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PANDEMIA MANDETTA GOVERNO BOLSONARO CRISE SANITÁRIA | Um paciente chamado Brasil: em livro Mandetta tenta se colocar distante de Bolsonaro e dos Golpistas

Ao lançar livro sobre o período em que assumiu o Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro, Mandetta procura se contrapor ao governo, lançando mão de um aporte estilístico que o alça como antítese a Bolsonaro como si não houvesse votado favorável ao impeachment da Ex-presidente Dilma Rousseff e não fosse parte do governo de extrema direita.

Kleiton NogueiraDoutorando em Ciências Sociais (PPGCS-UFCG)

sábado 16 de janeiro de 2021 | Edição do dia

Imagem: Fonte: https://www.acritica.net/

Lançado em 2020 pela editora Objetiva, o livro “Um paciente chamado Brasil: os bastidores da luta contra o coronavírus” de autoria do Ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta traz um panorama da sua atuação na pasta da saúde e seus desentendimentos com o presidente Jair Bolsonaro. De escrita um tanto que descritiva e até mesmo leve, o livro possui um total de quarenta capítulos, que somados dão um total de 239 páginas. Do ponto de vista literário e histórico, sem dúvida, a obra é importante, ao tratar da experiência de um Ex-ministro, que esteve na linha de frente dos momentos iniciais da pandemia de Covid-19 no Brasil.

Muitos detalhes e fatos são demonstrados ao leitor de uma forma quase de confissão, o que a todo instante me deu a sensação que estava tendo acesso a um diário, e nesse quesito o livro de fato atiça a curiosidade do leitor. Entretanto, para além do estímulo à leitura e aos fatos descritos, percebi pelo menos dois movimentos que estão intricados na obra: o primeiro é referente ao fato de Mandetta se colocar como uma forma de antítese ao governo Bolsonaro com argumentos de autoglorificação, como se ele, através de uma visão estritamente técnica, tecesse argumentos de modo a passar ao público uma imagem de que estava agindo estritamente por um viés científico, como se não soubesse o tom da política de Bolsonaro e do governo formado pelo presidente. Mesmo que discordemos das ações empreendidas pelo Ministério da Saúde, o livro traz detalhes sobre a correlação de forças dentro do governo Bolsonaro, e das dificuldades enfrentadas na pasta da saúde no tocante à tomada de decisões de cunho gerenciais.

Entretanto, o livro não trata apenas disso, e o segundo movimento que identifico é certa hipocrisia da parte de Mandetta. Nos quarenta capítulos da obra percebi que o Ex-ministro se coloca como uma espécie de salvador, ou redentor dos pecados cometidos por Bolsonaro, e até argumenta que sua nomeação ao Ministério da Saúde foi uma espécie de “surpresa”, mesmo que no período da campanha eleitoral tenha ajudado Bolsonaro no processo de formatação do plano para concorrer às disputas eleitorais em 2018. Essa impressão é materializada em passagens que, mesmo querendo dosar o estilo literário, procuram fomentar um aporte argumentativo que o coloca no contraponto ao governo, como se Bolsonaro fosse um total desconhecido, um indivíduo exterior aos circuitos da política e do baixo clero do parlamento burguês brasileiro que Mandetta atuou enquanto Deputado pelo DEM através do Estado do Mato Grosso do Sul nos períodos de 2011 a 2019.

Outro ponto que chama atenção no livro é a constante “defesa” ao Sistema Único de Saúde (SUS). Da forma como Mandetta descreve, parece que ele foi um quadro orgânico do movimento sanitário brasileiro e ferrenho defensor da saúde pública. Mas, na verdade não é isso que a práxis do Ex-ministro demonstrou quando assumiu o Ministério. Dentre as ações de ataques ao SUS realizadas destacamos as alterações promovidas na Atenção Básica à Saúde através do novo regime de financiamento pela Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019. Contrariando a ideia de universalização da cobertura do SUS essa portaria estabeleceu o Previne Brasil, mecanismo que instituiu uma lógica de Atenção Básica focalizada nos mais pobres mediante alocação de recursos e cadastramento de usuários. Essa mesma lógica de pensar o SUS não destoa de declarações anteriores de Mandetta que no Programa Roda Viva chegou à conclusão de que o SUS não deveria ser para todos, de modo a colocar que as pessoas com mais recursos financeiros não deveriam ser assistidas pelo Sistema:

É justo ou equânime uma pessoa que recebe 100 salários-mínimos ter o atendimento 100% gratuito no SUS? Quem vai ter 100% de atendimento gratuito no SUS? Eu acho que essa discussão é extremamente importante para esse Congresso. Eu vou provocá-la, vou mandar a mensagem, sim, para a gente discutir equidade e esse ponto a gente vai por o dedo (MANDETTA, 2020).

