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UNIVERSIDADES | Sobre as bancas de heteroidentificação nas universidades: defender as cotas e o direito à autodeclaração

domingo 21 de março de 2021 | Edição do dia

imagem: reprodução/facebook

Em um país de maioria negra como o Brasil, onde mais de 50% da população é autodeclarada preta e parda, deveria ser normal que nos postos de trabalho, nas universidades e centros de pesquisa, essa proporção seguisse. Mas não é assim, nosso país é marcado por séculos de escravidão que desenvolveram um racismo estrutural que é parte do Estado e suas instituições. Racismo que se aprofunda também com governos como de Bolsonaro, que odeia os negros e atua para o fortalecimento de ideologias racistas, ataques, ajustes e reformas que atingem principalmente os trabalhadores negros.

Somos a maioria nos postos de trabalho mais precários, somos a grande maioria que morre por covid, a minoria dos vacinados, e éramos uma ínfima parcela dos universitários. As cotas raciais e sociais, conquistadas com muita luta, foram fundamentais para alterar parcialmente um quadro racista: negros em minorias nas salas de aula e a ampla maioria nos trabalhos terceirizados nas universidades públicas.

Por isso, nós da Faísca e Quilombo Vermelho sempre lutamos por cotas étnico-raciais em todo o país, que fossem no mínimo proporcional ao número de negros por estado, e atuamos ativamente na conquista das cotas na USP e na UNICAMP, universidades racistas, elitistas e atrasadas no debate das cotas, sempre defendendo conjuntamente a luta rumo ao fim do vestibular e a estatização das universidades privadas, já que o vestibular segue impedindo jovens negros e filhos de trabalhadores de ingressarem nas universidades públicas e assim se endividarem nas universidades privadas.

Após essa importante conquista das cotas, algumas universidades e também instituições estatais, passaram a adotar bancas de heteroidentificação. Essas bancas têm a função de aferir se uma determinada pessoa que entrou no processo seletivo pelas cotas é realmente preta, parda ou indígena. Ou seja, essas instituições, com o argumento do combate às fraudes, passaram a ter o direito de certificar se uma pessoa é negra, questionando a identidade racial dos cotistas e criando uma nova barreira para o acesso de jovens negros ao ensino superior.

Instituições que são geridas por burocracias universitárias que atuam para manter a universidade elitista e excludente, que se negaram por anos a adotar as cotas, se negam a ter programas de permanência estudantil de acordo com a demanda e seguem explorando e oprimindo mulheres negras terceirizadas que trabalham com baixíssimos salários e sem condições adequadas, levando a casos como a recente morte das trabalhadoras Maria Lurdes e Edvânia na Unicamp.

Para defender as cotas de possíveis fraudes, setores do movimento negro nacionalmente também passaram a reivindicar as bancas de heteroidentificação e a serem parte delas e aqui queremos abrir um debate sobre isso. Nós também queremos defender as cotas contra as fraudes, essa é uma conquista dos negros e negras e assim deve seguir. Mas quem pode passar por cima da autodeclaração e definir quem é negro ou não?

Nosso país é marcado pelo chamado mito da democracia racial, uma ideologia que teve como objetivo suavizar o nefasto papel da escravidão e suas consequências, buscando maquiar a realidade de que a população brasileira é majoritariamente negra e separar negros de pele mais clara dos negros de pele mais escura. O direito a autodeclaração portanto se converteu em uma forma de negras e negros reivindicarem sua identidade sem passar pelo crivo do Estado racista e assim poderem afirmar hoje que a população brasileira é de pelo menos 54% negra, unificando o que se classificou como preto e pardo.

Portanto, quando negros e negras se autodeclaram como tal, cumprem um papel de combater essa ideologia, mostrando a realidade de nosso país. É um direito que é muito mais do que um papel assinado, é a expressão de anos de enfrentamento com ideologias racistas, com a violência do Estado e com o racismo das relações. Nos últimos 8 anos, segundo o IBGE, aumentou em mais de 30% o número de negros que passaram a se autodeclarar, é uma expressão da luta antirracista que nos faz ter orgulho da nossa identidade.

