vez torturado significava que o militante ainda não seria simplesmente assassinado e jogado em um lugar em que seu corpo não seria encontrado.

Ainda sobre a tortura, o poeta descreve no poema "Moral e Cívica - II" o sentimento de encontrar na parada o soldado que o torturou horas atrás sendo ovacionado sob o som do hino nacional - a desculpa pífia do nacionalismo e da proteção à pátria como justificativa à ditadura. Descreve como era ter que não dizer a verdade, não entregar os companheiros sob tortura e sublimar todo esse momento lembrando dos amores que vivia antes de tudo. E a eterna rememoração de que os torturados nunca se esquecerão das torturas, da cela da prisão, dos companheiros de cela e de militância que desapareciam da noite pro dia:

"todos os que ouviram os gritos, vestiram o capuz
todos os que gozaram coitos interrompidos pela morte
todos os que tiveram testículos triturados
todas as que engravidaram dos próprios algozes
estão marcados,
se delimitam do direito da própria felicidade futura
"

Há poemas que descrevem a morte de companheiros, como Gerson e Maurício, e também Paulo (codinome de Stuart Angel); sendo essa descrição a mais dolorosa de se ler, pois foi o assassinato testemunhado no pátio da prisão, por entre as grades de sua cela, por Alex. Stuart era militante do grupo MR-8 (grupo armado de esquerda) e a luta de sua mãe, a estilista Zuzu Angel, para ter o direito de enterrar o corpo de seu filho, o tornou um dos representantes dos militantes que eram brutalmente assassinados durante a ditadura.

Pelas palavras de Alex conhecemos a realidade da prisão onde foram colocados os presos políticos, desde os vizinhos de cela até os vigias do lado de fora com suas armas nas mãos, ouvindo as notícias nos rádios de pilha. O sentimento de abandono dentro da prisão em acreditar que os presos políticos se tornaram apenas lembrança aos que não foram presos.

Alguns versos se perdem nos sonhos de como será a liberdade no dia da anistia; outros versos mais duros e políticos questionam os jornais que condenam o sangue que os militantes derramaram combatendo a ditadura, mas aceitam e justificam o sangue derramado dos militantes em torturas e assassinatos.

Em um dos últimos poemas, chamado: “Réquiem para uma aurora de carne e osso”, vemos a descrição de uma companheira chamada Aurora, que foi “perseguida, linchada, torturada e assassinada”. Poema duro, mas que termina com um chamado a esperança quando diz que não importa quantos militantes sejam mortos não impedirão o surgimento de tantos outros militantes.

Após ser solto, Alex não militou mais; suas entrevistas mais recentes o mostram desacreditado dizendo que após a prisão notou que era preciso uma revolução pessoal antes da tentativa de uma revolução social, e que através da revolução espiritual a humanidade conseguirá as mudanças precisas para um novo mundo. Chega a dizer que a luta apenas política era inviável para se conseguir grandes mudanças. Hoje, aos 65 anos, é um dos líderes de uma das maiores comunidades de santo daime do mundo, a Comunidade Céu do Mapiá, no Acre. É quase impossível reconhecer nesse Alex de hoje o jovem que escreveu os versos de Inventário de Cicatrizes e nos fez chorar todas suas torturas, a de seus companheiros, a tantas mortes de militantes em nome de uma ditadura, que se pintava de nacionalismo. Felizmente, ainda assim, os versos do jovem Alex, militante, preso e torturado permanecem e são memória, que não deve se apagar e ainda é, sim, cerne da questão. E uma esperança que se coloca nos últimos poemas, principalmente entre os versos finais, em que ele diz: "pois eu sou fraco, forte é nossa causa", que nos lembra que mesmo quando nós (aqueles que acreditam e contribuem para a mudança desse sistema, que permitiu que períodos obscuros, como a ditadura, acontecessem) fraquejamos, crer na nossa causa é o que será forte, pois ela é legítima e necessária.




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