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REFORMA CURRICULAR DO CEE | “Universidade sem partido” e a formação de professores sob ameaça

A reforma curricular imposta pelo Conselho Estadual de Educação aos cursos de Pedagogia e Licenciaturas da USP, Unesp e Unicamp é a continuidade do projeto “Escola Sem Partido” e da terrível reforma do Ensino Médio. A formação de professores fica ameaçada pela lógica conteudista e tecnicista da reforma que foi aceita na última semana pela reitoria da USP. Estudantes e professores, no entanto, se posicionaram contra a deliberação.

terça-feira 22 de agosto de 2017 | Edição do dia

Depois da reforma do Ensino Médio e do projeto “Escola Sem Partido”, um novo ataque vem sendo feito à educação: o Conselho Estadual de Educação de São Paulo quer impor aos cursos de Pedagogia e Licenciaturas da USP, Unesp e Unicamp uma reforma curricular que precariza ainda mais a formação de professores, seguindo uma lógica tecnicista e conteudista, esvaziando o currículo de uma reflexão crítica do processo pedagógico e da escola. Desde 2012 em disputa com as Faculdades de Educação das três universidades estaduais paulistas, o CEE decidiu, esse ano, impor a reforma por meio de ameaças de descredenciar as faculdades e, com isso, impedir a emissão de diplomas.

A deliberação CEE 154/2017 altera significativamente os componentes do currículo de formação de professores. Atualmente, segundo deliberação de 2014, o currículo dos cursos de Pedagogia conta com 800h para formação científico-cultural e 1600h para formação didático-pedagógica específica para educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, além de 400h de estágio supervisionado e 400h para formação em demais funções docentes.

Com a reforma, das 800h anteriores para ampla formação científico-cultural, 600h passam a ser uma revisão de conteúdos de nível básico de acordo com os parâmetros previstos na Base Nacional Comum Curricular, incluindo estudos de Língua Portuguesa (em especial produção de texto e domínio da dita "norma culta"), Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais e utilização das Tecnologias da Comunicação e Informação como recurso pedagógico (em resumo, como utilizar esses recursos em sala de aula). As outras 200h viram prática como componente curricular (PCC), distribuídas ao longo do curso, junto às outras 200h retiradas da formação didático-pedagógica, que passa a compor 1400h do currículo.

Nas Licenciaturas, voltadas à formação de professores dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, 200h passam a ser dedicadas à revisão de conteúdos curriculares específicos da área, Língua Portuguesa e Tecnologia de Informação e Comunicação, 960h de conhecimentos didático-pedagógicos, fundamentos da educação e metodologias de ensino, 1040h de conhecimentos específicos da licenciatura em questão, 400h de PCC, 400h de estágio supervisionado e 200h de aprofundamento teórico e prático.

São muitos os problemas envolvidos nessa proposta. A quantidade expressiva de horas voltadas à revisão dos conteúdos ministrados no ensino básico remete a uma concepção de educação que vai bem a calhar com o projeto tecnicista de educação defendido pelos setores mais conservadores do país e com a ingerência curricular aos moldes do projeto “Escola Sem Partido”. Depois de enfiar nas escolas materiais didáticos de péssima qualidade, com apostilas que nada mais são do que apresentações rasas e conteudistas que não vêm acompanhadas de qualquer reflexão mais profunda, querem agora garantir que os professores saiam das universidades formados apenas para transmitir esse conteúdo. Não nos querem educadores, mas adestradores de crianças.

Dessa maneira, tornam estanque a formação dos nossos alunos, uma vez que o professor sai da universidade sabendo muito pouco além do conhecimento apostilado que nos impõem. O estudante sai da escola, aprende na faculdade o mesmo conteúdo, e volta pra sala de aula como professor pra ensinar o mesmo que lhe foi ensinado sem ter instrumental para superar os problemas que hoje aparecem nas escolas. As mesmas fórmulas, as mesmas regras gramaticais, a mesma maneira rasa de olhar para o desenvolvimento histórico da humanidade. Tudo sem qualquer reflexão profunda sobre o processo pedagógico e a utilidade desse conhecimento despejado nos nossos alunos apenas para que respondam corretamente às questões que compõem as controversas avaliações existentes hoje.

