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Esse artigo é síntese inicial de estudos feitos por seu autor sobre tema fundamental para a compreensão da concepção materialista dialética da história. Será apresentado na forma de perguntas e respostas para facilitar a apreensão.

quarta-feira 12 de abril de 2017 | Edição do dia

1-O que é ideologia?

Ideologia é o conjunto de símbolos, signos, conceitos, que articulados de forma difusa mas relativamente coerente medeiam a relação consciente de um determinado grupo social com seu ambiente histórico/natural. Toda ideologia é uma determinada forma histórica dessa mediação entre consciência e ambiente, sendo determinada, em última instância, pelas formas concretas de relação metabólica entre a sociedade e a natureza.

A consciência do ser humano em relação a seu ambiente social e natural não é algo dado de forma imediata e espontânea, mas só é possível através da mediação de conceitos, signos, símbolos, que são expressão e síntese ideal das relações reais e concretas desses seres humanos com seu entorno. Assim, a ideologia, como sistema de representação do ser humano em relação a sua realidade, é parte fundamental da relação humana com seu ambiente, posto ser essencial à apreensão e ação consciente, portanto especificamente humana, da realidade que nos cerca.

A ideologia não é mero véu, como em sua concepção vulgarizada, que cobre a verdadeira objetividade, mas é mediação essencial entre a consciência e a realidade exterior. A relação entre a consciência e a realidade circundante não é uma relação imediata entre nosso cérebro e essa realidade, mas é sempre e necessariamente essa relação mediada por um conjunto de signos, símbolos, conceitos, que nos permitem compreender e apreender essa realidade objetiva a partir de um sistema de significações, de uma ideologia.

2-Toda construção teórica é ideologia?

Não. Ideologia é o conjunto de signos, símbolos e conceitos que medeiam a relação de todo um grupo ou classe social com sua realidade e ambiente histórico/natural. Nem toda construção ou formulação teórica feita por um pensador isolado chega a conseguir se incorporar a ação de grandes grupos e massas humanas; muito pelo contrário, a maioria dos sistemas de ideias não consegue ultrapassar o pequeno circulo de seus formuladores e seguidores diretos, não se constituindo assim como efetivas ideologias.

Um determinado sistema teórico só se torna uma efetiva ideologia, uma força social real e objetiva, quando ultrapassa esse pequeno círculo de seus formuladores iniciais e se constitui como elemento vivificador e mediador da relação de inteiros grupos ou classes sociais com seu ambiente.

3-Ideologia é igual a falsa consciência?

Não. Uma visão vulgar do marxismo tenta apresentar a ideologia como falsa consciência, enquanto existiriam formas não ideológicas, pretensamente “verdadeiras”, de apreensão da realidade social e natural. Toda ideologia, inclusive o marxismo, como sua forma mais desenvolvida e avançada, é expressão historicamente determinada da relação concreta entre determinados grupos e classes sociais e seu ambiente. Portanto, nenhuma sistema de representações e conceitos pode reivindicar para si a pretensão de se colocar como uma verdade absoluta, para além das determinações históricas concretas, podendo julgar como que de fora da história as demais formas ideológicas, numa relação entre uma pretensa ciência objetiva a-histórica em relação a formas ideológicas que seriam mera “falsa consciência”.

4-Do colocado anteriormente decorre que há um relativismo histórico absoluto entre os diferentes sistemas ideológicos, ou seja, que não é possível apresentar determinados sistemas ideológicos como mais desenvolvidos em situações históricas concretas?

Não. Do reconhecimento de que todo sistema de ideias e conceitos é historicamente determinado e que nenhum pode reivindicar uma pretensa verdade absoluta (evidentemente inexistente) não decorre de forma alguma que todos os sistemas ideológicos tem o mesmo status de verdade, assim digamos, a mesma capacidade de ser expressão subjetiva das necessidades objetivas dos seres humanos associados nas diferentes épocas da história.