O que Mandetta não entende, ou melhor, procurou agir com desonestidade intelectual, já que conhece bem o sistema e atuou na medicina suplementar ao presidir a diretoria da Unimed na Cidade de Campo Grande, é que o SUS possui princípios basilares e fundacionais tais como a integralidade, equidade e universalidade. Querer que o SUS focalize os mais pobres seria admitir que não há necessidade de um sistema único, apenas ações residuais em saúde dando ainda mais margem para que os gastos com a medicina privada aumentem no país.
Faz-se necessário esse esclarecimento diante da atuação de Mandetta como ator político, que ao assumir o Ministério, não apagou seu histórico de reacionário.

Esse processo é importante porque devido às pressões em torno da permanência do Ex-ministro na pasta da saúde, setores da esquerda chegaram a expressar um “fica Mandetta”. O caminho que a saúde pública no Brasil estava tomando antes da Pandemia era de nítida destruição do SUS através de políticas que minam o sistema. Apesar do seu tom responsável e comedido no livro, historicamente Mandetta carrega declarações que, para aqueles que defendem de fato o SUS e uma saúde pública, são inaceitáveis. Aliás, por sinal, o seu histórico não é tão límpido assim, conforme argumemnta, enquanto Deputado Federal, estava sendo investigado por Caixa 2 e fraude algo que chega a relatar no livro como um episódio sem muitos detalhes. Além disso, chegou a atacar os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) com clara inclinação para que os serviços realizados nesses centros fossem assumidos por instituições religiosas.

Sabemos que Mandetta, ao entrar em linha de confronto com Bolsonaro e seu negacionismo, esteve fortemente alinhado com setores burgueses do aparelho estatal brasileiro, como o Supremo Tribunal Federal e o Legislativo através da figura de Rodrigo Maia, além de protagonizar como um ponto de apoio aos governadores que também dão prioridade aos interesses burgueses em detrimento da vida da classe trabalhadora. Pode-se ter a impressão que qualquer pessoa perto de Bolsonaro seria uma melhor opção, e foi isso que a mídia golpista como a Globo, por exemplo, procurou explorar na correlação de forças entre Ministério da Saúde e Bolsonaro. Ao colocar numa espécie de antítese atores como Mandetta, Dória, Governadores, Supremo Tribunal e Legislativo, a mídia tentou costurar uma forma de combate a Bolsonaro, transparecendo a ideia que tais setores se importam com os interesses pela defesa da “vida”.

Apesar de o Ex-ministro destacar no livro que tentou vários esforços de combate a pandemia, não observei nenhum de fato que poderia ir à raiz da questão. Não observamos a defesa por testes massivos, política de atendimento com dignidade à classe trabalhadora, recondução da malha produtiva da indústria brasileira que pudesse produzir insumos e produtos para o enfrentamento da Covid-19. Também não é possível observar nenhuma defesa dos interesses da classe trabalhadora, e isso fica cravado através da deformas sociais (trabalhista, previdencidária, etc) que Mandetta apoia e que estão em consonância com o que o governo Bolsonaro vem praticando e que se ligam diretamente à saúde, pois, para além de um visão estreita e biológica, a saúde é influenciada por condições de trabalho, oferta de serviços públicos, habitação, educação, enfim, elementos que o neoliberalismo senil praticado por Guedes e Bolsonaro procuram atacar.

Esses elementos obviamente não são destacados no livro, que procura de forma sistemática traçar um caminho que alça Mandetta como esclarecido. Para um bom avaliador, sem paixões exacerbadas pelo governo Bolsonaro, era nítido que embarcar no negacionismo Bolsonarista era assinar um atestado de suicídio profissional diante da comunidade médica, conduta que até Nelson Teich, ao assumir o Ministério após a saída de Mandetta também percebeu, preferindo sair do governo em menos de trinta dias, deixando assim a pasta aberta para que Pazuello, um milico, assumisse de forma interina e depois efetiva.

Nesse sentido, dentro de um escopo político, considero que o livro de Mandetta funciona como uma espécie de testamento político e profissional, para que tanto a comunidade médica, quanto a sociedade saibam que ele não concordava com o negacionismo Bolsonarista e tentou mudar o curso das ações governamentais diante da Pandemia que salga o valor de mais de 200 mil óbitos no Brasil, estando atrás apenas dos Estados Unidos (no momento de escrita dessa reflexão). Nessa seara de argumentos e autoelogios, é preciso salientar que Mandetta enquanto deputado votou a favor do processo que tirou a ex-presidenta Dilma da presidência da república, fato que coloco com total independência política diante do Partido dos Trabalhadores (PT) e de sua tática de conciliação de classes e administração “humana” do capitalismo periférico brasileiro.