“Eu nunca mais usei a fórmula de Báskhara desde que saí da escola!”

Afirmações como essa são repetidas à exaustão por milhares de pessoas. E é uma dura realidade. A educação, hoje, não se propõe a deixar às crianças e aos adolescentes qualquer legado significativo em suas vidas. Os conteúdos são despejados e servem para passar de ano. E terminadas as férias escolares, pouco resta do que se decorou no semestre anterior. Tudo para que as escolas formem batalhões de trabalhadores minimamente qualificados para realizar um trabalho alienado que não permite o desenvolvimento das potencialidades humanas.

A reforma curricular que o Conselho Estadual de Educação quer impor de forma autoritária aprofunda essa lógica de formação precária de uma mão de obra barata. Ela vem pra matar a reflexão crítica pela raiz, garantindo que os professores entrem na sala de aula sem ter muito mais o que oferecer aos seus alunos além de uma mera formação instrumental.

A imposição de uma revisão conteudista de acordo com a Base Nacional Curricular Comum, que ainda sequer foi aprovada, ignora as polêmicas envolvidas nessa Base. Defendida pelo MEC e empresários apoiadores, a BNCC não engloba questões fundamentais para o país, como a questão da igualdade de gênero e sexualidade, por conta da pressão da direita conservadora e seu “Escola Sem Partido”. Essa base também defende uma escolarização e alfabetização precoces às crianças, desconsiderando totalmente a ampla desigualdade social que ocorre no país, retirando a alfabetização dos objetivos escolares do terceiro ano do ensino fundamental em diante.

Apesar de a Base não ter sido aprovada, o Conselho já quer impô-la a todo custo: liberou a impressão de material didático, acatando os interesses dos empresários, e propõe agora essa reforma curricular no ensino superior, desrespeitando a autonomia universitária e excedendo na sua ingerência sobre a formação de professores.

Mais do que uma questão de conteúdo: uma disputa de concepção

Para se manter credenciadas no Conselho Estadual de Educação, as faculdades devem apresentar as ementas e bibliografias das suas disciplinas, comprovando que se adequaram à deliberação. E aí está outro grande problema dessa reforma.

Não se trata apenas de uma imposição conteudista. Por trás de tudo isso, existe uma disputa de concepção de educação. De forma excessiva, o Conselho quer ingerir na maneira como esse conteúdo é apresentado e na bibliografia proposta aos estudantes, algo inaceitável. No limite, querem garantir que os professores formados pelas universidades públicas recebam a mesma formação precária oferecida pelas instituições privadas, e não o oposto.

Para Bernardete Gatti, presidente do CEE, os estudantes das universidades públicas “têm um currículo acadêmico bem mais forte. Então, saem com uma formação acadêmica melhor, mas não com uma formação para ser professor.” E para “igualar” as formações, precariza o currículo da universidade pública, sem questionar a relação entre a baixa profundidade acadêmica das instituições privadas e a sanha por lucro dos tubarões do ensino que as gerenciam.

Reforma Curricular em uma universidade em crise

As universidades públicas do país sofrem uma grande crise. Com repasses de verba insuficientes, bolsas de pesquisa, políticas de permanência e a qualidade da graduação têm sido alvos de ataques profundos. No Rio de Janeiro, a UERJ corre o risco de fechar as suas portas. Em todo o país, universidades federais e estaduais têm sido cada vez mais precarizadas. E em São Paulo isso não é diferente.