Em cada época histórica específica, em cada situação histórica concreta, um determinado sistema de símbolos e signos, um determinado sistema ideológico, se coloca objetivamente como aquele mais capaz de ser expressão subjetiva das necessidades reais e concretas dos seres humanos associados. O critério aqui para a maior objetividade, para a maior verdade (essa entendida sempre como verdade relativa), de um determinado sistema ideológico é sua capacidade prática de permitir aos seres humanos associados de se apropriar de forma consciente de seu ambiente social e natural.

Assim, uma determinada ideologia, um determinado sistema de símbolos e signos, se mostra mais verdadeiro, mais objetivo e efetivo (sempre de forma relativa e histórica) não mais através de critérios circulares auto-referentes, mas através de sua relação com a práxis efetiva por meio da qual os seres humanos associados se apropriam de forma consciente de seu ambiente.

5-Qual a relação entre verdade e ideologia?

Do reconhecimento de que não existem e nunca poderão existir verdades absolutas e a-históricas de forma alguma decorre que todas as ideologias tem o mesmo status, a mesma força social, em uma época histórica determinada. Um determinado sistema de ideias, uma determinada ideologia, pode sim ser mais verdadeira que outras em situações históricas concretas, desde que entendamos por verdade não algo imutável e absoluto, mas a relação entre um determinado sistema de ideias e a realidade objetiva que permita a apreensão o mais profunda e concretamente possível dessa realidade.

Ou seja, uma ideologia é tão mais verdadeira, em uma situação histórica concreta, quanto mais ela é capaz de ser o elemento mediador que permite a apropriação consciente o mais profunda e eficaz possível do ambiente, na situação histórica concreta em que esta situada.

Novamente, o critério para a maior verdade de um determinado sistema ideológico é sua capacidade de ser o mediador mais objetivo e profundo possível naquela determinada realidade histórica entre os seres humanos associados e seu ambiente.

6-Qual a relação entre ideologia e luta de classes?

Numa sociedade dividida em classes com interesses antagônicos a construção de um sistema ideológico que represente os interesses de uma classe particular é elemento fundamental da luta por hegemonia social dessa determinada classe.

A possibilidade de construir, expressar e difundir uma visão de mundo particular é chave para qualquer classe social que vise exercer poder político, econômico e social numa formação social determinada.

Nesse sentido, parte essencial da luta entre as classes antagônicas é a luta ideológica, tanto no sentido de afirmar a maior potência e capacidade de o sistema ideológico que representa essa

classe determinada de apreender o ambiente e exercer hegemonia e ser organizadora das relações sociais, quanto no sentido da luta pela difusão de determinadas ideologias.

As classes dominantes em geral buscam suprimir e reprimir a produção ideológica independente das classes subalternas, como forma de reprimir as possibilidades de sua organização independente. É essencial, assim, as classes subalternas em sua luta por emancipação forjar e construir uma ideologia sua independente, que organize e difunda sua visão de mundo particular e que seja expressão ideal de sua independência objetiva e subjetiva em relação a classe dominante.

7-O marxismo é portanto também uma ideologia?

Sim. Uma visão vulgarizada e superficial do marxismo tenta apresentá-lo como uma ciência (entendendo também superficialmente a ciência como algo contraposto a ideologia) exterior e superior as outras formas de representação da realidade que seriam mera “ideologia”, essa entendida de forma também vulgarizada como falsa consciência. O marxismo é certamente uma ciência, mas isso em nada exclui seu caráter ideológico.

O marxismo é a ideologia do proletariado revolucionário, o conjunto de signos, símbolos, conceitos, que medeiam a relação dessa classe social com seu ambiente a partir de uma perspectiva transformadora, revolucionária. O marxismo é ideologia do proletariado pois é expressão conceitual, consciente, das necessidades objetivas do proletariado em sua relação com sua realidade histórica determinada.

8-O exposto anteriormente exclui o fato de o marxismo ser superior as demais ideologias existentes dentro das ciências sociais?

De forma alguma. A superioridade, a verdade do marxismo em relação as demais ideologias existentes na ciência social está ligada ao fato de ser ele expressão consciente das necessidades objetivas do proletariado revolucionário. Por sua posição objetiva, concreta, na sociedade capitalista, é o proletariado a classe capaz de potencialmente organizar de forma consciente e planejada as forças produtivas que se erigiram dentro do modo de produção capitalista, que sob o domínio da burguesia se desenvolvem de forma caótica e anárquica, e por isso mesmo em muitos casos de forma destrutiva.