Mandetta ao aceitar ser ministro da saúde de um governo nitidamente contra a classe trabalhadora também assinou um testamento de que pactuava com ideias e linhas gerais de conduta do governo. Como já mencionado em momento anterior desse texto, Bolsonaro não é esse personagem desconhecido da classe política brasileira, pelo contrário, atua politicamente a mais de duas décadas, sendo deputado Federal por um total de sete mandatos, fazendo carreirismo político para si e para afamília, que diga-se de passagem, está envolvida em casos de corrupção.

Se o método empreendido por Marx no processo investigativo nos logra a possibilidade de empreender análises sobre a materialidade das relações sociais de produção por intermédio da pesquisa e da exposição, numa dialética entre forma e conteúdo, esteticamente até compreendo os cuidados e o marketing utilizado por Mandetta para deixar a obra em termos de forma apresentável. Contudo, em termos de conteúdo é um livro que deve ser lido com atenção e senso crítico, especialmente no que diz respeito à aparência de uma narrativa que tenta transparecer a imagem de um médico técnico, que em meio à pandemia tentou vender uma imagem caricata de defensor do SUS ao vestir jaquetas com o símbolo do sistema nas coletivas.

Não é demasiado colocar que no capitalismo a saúde é encarada como mercadoria, e num país como o Brasil, que possui dimensões continentais e ainda conseguiu manter um sistema público de saúde, demonstra uma necessidade que só pode ser empreendida pela classe trabalhadora: a defesa incondicional do sistema e necessidade de autogestão através de ações transicionais. Aqui não caímos na aparência do direito burguês, mas na luta pelo mínimo de seguridade que ainda resta para a classe trabalhadora e a população pobre do país. Num cenário de desemprego violento, de pandemia e de um governo que tem dificultado a realização de decisões mínimas como o respeito ao uso do uso da máscara, o SUS tem salvado vidas no Brasil.

Apesar do tom demagógico que o autor da obra procura explorar, podemos perceber através das movimentações políticas que a saúde é uma questão política, não podendo ser vista de forma isolada ou de forma unidirecional pelo viés estritamente biológico conforme Mandetta tenta empreender no livro. Alias, essa pandemia tem demonstrado o quanto a saúde pública é uma questão política que perpassa interesses de classe.Cabe apontar que o livro lançado por Mandetta também evidencia o quanto a visão burguesa não consegue de fato realizar ações que visem o bem comum à saúde. As medidas pensadas por Mandetta ficaram circunscritas a ações paliativas e defensivas, sem um plano ativo como a realização de testes massivos e rastreamento de forma sistematizada das pessoas infectadas, e muito menos cogitou a possibilidade da malha industrial do país reconduzir suas operações para o enfrentamento da pandemia. Esse cenário se aprofunda com a entrada de Pazuello e suas pífias declarações em rede nacional tem demonstrado isso .

Dentro do mote geral do livro e tendo em vista a atual situação da crise sanitária brasileira, não poderia deixar de mencionar o caos vivenciado em Manaus. Pela segunda vez assistimos cenas trágicas do descaso para com a população e a saúde pública do município. A ausência de insumos básicos como oxigênio tem provocado óbitos e um verdadeiro cenário de pandemônio. Se para Mandetta, Jair Bolsonaro era um “desconhecido” em termos de política e ideologia, com o Brasil caminhando para as 210 mil mortes pela Covid-19, e o caso de Manaus apenas reforçam o posicionamento do presidente, que mais uma vez procurou se omitir da responsabilidade diante da vida de milhares de pessoas.

O capitalismo e a “liberdade” de mercado que tanto Bolsonaro quanto Mandetta defendem, tratam a saúde como mercadoria. Essa forma capitalista de mediar às relações sociais é didática e expressa o terror que temos enfrentado com essa pandemia. Numa época em que a própria burguesia emperra o desenvolvimento das forças produtivas, pela mesquinharia e dominação dos monopólios, a vida tem sido uma moeda de troca. Seja da produção da vacina e até em insumos básicos como seringa e oxigênio, tudo acaba virando mercadoria em detrimento da vida.

Todas essas impressões que o livro remete, são necessárias que passem elo crivo crítico, que o elemento da luta de classes esteja presente , caso contrário, passaremos a acreditar em tudo o que Mandetta falou, e sabemos da necessidade de ver as ações e atitudes dos homens para não cairmos em um campo estritamente subjetivista e idealista que leve em consideração apenas pontos de vista. E nisso, a tradição marxista no ensina a refletir sobre as ações concretas e a materilidade das reações sociais de produção no seio da sociedade capitalista.




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