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SEMANÁRIO

Sobre a Frente Única Operária e a “unidade de ação” na estratégia revolucionária

Mateus Torres

Ilustração: Juan Chirioca | @macacodosul

Sobre a Frente Única Operária e a “unidade de ação” na estratégia revolucionária

Mateus Torres

As tarefas colocadas pela realidade objetiva no Brasil e o mau uso (ou a ausência de uso) na esquerda de elementos fundamentais da estratégia marxista revolucionária como a batalha pela independência de classe, na perspectiva de colocar de pé uma Frente Única Operária (FUO), nos obrigam a retomar debates já realizados há quase 100 anos pelos clássicos do marxismo revolucionário. É parte da nossa homenagem aos 81 anos do assassinato de Trótski à mando de Stalin.

Vemos uma proliferação na esquerda de falsas teorias da “unidade de ação” para dar uma aparência marxista para políticas de aliança com a “burguesia não fascista” na luta contra Bolsonaro. Isso foi parte do desvio operado pelas direções das manifestações pelo “Fora Bolsonaro”, o que abriu espaço a uma conjuntura com mais elementos reacionários. Para este debate, trabalharemos com o conceito de "manobra", advindo da ciência militar e de Carl von Clausewitz, e utilizado pelos revolucionários clássicos e por Trótski, pra debater sob que circunstâncias e critérios se deve pensar política para "aliados circunstanciais", sem nunca tirar do centro da estratégia de emergência da classe trabalhadora como sujeito na luta de classes em chave hegemônica, única via para derrotar a extrema direita e impedir que sigam arrancando nossos direitos e degradando o regime político em chave bonapartista.

Importância política deste debate teórico

Uma das consequências de tantas traições das direções do movimento de massas e batalhas não dadas frente a ataques históricos que estão em curso no Brasil desde o golpe institucional foi que se generalizou em amplos setores de massas a defesa de uma unidade com a “direita burguesa não-fascista" na luta contra Bolsonaro e a extrema direita. Muitas vezes, sequer se trata de verdadeira confiança ou ilusões nesses setores da direita, mas certo desespero de seguir buscando um “mal menor” que possa conter a extrema direita e os ataques.

Do ponto de vista das massas, pode ser compreensível. O que é um problema grave é que na esquerda, incluindo a que se diz socialista ou revolucionária, se defenda a aliança com estes atores e instituições que foram linha de frente do golpe institucional, que abriu o caminho para Bolsonaro e os militares. Lamentavelmente, a suposta "ala esquerda" nesse debate são os que "alertam" que “unidade eleitoral não convém” (mais elementar impossível!), mas em uma suposta "unidade de ação contra Bolsonaro", estão todos de acordo.

Mas ao contrário de qualquer “ação”, o que existiu foi um documento assinado em comum para apresentar no parlamento com uma foto “de gala” misturando as bandeiras. Nos referimos ao evento mais simbólico dessa enorme operação em que a maioria da esquerda está imersa, e tem tido muitos episódios, que foi a apresentação do "Superperdido de Impeachment" com Joice Hasselmann e o MBL no parlamento com o PSOL, PSTU, UP e PCB (e obviamente o PT e PCdoB, mas com estes partidos de administração do estado burguês, não cabe sequer debater outra perspectiva). Mas haveria também outros exemplos assombrosos como foi a definição de Luciana Genro do MES-PSOL de que a CPI da Covid seria um “lugar de unidade de ação”.

Isso enquanto estes mesmos “democratas” estão, como é natural pelo seu caráter de classe, numa “unidade de ação” com Bolsonaro contra os direitos da classe trabalhadora, aprovando mil e um ataques, como representantes do grande capital nacional e imperialista. Para citar somente alguns dos mais brutais que tais “democratas” estavam aprovando naquele mesmo parlamento na conjuntura imediata do “evento solene”: a privatização da Eletrobrás e o PL 490 e o marco temporal que é um ataque enorme aos indígenas, mas estes são algozes de todos (não vamos citar aqui porque sequer é necessário e tomaria muito nossos leitores) os ataques aos direitos da classe trabalhadora que vieram desde o golpe institucional. Enquanto isso, apresentam-se como “democratas”, como parte da campanha eleitoral por uma “terceira via”, que é o sonho de Biden e de amplos setores da burguesia nacional, com a ajuda da esquerda “revolucionária” ou “socialista”.