Por sua posição objetiva na sociedade capitalista o proletariado apreende essa de forma consciente como realidade histórica, mutável, perene, a partir de um ponto de vista totalizante, sem a necessidade de construir mitos ou preconceitos, tanto sobre si mesmo quanto sobre a sociedade de conjunto e cada uma das outras classes e grupos que a compõe. A burguesia, ao contrário,por sua posição objetiva na sociedade capitalista, tem que deformar, de forma consciente ou não, sua apreensão consciente da sociedade que domina, para justificar e defender sua dominação. Produz assim uma visão reificada dessa realidade.

É imperioso para a burguesia construir essa visão reificada da sociedade em que domina para criar os laços e o entusiasmo entre seus próprios membros com a sociedade em que ocupa essa classe a posição dominante. Se entendessem de forma clara e objetiva os limites históricos e as contradições concretas da sociedade que constroem a sua imagem e semelhança seria impossível aos burgueses associados como classe construírem os laços sociais e entusiasmo capaz de vivificar e auto-legitimar sua ação social.

9-O marxismo, portanto, também será superado historicamente?

Certamente. Forma ideológica que é o marxismo está ligado inerentemente ao momento e a classe social do qual é expressão. A superação do capitalismo e consequentemente também do proletariado e a construção de uma sociedade efetivamente humana, em que não existam mais divisões de classe, irá representar para o marxismo como ideologia seu anacronismo como forma necessária da mediação consciente com a realidade.

As formas de consciência que irão se erigir numa sociedade comunista certamente terão o marxismo como degrau, como base, para sua construção, mas lhe superarão também certamente pela profundidade e extensão de sua capacidade de apreensão e compreensão da realidade.

10-A ideologia pode em algum sentido ser falsa consciência?

Sim. Em dois sentidos podem determinados sistemas ideológicos se constituírem como efetivamente falsas formas de consciência sobre a realidade:

a)Quando a ideologia que expressa os interesses de uma classe que anteriormente ocupava um papel progressivo na história e que passa cada vez mais a representar um papel de freio para o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento social de conjunto se choca com a ideologia que representa os interesses de uma nova classe revolucionária e progressiva. Nesse caso a antiga ideologia dominante se constitui cada vez mais em uma forma falsa de consciência da realidade pois tem de forma cada vez mais marcada, consciente ou inconscientemente, que deformar a realidade que é explicada de forma mais profunda, completa e eficaz pela ideologia que representa os interesses da classe revolucionária, aquela que tem o futuro em suas mãos e que representa as possibilidades objetivas de desenvolvimento dos seres humanos associados.

b)As classes dominantes, no exercício de seu poder político e social, em geral produzem uma cisão, uma divisão, entre as formas ideológicas que constroem. Existe uma ideologia que a classe dominante constrói para si mesma, que é a forma como os dominantes eles mesmo entendem e apreendem a realidade que os cerca e uma ideologia, marcadamente distinta, que transmitem às classes subalternas, que seja um sustentáculo de sua dominação.

Como elemento fundamental que é a ideologia para a compreensão e portanto para a ação dos grupos e classes sociais sobre sua realidade é impossível para a classe dominante permitir que as classes subalternas construam sua própria ideologia; antes é necessário aos dominantes que reprimam e suprimam a produção autóctone de ideologia pelos dominados. No entanto, seria impossível mesmo a dominação sem que existisse uma ideologia que permeasse e organizasse as classes subalternas, posto a essencialidade da ideologia para a ação especificamente humana.

Assim, as classes dominantes constroem ideologias que permitam a organização das classes subalternas a partir de seu ponto de vista e de suas necessidades, ideologias que produzam e reproduzam a submissão e o consentimento ativo, por parte dos dominados, à dominação. Essa ideologia que a classe dominante transmite e impõe as classes oprimidas e exploradas é falsa consciência na mediada em que é ativa e conscientemente produzida pelos dominantes como forma de manipular e controlar as classes subalternas, como forma efetiva de engodo e engano que permita a continuidade com o mínimo de fricções possíveis da dominação e exploração.

