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STALINISMO DECADENTE | Stalinismo na Rússia: de coveiro da revolução a aliado da Igreja Ortodoxa

Gennady Zuyganov, presidente do Partido Comunista da Rússia, declarou a adesão de sua agrupação política à Igreja Ortodoxa Russa, instituição secular que foi um pilar do regime tzarista que explorou e oprimiu camponeses e trabalhadores por séculos, e foi inimiga à morte da revolução bolchevique de 1917. “É um dever sagrado que os Comunistas e a Igreja Ortodoxa se unam”, disse ele.

quinta-feira 15 de dezembro de 2016 | Edição do dia

Foto: Maxim Zmeyev/Reuters

Recentemente, Gilson Dantas em dois excelentes artigos no Esquerda Diário retomou um pouco do que representou a tragédia histórica do stalinismo e as reflexões de Trotski, pautadas em uma apreciação marxista dos fatos, para elucidar como se deu o triunfo de Stalin e sua burocracia sobre a poderosa revolução de outubro e os sovietes construídos pelos trabalhadores. Retomaremos brevemente aqui algumas questões sobre isso.

A casta burocrática que se consolidou ao redor de Stalin aproveitou o isolamento da revolução internacional – com a derrota de processos revolucionários fundamentais como as janelas revolucionárias alemãs em 1919 e 1924 e a revolução chinesa em 1927-29 –, o esgotamento das massas, o aniquilamento da vanguarda da classe operária na primeira guerra mundial e na guerra civil revolucionária, e a miséria material da Rússia para se consolidar nos postos de mando do Estado e do partido, expropriando o poder político dos sovietes e da base bolchevique e dos trabalhadores. Tornaram-se verdadeiros “gerentes da miséria”, em que seus privilégios materiais eram os que vinham à frente.

Contudo, as bases materiais fundamentais da revolução – o aniquilamento da propriedade privada da burguesia – se mantinha intacto, o que significava muito para as condições de vida das massas. A economia soviética planificada – ainda que pela burocracia e não pelos trabalhadores – cresceu de forma impressionante, e em poucas décadas o país saltou de uma economia completamente arruinada para ser a única potência capaz de competir com a hegemonia dos EUA. Retrocessos adotados em caráter de exceção pelas terríveis condições impostas – como a Nova Política Econômica (NEP), em que se abria janela para iniciativas de economia privada – ou a proibição de partidos opositores e frações internas no partido bolchevique, tornaram-se uma base fértil para a burocracia e viraram regra.

Uma vez consolidada no poder, a burocracia se manteve com mão de ferro, mandando aos gulags siberianos (campos de trabalho forçado) os trotskistas e todos os opositores do regime burocrático. Os processos de Moscou fuzilaram dezenas de milhares e criaram processos fraudulentos baseados em falsificações. O nome de Trotski, principal dirigente da revolução bolchevique e inimigo jurado da burocracia, foi coberto de todo tipo de calúnias e falsificações. Essas circunstâncias foram maravilhosas para a burguesia mundial, que até hoje se beneficia enormemente da associação que faz entre o partido de Lenin e Trotski, o regime soviético, e a burocratização e os assassinatos de Stalin.

Contudo, essa associação é falta, e só uma análise materialista e dialética – marxista –, tal como a que faz Trotski em “A revolução traída”, que pode demonstrar como o Partido Bolchevique pôde se transformar em seu contrário: um imenso aparato burocrático contrarrevolucionário que ajudou a afogar em sangue os principais processos revolucionários do século XX.

O papel da Igreja Ortodoxa Russa ao lado do tzarismo

Tzar Nicolau II, ungido pelo "direito divino de governar"

O regime autocrático dos tzares russos era responsável por um nível de exploração e opressão dos mais brutais que existiam na Europa em seu momento histórico, ao nível de que apenas após 1861 os camponeses foram – de uma forma absolutamente precária, evidentemente – emancipados, ou seja, deixaram de ser vistos como propriedade dos latifundiários. Como, é claro, tais mudanças não ocorriam de maneira particularmente eficaz num país de proporções continentais e tradições que se arrastavam como um enorme fardo atrás da evolução histórica, ainda na época da revolução era relativamente comum encontrar localidades rurais onde os servos chegavam a ser marcados com ferro em brasa, como “propriedade” de seus senhores. O livro de Nikolai Gogol “Almas Mortas” é um interessante retrato de época a respeito de como se enxergavam os camponeses.

A Família Romanov, derrubada pela revolução, foi canonizada pela Igreja Ortodoxa

A instituição da Igreja Ortodoxa, parte inseparável do Estado tzarista, cumpria um papel determinante para a manutenção ideológica do regime. Em primeiro lugar, ela era quem conferia o “direito divino” de governo ao tzar. As tradições da Igreja garantiam inúmeros privilégios aos “popes” (equivalentes aos padres da Igreja Católica) nas comunidades rurais, que cobravam não apenas o dízimo, mas taxas altíssimas para casamentos, batismos, funerais e qualquer cerimônia religiosa – que eram vistas como obrigatórias. Pregavam a submissão total e atuavam decididamente contra os elementos revolucionários desde os primórdios do século XIX, quando a tradição da “intelligentsia” populista inaugurou seu lema de “ir ao povo” se mesclando com os camponeses nas aldeias e alentando o espírito da rebeldia.