Com essa orientação, a esquerda colabora para que essas alas do regime político golpista recomponham sua autoridade que vinha desgastada em amplos setores desde o golpe institucional. Esse “evento solene” do Superperdido de Impeachment se deu no auge das mobilizações pelo “Fora Bolsonaro”, canalizando aquele “volume de forças para o combate” de centenas de milhares que se manifestavam nas ruas da pior maneira e sendo parte do que gerou dispersão e confusão. Eram atos importantes, ainda que não superavam a dinâmica de atos “domingueiros” que não afetam os capitalistas, o governo e o regime político. Nesse sentido, ainda serviam à uma estratégia de “descompressão” feita pelas burocracias da insatisfação das bases e encaixavam bem, pelo seu caráter “ordeiro”, com a estratégia de “Lula 2022” das direções majoritárias do movimento de massas.

Ao invés dessa orientação, naquele momento a tarefa da esquerda era unir as forças da esquerda em um polo anti-burocrático dos que se apresentam como alternativas à esquerda das burocracias, para através de exemplos nos sindicatos que dirigem, fazendo um trabalho em comum na base das grandes centrais sindicais, combinando com um sistema de exigências e denúncias em relação às burocracias, darmos uma verdadeira batalha para impor a convocação de um plano de lutas continuado, em base aos métodos da classe trabalhadora, começando por uma paralisação nacional (que convencionou-se no Brasil chamar de “greve geral”) de caráter defensivo contra os ataques em curso, tanto os econômicos, quanto para responder a crise sanitária e contra o autoritarismo crescente na realidade nacional. Ou seja, uma unidade de ação da classe trabalhadora contra os ataques do capital, que é o que poderia abrir um caminho de uma Frente Única Operária (FUO), envolvendo o conjunto das organizações dos trabalhadores (as bases e as direções), em aliança com os movimentos sociais e setores oprimidos, batalhando por organismos de auto-organização que pudessem preparar a superação das burocracias.

Mas a linha desses setores à esquerda do PT e do PCdoB não foi essa. O máximo que fizeram foi apresentar uma “divergência de calendário”, mas mantiveram a mesma política das burocracias do “superpedido de impeachment”, de exaltar acriticamente as mobilizações “domingueiras” que não afetam os capitalistas embelezando o papel das burocracias, acrescentando no pior momento como linha central o chamado a uma “unidade de ação com a burguesia não fascista” (o que a mídia adorou e transformou em um debate na imprensa oficial inclusive). Nisso não se diferenciou nem as organizações da esquerda que falavam de “greve geral” (enquanto sequer apoiavam efetivamente as greves em curso, como o conflito da MRV em Campinas).

A consequência é mais uma oportunidade desperdiçada de desenvolver uma perspectiva de luta de classes e se abriu uma conjuntura em que se concentra uma renovada onda de ataques econômicos, repressiva contra qualquer tipo de resistência, aumentando a degradação bonapartista do regime e a "obra econômica do golpe", catastrófica para as massas.

Agora quem tenta tomar as ruas é a direita golpista “não fascista”, com seu ato de 12 de setembro. E quem são os setores que lideram a convocação desse ato? Justamente os que a esquerda relegitimou implorando pela “unidade na luta contra Bolsonaro”. O mais lamentável, para não dizer revoltante, é que os “chefes” dessa operação foram novamente o MBL. Sim, os mesmos financiados pelos imperialistas “irmãos Koch”) que fizeram a operação de desvio “verde-amarelo” de junho de 2013 pela direita. Além de tudo, estes puderam se colocar como “vítima do sectarismo” daqueles que rechaçavam sua presença nas ruas.

São esses elementos que fizeram mudar os setores que aparecem em disputa na conjuntura nacional. Se antes havia protagonismo de setores de massas na luta contra Bolsonaro, agora volta a disputa entre “extrema direita” e “direita não fascista”. Isso gera temores em setores de massas com a possibilidade de aprofundamento do golpe (que, convenhamos, já está em curso desde 2015-16), ao que amplos setores da esquerda seguem respondendo com “unidade de ação com a burguesia não fascista”.

Quanto mais a esquerda e as organizações da classe trabalhadora apostarem nesses supostos "democratas" para uma suposta "ação" contra Bolsonaro, mais geram confusão e boicotam a possibilidade de que se desenvolva a verdadeira unidade de ação que é necessária: a classe trabalhadora contra o conjunto da classe burguesa e seu regime político. As perspectivas da situação nacional podem ser piores se não se fortalece uma esquerda que batalhe por essa perspectiva de independência de classe.