11- Qual a relação entre ideologia e produção material da vida?

A ideologia é parte fundamental da apropriação e do metabolismo entre os seres humanos associados e seu ambiente natural pois não existe ação especificamente humana que não seja mediada por um conjunto de ideias, símbolos e signos que permitem a compreensão e organização dessa ação. A reprodução de formas ideológicas adaptadas as formas concretas através dos quais os seres humanos organizam suas relações sociais para permitir a apropriação de seu ambiente natural é essência para a possibilidade da reprodução dessa própria apropriação.

As formas ideológicas devem legitimar, justificar, entusiasmar os seres humanos que se associam para que esses reproduzam as formas concretas de relações sociais que permitem que eles se apropriem de seu ambiente, devem ser elemento organizador dessas relações. Devem também permitir a compreensão desse ambiente natural, de forma ligada e adaptada aos meios técnicos e forças produtivas que permitam uma apropriação efetiva dos seres humanos desse ambiente.

Dessa forma, a reprodução da ideologia é parte fundamental da produção das condições de apropriação do ambiente natural e portanto da reprodução das forças produtivas e da riqueza material.

12-Quais são os meios de produção e difusão de ideologia?

A ideologia, como um amplo sistema de signos, símbolos e conceitos articulados que organizam um grupo ou classe social não se produz ou difunde de forma espontânea. Cada sociedade historicamente determinada constrói os instrumentos e organismos de produção e difusão de ideologia que melhor lhes correspondem, a partir de suas necessidades concretas de reprodução.

Escolas, igrejas, partidos, imprensa, etc, são todos exemplos, dentro muitos outros possíveis, de organismos e instituições que produzem e reproduzem, difundem, ideologia dentro de uma determinada formação social.

É essencial para todos os grupos que lutam para construir sua hegemonia sobre a sociedade construir as instituições e organismos que permitam a produção e difusão de ideologia a partir de seus interesses.

13- A ciência é ideologia?

Sim. Só numa visão vulgar a ciência pode ser entendida como algo contraposto a ideologia, como forma “verdadeira” de relação consciente com a realidade natural em contraposição a uma falsidade absoluta das formas míticas de relação com a natureza, por exemplo. A ciência é forma ideológica mais geral de relação dos seres humanos com seu ambiente natural e social em uma época determinada do desenvolvimento histórico. É a forma que medeia as relações conscientes desses seres humanos com seu ambiente na modernidade, a mais adaptada e capaz de ser elemento ativo à reprodução dessas condições determinadas.

Da mesma maneira, as formas míticas de apreensão do ambiente eram as formas mais adaptadas a reprodução das relações sociais em momentos de menor desenvolvimento das forças produtivas. Assim, nenhuma das duas formas de ideologia, ciência ou mito, é a verdadeira em si, como absoluto, mas formas mais concretas e adaptadas de relação subjetiva dos seres humanos com seu ambiente dentro de formações sociais (com suas forças produtivas e relações de produção) concretas.

Isso em nada exclui que a ciência como forma ideológica seja historicamente mais desenvolvida que o mito, posto sua maior capacidade de apreender e ser base da apropriação do ambiente pelo ser humano, mas exclui uma visão da ciência como verdade absoluta em relação ao mito, ou seja, uma contraposição entre ciência como verdade em si e o mito como mera ideologia (ideologia entendida aqui como falsa consciência). Era também o mito verdade dentro de relações concretas, a partir de um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas, dentro do qual ele era a forma ideológica mais adaptada.

E assim como o mito a ciência também será superada no futuro por formas mais desenvolvidas de ideologia, mais adaptadas as futuras relações sociais e suas forças produtivas mais desenvolvidas.

14- A arte é ideologia?

Sim. Também os sentimentos e a sensibilidade humanos não são coisas naturais e que se reproduzem de forma espontânea. A arte é o campo da produção e reprodução da sensibilidade e sentimentos humanos, com suas próprias formas e “leis” de produção e reprodução.




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