Pope Georgi Gapon, líder da procissão do domingo sangrento e espião do Tzar

Mesmo quando a revolta popular já era latente, a Igreja Ortodoxa desempenhou um papel fundamental de contenção, como no episódio do Domingo Sangrento de 1905, quando toda a insatisfação popular foi canalizada pelo Pope George Gapon, que organizou uma procissão pacífica, entoando hinos religiosos, que foi às portas do palácio de Nicolau II para entregar uma petição pedindo que o “paizinho” (como era chamado carinhosamente o tzar) resolvesse os problemas do povo. A recepção do “paizinho” foi calorosa: as tropas abriram fogo contra a multidão, deixando centenas de mortos e feridos. Posteriormente, foi revelado que Gapon era um colaborador da Okhrana, a polícia secreta tzarista que atuava contra os movimentos de oposição.

Mesmo um nobre que pregava um questionamento pacífico das injustiças e a adesão aos valores cristãos, como Liev Tostoi, o grande escritor russo, foi excomungado por seu "pensamento subversivo".

Os bolcheviques frente à Igreja Ortodoxa e a religiosidade, e a proibição burocrática de Stalin

Para aprofundar toda a extensão do papel reacionário da Igreja Ortodoxa, seria necessário um verdadeiro tratado. Contudo, basta dizer que o que os bolcheviques fizeram ao tomar o poder foi a radical separação da Igreja e Estado, acabando com os privilégios materiais dos altos membros da Igreja e tornando a fé uma questão de opção privada. O trabalho dos bolcheviques jamais foi o de reprimir as manifestações religiosas do povo, mas sim o de elevar seu nível cultural e apostar na “morte natural” da religião. A questões como essa, Trotski se dedicou, condensando reflexões em escritos como “questões do modo de vida”, em que propunha de modo assertivo formas que o estado soviético deveria adotar para preencher o espaço cultural e ideológico que os rituais ortodoxos ocupavam na vida do povo, e particularmente do campesinato.

O stalinismo, pelo contrário, teve uma postura de repressão brutal a qualquer expressão religiosa, tal como fez com seus opositores. Mas tratava-se aqui de preencher um vazio que não era capaz de suprir com ideias, por meio de violência burocrática. Por décadas, enquanto atuava como agente da restauração capitalista na Rússia, o partido manteve essa postura ideológica oficial.

A explosão da religiosidade russa após a restauração capitalista foi como um “retorno do reprimido”, para usar um termo psicanalítico. Submetida às mais duras provações sob o regime burocrático, a religiosidade clandestina encontrou um espaço de grande importância na vida secreta do povo russo. Na maré ideológica reacionária que varreu o país com o discurso do “capitalismo triunfante”, a Igreja Ortodoxa russa, saindo da ilegalidade, retomou o papel de uma instituição sólida e extremamente reacionária, fazendo parte do cimento ideológico de um regime autoritário e repressor que proíbe as paradas LGBT, os abortos (que haviam sido legalizados após a revolução e proibidos novamente por Stalin em 1936), e retrocedeu décadas em termos de moralidade. Sob Putin, grupos neonazistas proliferaram, e a LGBTfobia, machismo e a xenofobia ganharam uma assombrosa projeção.

O stalinismo decadente mantém parte de seu prestígio

Mas, como muitas pesquisas apontaram, as massas sentiram duramente o baque da restauração capitalista, com o desemprego, o desmantelamento dos serviços públicos e das condições de vida das massas. Por isso, a maioria da população que ainda se lembra da finada União Soviética, é nostálgica dos tempos em que a propriedade privada era uma exceção.

O Partido Comunista – contraditoriamente, já que foi o pivô da restauração capitalista – é quem mais capitaliza esse sentimento, e por isso ainda tem enorme peso político, fruto do prestígio de aparecer para amplas massas como o “porta-voz” das extintas conquistas da revolução. Zyuganov, atual presidente do partido, concorreu à presidência quatro vezes, sempre chegando em segundo lugar, e o partido possui um décimo das cadeiras do parlamento (a segunda maior bancada) e 155.000 fiiliados. Todo o seu prestígio foi utilizado para “restaurar” a imagem de Stalin, que havia oficialmente sido denunciada por Kruschev em 1956 (ainda que isso tenha sido uma manobra para “lavar a cara” da burocracia), e para apoiar medidas reacionárias do governo de Putin, como o bombardeio da Síria, a anexação da Criméia e cortes drásticos em serviços públicos e salários.

Conversão à ortodoxia: mais um giro no parafuso do reacionarismo e do abandono do comunismo

Frente a sua história de décadas de traição, assassinatos e censuras, a conversão à Igreja Ortodoxa anunciada por Zyuganov empalidece em sua importância histórica. Mas é simbólica de quão distante está essa caricatura de partido da heroica agrupação da vanguarda da classe operária que “tomou o céu de assalto” em 1917.

Em dezembro de 2015, Zyuganov disse a um jornal: “Se Jesus Cristo, Mohammed e Buda não tivessem sido profetas, eles teriam sido 100% comunistas”. Já Vadim Potensky, governador da região de Oriol e membro do Partido, disse que “O ateísmo destruiu a União Soviética”. E, em fevereiro, Zyuganov disse ao Patriarca (espécie de Papa da Igreja Ortodoxa Russa) que “um dos erros mais sérios de meus predecessores foi que eles abandonaram a Igreja”.

Vladimir Putin na Igreja Ortodoxa Russa

O que explica essa conversão? Hoje a base do Partido Comunista é composta basicamente de pessoas saudosas da União Soviética: a medida de idade de um membro é de 56 anos. É também a base mais consistente da Igreja. O partido, já despojado de qualquer vestígio ideológico do marxismo, não vê problemas em fazer esse “pequeno agrado” para tentar ampliar seu eleitorado.

Esse triste fim é o resultado da brusca deturpação do marxismo e do leninismo que representou o stalinismo. É um curso de decadência para uma corrente político-ideológica marcada pela traição e o sangue dos trabalhadores.




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