Começamos este artigo teórico por essas questões políticas, porque esses elementos deveriam ser suficientes para debelar essa política de conciliação de classes, ao menos no campo daqueles que se postulam como revolucionários ou socialistas. Mas como a realidade lamentável é que esses setores da esquerda não somente insistem na mesma linha de conciliação de classes, mas buscam “justificar teoricamente” com citações dos clássicos, e inclusive de Trótski (!), não podemos deixar de entrar nesse terreno do debate.

Mas devemos alertar aos leitores que esse resgate dos clássicos deve ser localizado no marco de que as situações onde se desenvolveram esses debates sobre a Frente Única Operária e a unidade de ação são bastante diferentes da situação nacional, mas o fazemos para fundamentar como é absolutamente equivocada a lógica com a qual esses setores da esquerda pretendem utilizar esses conceitos e essas políticas, sendo necessário portanto esclarecer as bases teóricas marxistas para que sejam corretamente usadas pela vanguarda como um “guia para a ação”.

Essa é também uma forma de homenagem aos 81 anos do assassinato do revolucionário russo, que não pode ter sua metáfora “do diabo e sua avó” (como fizeram várias organizações que se reivindicam trotskistas) transformada numa justificativa para uma política de conciliação de classes. É trágico ver que, nessa operação ideológica, estão juntos diversos setores que reivindicam o trotskismo com os stalinistas reciclados do PCB e os “ortodoxos” da UP.

Vamos utilizar o arsenal teórico de Trótski para o debate, mas não sem antes esclarecer que poderia ser feito baseado em outros revolucionários clássicos do marxismo, como Lênin, Gramsci ou Rosa Luxemburgo. Utilizaremos em particular a obra de León Trótski de 1928, “Stalin, O Grande Organizador de Derrotas”, que é onde ele faz uso do conceito de “manobra” de maneira mais profunda. Como veremos, a lógica de pensar a política de grande parte da esquerda (incluindo esses que se reivindicam trotskistas) de “unidade de ação com a burguesia” e adaptada às burocracias do movimento operário tem mais a ver com as concepções stalinistas que trotskistas.

A tática da Frente Única Operária nos anos 20

A tática de Frente Única Operária foi elaborada no calor do impacto da onda revolucionária desencadeada pela revolução russa de 1917, no marco de um pós-guerra que levou a situações pré-revolucionárias ou revolucionárias em distintos países da Europa e desencadeou pressões ultra-esquerdistas nos Partidos Comunistas da III Internacional. Uma das bases dessas pressões era um certo sentido voluntarista de uma vanguarda de centenas de milhares de jovens operários revolucionários, que não tinham ainda tradição no marxismo revolucionário porque recentemente entravam nos PCs, que queriam tomar o poder em seus países, mas sem uma compreensão mais profunda da correlação de forças entre as classes e do peso que as direções reformistas e burocráticas ainda tinham entre as massas. Essa teorização veio no sentido de encarar o problema vital de não separar vanguarda e massa, promover a unidade do conjunto das organizações operárias (tanto suas bases quanto suas direções) na luta de classes, contra os ataques do capital, em base à auto-organização, “para a conquista do poder, através da prévia conquista das massas”.

Trótski, em seu informe para o 3º congresso da III Internacional, em junho-julho de 1921, marca definições sobre a situação objetiva que são parte fundamental dos elementos que levavam a essa conclusão estratégica. Para ele, havia uma estabilização relativa do capitalismo, afetando as condições de situações revolucionárias: “em 1919, nós dizíamos, é uma questão de meses, hoje nós dizemos, é uma questão de anos” [1]. Bela Kun, revolucionário húngaro, parte da ala ultraesquerdista da IC e que posteriormente assumirá papel de responsabilidade na IC stalinizada, chega a acusar Lênin e Trótski de direitistas por rechaçarem a perspectiva de “putschs” [golpes], e estes chegam a estar em minoria no III Congresso.

Em 1922, em suas “Teses sobre a Frente Única”, Trótski esclarece a dialética intrínseca à tática:

“A tarefa do partido comunista é dirigir a revolução proletária. A fim de orientar o proletariado à conquista direta do poder, o Partido Comunista deve basear-se na maioria esmagadora da classe trabalhadora. Enquanto o Partido não conte com essa maioria, deve lutar para conseguí-la. O partido só pode alcançar este objetivo se for uma organização absolutamente independente, com um programa claro. Eis porque deve romper ideológica e organizativamente com os reformistas e centristas que não lutam pela revolução proletária”.