Na USP, a crise orçamentária tem sido utilizada como desculpa para o congelamento da contratação de professores, demissão de milhares de funcionários, cortes de bolsas de pesquisa e permanência e precarização da extensão universitária, como o sucateamento do Hospital Universitário. Em tudo se mexe, menos nos supersalários da burocracia universitária e nos contratos espúrios com instituições privadas que se utilizam do equipamento público, muitas vezes geridas pelos mesmos professores que estão encastelados nos postos de confiança do reitor.

No último período, o regime de contratação dos docentes tem sido alterado, abrindo espaço para a contratação de professores temporários com baixos salários e desvinculados da pesquisa. Também tem ocorrido a implementação de cursos à distância.

Nos últimos anos, foi implementada a disciplina obrigatória de Língua de Sinais para os cursos de licenciatura. Por conta da falta de docentes, o curso é ministrado à distância, por meio de vídeo-aulas e avaliações pela internet. Com poucas vagas, muitos estudantes ficam de fora dessa disciplina, travando sua formação. Quando conseguem se matricular, saem sem saber se comunicar minimamente nessa língua.

Este é um excelente exemplo de como a reforma curricular proposta é irresponsável. No caso da disciplina de Língua de Sinais, a sua incorporação no currículo de formação de professores é fundamental para que possamos discutir uma educação inclusiva, acessível a todos. No entanto, a sua implementação de forma precária representa uma preocupação oposta: atender a uma deliberação de maneira meramente formal sem de fato garantir uma melhor formação.

No caso da atual reforma curricular, a situação difere por todos os elementos que já apresentamos aqui, já que as mudanças levam a uma precarização do próprio currículo. Mas mesmo que se aceitasse a reforma, ela não tem como ser aplicada de fato. Com a contratação de professores congelada pela Reitoria, só existem duas possibilidades: ou essas disciplinas seriam ministradas no formato EAD (educação à distância), o que vai na contramão de uma formação qualificada, ou os cursos ficariam impossibilitados de abrir vaga até que houvesse professores pra atender a nova demanda.

Entende-se, então, a recente aprovação por parte da reitoria da USP dessa reforma curricular, que deu às faculdades um prazo até dia 25 de novembro para que comuniquem a maneira como essa deliberação vai ser aplicada. Trata-se da desculpa perfeita para a continuidade dos ataques que a reitoria já vinha querendo implementar, enfrentando resistência de estudantes, funcionários e professores. Ou precariza por meio do ensino à distância, ou coloca como regra, e não exceção, a contratação de docentes temporários que, desligados da pesquisa, rompem com o tripé ensino-pesquisa-extensão, o que aprofunda a precarização da universidade pública, abrindo um espaço cada vez maior à privatização.

Para essa reitoria, é a chance para desferir um ataque certeiro aos “cursos problema” da universidade, que geram pouco interesse mercadológico. Há anos a formação de professores vem sendo negligenciada, e as licenciaturas, desmontadas. A Comissão Inter-Licenciaturas, que colocava em diálogo todas as licenciaturas e a Faculdade de Educação da USP, foi extinta sob a desculpa de “falta de verba” para o transporte dos representantes de cursos de fora da Cidade Universitária para reuniões. Uma desculpa esfarrapada pra maquiar a verdadeira intenção da reitoria: desarticular os estudantes e professores dos cursos de licenciatura, que não são interessantes para a iniciativa privada, e minar a resistência ao avanço da privatização que já ocorre na USP por meio da implementação de cursos pagos.

É urgente levantar uma forte luta contra a reforma curricular e em defesa da educação

É preciso que haja uma ampla reforma na educação básica e na formação de professores. Mas a reforma de que precisamos deve dar passos a frente, e não atrás. A atual reforma curricular que o Conselho Estadual de Educação quer impor é a continuação do retrocesso representado pela Reforma do Ensino Médio e pelo projeto de “Escola Sem Partido”, defendidos pela direita que apoiou o golpe institucional ocorrido em 2016 e que hoje dá as caras aprofundando rapidamente os ataques à educação e aos direitos trabalhistas iniciados pelos governos petistas.

