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Uma nova fase da guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

Uma nova fase da guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

A guerra da Rússia na Ucrânia entrou em seu terceiro mês. O fato de Putin não ter conseguido uma vitória rápida, enquanto a Ucrânia armada pela OTAN resiste, mas tampouco consegue derrotar a invasão russa, deu origem a um impasse que tende a aprofundar o carácter internacional do conflito e o consequente risco de uma escalada.

Acesse aqui o artigo original: Una nueva fase de la guerra en Ucrania

O exército russo está implantando o que o governo Putin definiu como a "segunda fase" da "operação militar especial". Lembremos que apesar das toneladas de bombas, milhares de mortos – soldados russos e ucranianos e sobretudo a população civil, milhões de refugiados e a destruição milionária da infraestrutura ucraniana, Putin ainda não chama a guerra pelo nome. Muitos especulam que ele dará esse passo em 9 de maio, quando presidirá a comemoração da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista.

Mas a novidade mais significativa não vem do campo de batalha no sentido estrito, mas do salto na intervenção por trás do lado ucraniano das potências da OTAN, em particular dos Estados Unidos, que potencialmente pode redefinir o curso da guerra.

Primeiro vamos ao quadro da situação.

O início da segunda fase da ofensiva russa, no final de março, implicou, grosso modo, a adoção pela Rússia de uma estratégia mais modesta. Passou de uma fracassada guerra relâmpago visando as grandes cidades para provocar a queda rápida do governo Zelensky, para se concentrar na região de Donbass e, eventualmente, desde lá, projetar o controle russo para o leste e o sul da Ucrânia. O fato de o teatro de operações estar centrado em Donbass não significa que a Rússia tenha desistido de bombardear esporadicamente as cidades ucranianas das quais se retirou. Sem ir mais longe, durante uma visita de Antonio Guterres, chefe das Nações Unidas, a Kiev, a Rússia lançou uma salva de mísseis sobre a capital ucraniana, o que só pode ser lido como uma estrondosa mensagem política dirigida às potências ocidentais.

A estratégia do Kremlin é cautelosa na forma, dadas as vulnerabilidades expostas na primeira fase da guerra e o esgotamento militar e econômico como efeito das sanções que já começam a ser percebidas. Mas continua ofensiva no conteúdo, o que implica que o governo Putin espera melhorar ainda mais sua posição para quando chegar a hora das negociações, se é que chegará. Primeiro porque as negociações formais foram suspensas desde a última tentativa fracassada na Turquia – embora os canais alternativos permaneçam abertos – e segundo porque a guerra não termina necessariamente com algum acordo diplomático.

Os mapas da guerra mostram que, embora lentamente e com dificuldade, o avanço russo continua. Finalmente, após quase dois meses de cerco, o exército assumiu o controle da cidade portuária de Mariupol, com exceção da siderúrgica Azovstal, em cujos túneis um número indeterminado de membros do regimento Azov (o famoso "batalhão Azov" composto pelas milícias de extrema direita da Ucrânia) e também civis refugiados foram presos.

De acordo com o cálculo dos generais russos, o ataque à siderúrgica teria significado uma batalha sangrenta com muitas baixas próprias, então eles simplesmente optaram por bombardear a partir do ar, selar o local e esperar que acabem as munições e alimentos daqueles que resistem. Então o fim do sítio é uma questão de tempo.

Até agora é a posição de maior valor estratégico conquistada pelo exército russo na Ucrânia, não pela cidade em si, que foi reduzida a escombros (um "campo de concentração em ruínas" segundo a descrição adequada do presidente ucraniano Volodimir Zelenski), mas porque com Mariupol a Ucrânia perdeu o acesso ao Mar de Azov e a Rússia ganhou uma ponte terrestre que liga a península da Crimeia às repúblicas de Donetsk e Lugansk. Além obviamente do espetáculo obsceno da “terra arrasada” que serve de exemplo para desencorajar outras resistências.

Do ponto de vista militar, a queda de Mariupol libertou várias tropas russas que estão sendo realocadas para o leste, onde a Rússia ainda não conseguiu garantir o controle de Donetsk.

A partir desses fatos abrem-se diferentes cenários. Segundo as estimativas mais conservadoras, Putin poderia apresentar o controle da região de Donbass – e do corredor que a liga à Crimeia – como um triunfo de sua “operação especial” para “desnazificar a Ucrânia”, embora isso por si só não signifique o fim da guerra que pode continuar de outras formas, como operações de contra-insurgência.

Mas há outra hipótese, mais audaciosa, de que Putin anuncia uma escalada, ampliando os objetivos territoriais para a Transnístria, pequena região separatista da Moldávia, que levaria a ofensiva russa para o oeste, até a fronteira com a Romênia, ou seja, até os portões a União Europeia.

Embora as repetidas referências do comando russo à Moldávia alimentem a especulação de uma escalada ofensiva, este parece ser um objetivo duvidoso a alcançar não só porque a Rússia ainda não estabilizou o controle das áreas que já ocupa e onde enfrenta a resistência ucraniana, mas também porque entre outras coisas, teria que conquistar a cidade portuária de Odessa, o que poderia expor a Rússia a uma extensão militar insustentável. Embora não existam números precisos ou método independente para corroborar a informação, que é usada como parte do arsenal de guerra tanto pelo "Ocidente" quanto pelo regime russo, algumas agências militares estimam que o exército russo perdeu nas primeiras oito semanas da guerra 25% de sua capacidade operacional.