Em seguida dessa definição, Trótski complementa:

“Mas é bem evidente que a luta de classe do proletariado não se detém durante esse período preparatório da revolução. O choque com os industriais, a burguesia e o aparato de Estado segue seu curso. Nestes choques, que envolvem os interesses do conjunto do proletariado, de sua maioria, deste ou outro setor, as massas operárias sentem a necessidade da unidade na ação: de unidade para resistir ao ataque do capitalismo, ou de unidade para tomar a ofensiva contra ele. Todo partido que se oponha a esta necessidade do proletariado de unidade na ação será condenado infalivelmente pelos trabalhadores".

Vemos que Trótski se refere à "unidade de ação" no sentido da frente única operária, a aliança para a luta de classes entre as distintas camadas politicamente heterogêneas da classe trabalhadora, e não de unidade de ação com a burguesia. A experiência de frente única dos distintos sindicatos operários na Alemanha em março de 1920, derrotando a tentativa de golpe de Estado dos militaristas Wolfgang Kapp e Walther von Lüttwitz, foi aquela utilizada para inspirar as reflexões estratégicas da III Internacional, e as teses de Trótski em 1922. Havia um claro caráter de classe.

A Frente Única Operária nos anos 30 e o significado da metáfora “o diabo e sua avó”

Na década de 30, frente a uma nova forte crise do capitalismo a partir do crack de 1929, essa tática volta a se colocar na ordem do dia, para unir a classe trabalhadora contra os ataques do capital e responder no terreno da luta de classes ao crescimento do nazismo e do fascismo, que eram expressões da radicalização do capital financeiro, que instrumentaliza a pequena-burguesia para atacar as organizações dos trabalhadores e estabelecer governos totalitários ultra reacionários.

É nesse contexto que Trótski elabora o texto “Por uma Frente Única Operária contra o fascismo”, onde utiliza a famosa metáfora, da qual diversas organizações adoram fazer uso, da necessidade de aliança com “o diabo e sua avó”. Mas essas organizações a utilizam para o inverso do que propunha Trótski, pois enquanto este a colocava no sentido de avançar na independência de classe, estas a utilizam para defender a conciliação de classes. A falsificação não é somente em relação ao que defende o conjunto do texto. Como veremos, começa pela mutilação intencional até mesmo da parte específica em que Trótski faz uso da metáfora. Antes da metáfora que tanto se utiliza de maneira oportunista, o autor desenvolve duas questões essenciais:

a) que o tipo de acordo que se deve buscar fazer com “o diabo e sua avó” não é nem eleitoral e nem de “negociatas parlamentares”, pois isso fortalece os reformistas e não os revolucionários;

b) que a frente única operária deve se dar sem misturar bandeiras nem programas com os reformistas, e sempre tem que ter um sentido de ação concreto, que sirva para a luta de classes efetivamente. Que, se pensada nesse sentido, é correta aliança com o "diabo e sua avó";

Nas palavras do próprio Trótski:

“Os acordos eleitorais, as negociações parlamentares concluídos entre o partido revolucionário e a social-democracia costumam servir, via de regra, à segunda. Um acordo prático de frente para as massas, por objetivos de luta, se faz sempre em proveito do partido revolucionário. Nenhuma plataforma comum com a social-democracia ou com os líderes dos sindicatos alemães, nenhuma publicação, nenhuma bandeira, nenhum cartaz em comum! Marchar separados, golpear juntos! Colocar-se de acordo apenas sobre como golpear, quem golpear e quando golpear! Pode-se fazer um acordo com o diabo, com sua avó e inclusive com Noske e Grzesinsky. Com a única condição de não atar-se as mãos".

Vale destacar novamente que, assim como nas elaborações sobre frente única operária nos anos 20, frente ao combate contra o nazismo, Trótski nunca alterou o elemento de que a aliança fundamental que era necessária para a "unidade de ação" era da classe trabalhadora para o combate, e não com a burguesia.

O que é uma "manobra" e seu lugar na estratégia revolucionária?

