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TRIBUNA ABERTA | Trabalho, institucionalismo burguês e gestão da morte em tempos de crise

domingo 25 de outubro de 2020 | Edição do dia

Começo indagando sobre o que faz a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para reduzir a miserabilidade em plena pandemia? Arrisco dizer que ela, quando muito, toma medidas para garantir a oxigenação do capitalismo. Em uma das matérias mais recentes publicadas no site da OIT, informa-se que o diretor-geral da Organização enviou declarações às reuniões anuais do FMI e do Banco Mundial alertando sobre os altos níveis de pobreza e desigualdade causados pela crise da COVID-19. “Destacando a necessidade urgente de proteção social para todas as pessoas, ele pediu mudanças estruturais profundas para reconstruir melhor e mais rápido”. Parece revolucionário, mas o que se propõe aqui é que se tome medidas para que o sistema não colapse.

Como institucionalismo típico da sociedade burguesa, a Organização nunca pretendeu a universalização da proteção social para além do discurso. Seu surgimento já o denuncia: surgiu em meio à Revolução Russa, “Um dedo contendo o dilúvio”, como aponta Gustavo Seferian. Ao se proclamar como a instituição que regulamenta o Direito Internacional do Trabalho fica evidente o seu intuito de freio às insurreições, surgida exatamente para que o mundo capitalista conseguisse gerenciar as crises por meio do Direito, tal como sempre fez. Sua posterior absorção pela ONU só reforça esta ideia.

Há uma tentativa de apagar o legado internacionalista que verdadeiramente se colocou em prol das trabalhadoras e trabalhadores: As Internacionais, com destaque para a Primeira (Associação Internacional dos Trabalhadores) e a quarta (a qual adiro). Ali sim estão assentadas bases para movimentos revolucionários de resistência à exploração humana. As Internacionais não se propuseram a resolver os problemas surgidos no capitalismo; partiram da constatação de que o capitalismo é o problema.

Para além de uma crítica geral do viés contrarrevolucionário da OIT, situações específicas possibilitam concluir que se trata de uma instituição tipicamente burguesa de contornos jurídicos. Tentando buscar na materialidade das relações os efeitos desastrosos de uma hegemonia burguesa na condução do mundo do trabalho, aponta-se aqui o trabalho doméstico em sua vertente mais precária – a diarista doméstica. O resultado da ausência de medidas – acompanhada de belos discursos que destacam a necessidade de proteção – é o verdadeiro extermínio de mulheres negras e pobres em um contexto de pandemia.

Se em algum momento de seu extenso rol normativo a Organização inseriu o trabalho doméstico como digno de proteção, não se tratou de ato de benevolência. As lutas sociais a levaram a fazê-lo. Parafraseando Marx, é possível dizer que a OIT cristaliza as lutas que se passam no campo social, reconhece no plano internacional as lutas sociais, mas seu imobilismo/ineficiência punitiva não é acidental. As lutas sociais ali consolidadas de países nos quais grande parte das trabalhadoras são domésticas (sejam donas de casa, empregadas domésticas ou diaristas), tanto pressionaram que em algum momento a pauta chegou à OIT.

O tema vem à tona no contexto da pandemia. Textos são produzidos, mas em grande medida carentes de uma análise verdadeiramente crítica, que visualize a regulamentação formal e as conquistas como um passo importante, mas não como finalidade da luta de trabalhadoras e trabalhadores. Eu mesma durante anos de estudos já caí na armadilha de tentar construir um arcabouço teórico defendendo que a exclusão jurídica das trabalhadoras diaristas no Brasil não encontra respaldo nas regulamentações da OIT de que o país é signatário. E pensei que isso poderia ser resolvido pela incorporação da norma correspondente e sua aplicação. Inócuo, para dizer o mínimo. Revoluções não se fazem por meio de leis, como dizia Marx n’O Capital.

Quando a construção social ocorre com a completa desumanização de parcela da população, é fundamental visualizar o sistema socioeconômico em que vivemos como gerador e mantenedor da valoração de vidas. Não é o Brasil. É um sistema global de funcionamento no qual divisões do trabalho são feitas em nível internacional pautadas em uma ideologia que estabelece quais vidas valem mais. Constrói-se uma narrativa oficial com invisibilização e silenciamento de categorias inteiras, como se inexistentes ou irrelevantes, como afirma Flávia Máximo. Em um contexto de pandemia, isso justifica que trabalhadoras e trabalhadores tenham que escolher entre morrer pelo vírus ou morrer (de fome) pelo capitalismo. Não se trata apenas da gestão da pobreza. O que a crise escancara é a gestão da vida e da morte como política do sistema.




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