Esses ataques se ligam umbilicalmente. Precariza-se a educação para garantir uma mão de obra cada vez mais barata, e assim se mantêm os exorbitantes lucros das burguesias nacional e imperialista às custas de condições de vida e trabalho que pioram a cada dia pra juventude e os trabalhadores desse país.

A gestão A Plenos Pulmões do Centro Acadêmico Professor Paulo Freire da FEUSP, composta por militantes da Faísca – Juventude Anticapitalista e Revolucionária, do Grupo de Mulheres Pão e Rosas e do Movimento Nossa Classe Educação, além de estudantes independentes, está desde o primeiro dia letivo desse segundo semestre travando incansavelmente uma luta contra essa reforma curricular, em unidade com os professores da faculdade.

Organizamos reuniões, uma forte plenária com estudantes, professores e funcionários e uma assembleia estudantil que reuniram centenas de estudantes. Nas últimas semanas, passamos nas salas de todas as licenciaturas presentes na Cidade Universitária denunciando esse ataque e construindo com estudantes de 15 cursos diferentes um movimento de defesa da nossa formação e da educação básica.

Onde foi possível chegar com a denúncia, impera a indignação com a reforma curricular proposta pelo CEE, por parte de professores e estudantes. É mais uma das medidas que querem impor sem que seja feita qualquer discussão a comunidade acadêmica e à revelia do seu posicionamento. Na Faculdade de Educação, os estudantes paralisarão suas atividades nessa sexta-feira, dia 25, em repúdio à reforma. E queremos ir por muito mais.

A USP só não está em chamas nesse momento contra a precarização que essa reforma representa por conta da negligência das direções do DCE (PSOL e PCB) e dos centros acadêmicos, vários dirigidos pelo Levante Popular da Juventude e pelo Balaio – Núcleo de Estudantes Petistas da USP. Enquanto a formação e os diplomas de milhares de estudantes estão ameaçados, esses setores do movimento estudantil estão mais preocupados em levantar a campanha por “diretas pra reitor”, demonstrando nenhuma vontade de mobilizar os estudantes, por um lado, e uma grande confiança na estrutura de poder antidemocrática da universidade por outro.

O ataque que está sendo feito deixa claro: não se trata do jogador que ocupa o cargo de reitor, mas do conjunto de regras que ditam o jogo da burocracia universitária. Enquanto houver um Conselho Universitário composto por maioria de professores com supersalários, representantes da FIESP e uma mínima participação de estudantes e funcionários, a universidade vai seguir sendo gerida para atender a interesses que são opostos aos da população que a sustenta. A máfia do Conselho Estadual de Educação diz, a reitoria acata, os estudantes têm sua formação precarizada e saem adestradores de crianças e não educadores.

É urgente que o movimento estudantil levante como pauta central barrar essa reforma curricular, em unidade com os professores e funcionários. E a partir desse importante debate, que consigamos propor uma outra reforma curricular, que abranja um combate eficiente a toda forma de opressão e que pense a educação criticamente de forma a se opôr à exploração, que avancemos nas nossas pautas e possamos exigir a abertura imediata do livro de contas da USP para vermos pra onde vai o dinheiro, e com isso exigir a reabertura da contratação de professores na universidade, ampliação das bolsas de pesquisa e permanência (uma demanda muito grande nos cursos de licenciatura e Pedagogia, que recebem a maior parte dos estudantes egressos de escolas públicas) e contratação de funcionários para que a universidade possa realizar com qualidade os serviços que presta à sociedade. E, junto a isso, avançar pra exigência da dissolução do Conselho Universitário, para que a universidade possa ser gerida pelos três setores que a compõem e não por uma casta burocrática, e pelo fim do vestibular, que coloca como norte pra educação básica a mera aprovação em uma avaliação que serve apenas para manter os jovens fora do ensino superior.




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