Foi o ex-secretário da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, que em entrevista admitiu que as potências ocidentais cometeram um duplo erro “subestimar as ambições de Vladimir Putin” e ao mesmo tempo “superestimar a força militar da Rússia”.

Provavelmente, a exposição das fragilidades estratégicas do exército russo – e a resistência ucraniana maior do que o esperado – influenciaram a percepção das potências imperialistas, em particular dos Estados Unidos, que acabaram descobrindo na invasão russa da Ucrânia uma oportunidade estratégica. Essa mudança de percepção explicaria em parte a escalada das potências ocidentais.

Esse giro foi anunciado politicamente por Biden na Polônia no final de março, onde ele deu a entender que a estratégia dos EUA era a "mudança de regime" na Rússia. E tornou-se política oficial com a visita de Antony Blinken e Lloyd Austin – secretários de Estado e Defesa respectivamente – a Kiev onde, depois de se encontrarem com o presidente Zelensky, branquearam um segredo conhecido: que o verdadeiro motor do imperialismo norte-americano não é a "soberania da Ucrânia", mas "enfraquecer a Rússia a longo prazo". Em entrevista à CBS News, Ben Hodges, ex-comandante do Exército dos EUA na Europa, deixou ainda mais explícito. Ele não apenas disse "queremos vencer", mas explicou que isso significava "quebrar a capacidade da Rússia de projetar poder fora da Rússia".

O governo de Joe Biden continua mantendo suas “linhas vermelhas” de não entrar diretamente em um conflito militar (nuclear?) com a Rússia – leia-se para não colocar “botas no chão” nem entrar em combate, por exemplo, impondo uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia. Mas com esse limite, a intervenção e os objetivos dos Estados Unidos e da OTAN, que atuam abertamente como o comando político-militar do lado ucraniano por trás de Zelensky, aumentaram.

Esse "comando" ganhou status organizativo com a criação do chamado "grupo de contato para a Ucrânia", que teve sua primeira reunião na base aérea de Ramstein-Miesenbach, principal base norte-americana na Alemanha, presidida pelo chefe do Pentágono Lloyd Austin. Este conselho de guerra é formado por 43 países – membros da OTAN, mas também países “amigos” dos Estados Unidos, como Japão, Israel e Catar – e se reunirá mensalmente para avaliar as necessidades militares da Ucrânia para “ganhar” a guerra.

Entre as principais resoluções está o aumento da transferência de armas e munições e também de treinamento para a Ucrânia pelas potências ocidentais. É um salto porque a partir de agora a OTAN fornecerá ao exército ucraniano armas ofensivas pesadas. Este arsenal inclui tanques antiaéreos Gepard da Alemanha e canhões Howitzer dos Estados Unidos e Canadá.

De acordo com essa orientação mais ofensiva, o presidente Biden pediu ao Congresso que aprovasse US$ 33 bilhões adicionais para assistência militar e econômica à Ucrânia. Uma multiplicação por quase 10 dos 3,5 bilhões que o imperialismo norte-americano investiu nos dois meses de guerra na Ucrânia. Um indicador de que os Estados Unidos estão se preparando para um conflito prolongado.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, acusou Washington e a OTAN de terem entrado em uma "guerra por procuração" na Ucrânia (a tradução imperfeita de uma "proxy war", típica da Guerra Fria) e levantou o espectro de uma terceira guerra mundial que poderia se tornar nuclear. Putin elipticamente fez o mesmo. É verdade que ele rapidamente se retratou e esclareceu que a Rússia não está em guerra com a OTAN, especialmente depois que a China, principal aliado da Rússia, se dissociou da ameaça de uma nova guerra mundial. Mas em si mesmo é um indicador do curso perigoso que os eventos podem tomar se a política dos EUA deixar Putin com uma escolha entre se render ou escalar a guerra além da Ucrânia.

Por isso, a "ala realista" conservadora da política externa norte-americana insiste que, diante da possibilidade de uma perigosa escalada, o que mais convém ao interesse nacional imperialista é abrir uma negociação com Putin para acabar com o conflito. Richard Haass, um de seus principais porta-vozes que foi funcionário dos governos Bush, afirma em um recente artigo na revista Foreign Affairs que os Estados Unidos devem sair da discussão tática (quantidade e qualidade das armas enviadas à Ucrânia) e definir sua estratégia antes de que seja muito tarde. Para isso, ele aconselha seguir as lições da guerra fria: evitar um confronto militar direto com a Rússia e aceitar resultados limitados. Em suma seria um erro definir, como afirmam os falcões, que "a mudança de regime em Moscou é uma condição para parar a guerra".

A curto prazo o governo Biden está capitalizando a guerra na Ucrânia para avançar na reconstrução da hegemonia dos EUA. Tem como alvo a Rússia para enfraquecer a China que hoje está em uma aliança desconfortável com Putin e anuncia uma "nova ordem mundial" sob a liderança dos EUA. Mas longe de uma reedição da "globalização neoliberal", estrategicamente se abriu um período de grandes convulsões econômicas, políticas, sociais e militares, das quais a guerra na Ucrânia é apenas um sintoma.

Tradução: Angelo Delazeri


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