Portanto, a banca de heteroidentificação ao ter o poder de definir quem pode ocupar a vaga reservada para cotistas, e portanto, quem é negro ou não, fere esse direito fundamental da autodeclaração, e com critérios subjetivos muitas vezes negam negros de pele mais clara, considerados ‘pardos’, do direito às cotas. Isso no país em que dos 54% que se autodeclaram negros, 45% se autodeclaram pardos. Segundo dados divulgados pela professora e pesquisadora Bianca Santana, em 2017 enquanto o rendimento de um trabalhador branco era de R$ 2.660, dos pretos era R$ 1.461 e dos pardos era R$ 1.480. Dentre os jovens assassinados, entre 15 e 29 anos, um a cada 23 minutos são negros, a maior parte é de pardos. Durante a pandemia, o número de mortes por doenças respiratórias cresceu 24,5% entre brancos; 70,2% entre pretos e 72,8% entre pardos.

São dados escandalosos que mostram que a cor parda também está condicionada a ganhar menos, a morrer nas mãos das polícias ou por covid, mas segundo as bancas de heteroidentificação, não está habilitada para ter sua autodeclaração respeitada e adentrar as portas da universidade pelas cotas.

Na Unicamp, a situação é ainda mais difícil diante da pandemia, já que as bancas de heteroidentificação acontecem de forma remota, onde a luz, a qualidade da câmera e dos programas utilizados para a conexão, são uma preocupação dos estudantes negros. Só neste ano sabemos de dezenas de jovens que foram negados pela banca e dentre esses há relatos de jovens que não são fraudadores, são negros de pele clara que tiveram sua identidade negada e passaram a sentir vergonha de dizer que são negros. No Brasil do Bolsonaro, onde chicoteiam negros em mercados, todos nós sabemos o duro processo de se reconhecer negros e precisamos batalhar para que os negros e negras tenham orgulho de reivindicar sua identidade e não medo.

Diante da pandemia, que no nosso país significa uma verdadeira catástrofe sanitária gerida por Bolsonaro e governadores, é ainda mais excludente avaliar a identidade racial de alguém à distância. Portanto, acreditamos que seja urgente a abertura de mais recursos para que esses estudantes possam recorrer à decisão das bancas. No ano em que o Brasil bate recorde de mortos e desempregados, esses estudantes tiveram que passar por um vestibular ainda mais excludente, e agora não podem ter suas vagas negadas e sua identidade construída há anos questionada dessa forma, sem ao menos ter mais tempo para recorrer da decisão da banca.

Acreditamos que esse debate sobre a defesa das cotas deveria ser aberto a todo movimento negro e estudantil da universidade para que possamos lutar por mais vagas, ampliando as cotas e enfrentando o vestibular, já que os jovens negros e pobres seguem sendo excluídos do acesso a universidade pública, e esse é um fator determinante para que hajam fraudes. Nesse processo, poderíamos fortalecer os espaços de organização do movimento negro e estudantil na universidade, ampliando o processo de divulgação das cotas e do que elas significam, além de tirar medidas de forma auto-organizada frente a casos onde hajam denúncias concretas de fraudes. Não podemos deixar que nosso anseio de defender essa conquista negue o direito de jovens negros afirmarem sua identidade e adentrarem as portas da universidade depois de terem passado pelo filtro racial e social do vestibular.

Essa é uma contribuição dos nosso coletivos de negros e de juventude para esse debate fundamental para defender a nossa luta pelas cotas. Em que seguimos lutando para que sejam no mínimo proporcionais ao número de negros por estado e defendendo o fim do vestibular para que toda a juventude tenha acesso ao ensino superior, no país onde Bolsonaro, Mourão, e todo regime golpista atuam para aprofundar ainda mais ataques a educação e a toda a juventude e trabalhadores.




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