Em sua obra magistral de 1928, "Stálin, O Grande Organizador de Derrotas", Trótski faz uma assimilação para o marxismo do conceito de “manobra”, que vem da ciência militar e Carl von Clausewitz. Como veremos, o conceito de “manobra” é utilizado precisamente para caracterizar um tipo de política dos revolucionários e da vanguarda da classe trabalhadora para estabelecer “aliados circunstanciais”. Trótski desenvolve justamente as particularidades e critérios de como se deve pensar política em relação às burocracias das organizações do movimento operário, mas também em relação a aliados que sejam de outras classes sociais como a pequena-burguesia do campo e da cidade, e desenvolve o caráter muito mais episódico, subordinado e excepcional de uma “manobra” em relação à burguesia. Nesse livro, Trótski está justamente debatendo com as concepções de Stalin e os dirigentes da III Internacional que fazem das “manobras” o eixo da política revolucionária, adaptando-se aos aliados e os fortalecendo, debilitando a unidade da classe trabalhadora e o partido revolucionário. E desenvolve como os revolucionários não podem se utilizar das “manobras” no terreno da estratégia ou do combate pelos problemas decisivos, assim como relaciona a capacidade do partido revolucionário e da vanguarda proletária de se utilizar das “manobras” sempre de acordo com o grau de maturidade da vanguarda operária, do partido revolucionário e de suas direções, que são os elementos que definem se a classe trabalhadora e sua vanguarda avançam no sentido da sua independência de classe. Sem ter esses “volumes de força” decisivos para o combate, tanto da classe trabalhadora, quanto de sua vanguarda e do partido, é desastroso para as organizações revolucionárias fazer uso de “manobras”, especialmente quando elas se constituem como políticas em relação à burguesia, ou seja, os inimigos de classe. Trótski desenvolve justamente como isso debilita o avanço da classe e do partido revolucionário como sujeito.

Nas palavras de Trótski: “Uma manobra pode consistir seja em fazer uma concessão ao inimigo, seja em fazer um acordo com um aliado provisório e sempre duvidoso, seja em fazer uma retirada calculada em tempo hábil para não permitir que o adversário nos esmague, seja em alternar reivindicações parciais e palavras de ordem de uma forma que incite a divisão no campo inimigo. Estes são os principais tipos de manobras. (...) toda manobra, por sua própria natureza, não é mais do que um episódio em relação à linha estratégica fundamental da luta. Já nas manobras feitas em relação ao Kuomintang e ao Comitê Anglo-Russo (é sempre necessário as ter em vista como demonstrações acabadas de manobras mencheviques, e não bolcheviques) foi justamente o contrário que se fez: o que não deveria ser mais do que um episódio tático foi inflado até se tornar a linha estratégica, esfarelando a verdadeira tarefa estratégica (a luta contra a burguesia e os reformistas) em uma série de episódios restritos e secundários de tática, conferindo-lhes um caráter decorativo. Ao se fazer uma manobra, deve-se tomar sempre como ponto de partida as piores, e não as melhores, previsões em relação à contraparte à qual se faz concessões ou ao sujeito da aliança com a qual se faz um acordo. É necessário sempre se lembrar de que amanhã o aliado pode se tornar um inimigo. Isto é verdadeiro mesmo para um aliado como o campesinato." [2]

Vejam que Trótski qualifica a política do stalinismo em relação ao Kuomintang, partido nacionalista burguês da China, como “manobra menchevique e não bolchevique”. Na citação que colocamos abaixo, isso fica mais claro quando ele se refere a Chiang Kai-shek, presidente da China e líder do Kuomintang, que tinha sua “ala esquerda” representada por Wan Jingwei. Vejam que Trótski se refere também à Albert Purcell, que é um dirigente do Conselho Geral do Congresso Sindical Britânico e do Comitê Sindical Anglo-Russo na época da traição da greve geral britânica de 1926. Assim como se refere ao “kulak” (ou "cúlaque"), os camponeses ricos da Rússia. Ou seja, debate como a lógica dos stalinistas de se pensar a “manobra” acabou fortalecendo todos esses “aliados” e não a classe trabalhadora e suas organizações revolucionárias.

Nas palavras dele:

“todas as tentativas de aplicar o método burocrático das artimanhas à solução das grandes questões como comparativamente mais “econômicos” que o da luta revolucionária foram, inevitavelmente, a fonte de vergonhosas derrotas; a doutrina das artimanhas empregadas pelo aparato do partido e do Estado quebrou a espinha dos jovens partidos e das jovens revoluções. Chiang Kai-shek, Wang Jingwei, Purcell, o cúlaque, todos até agora saíram vitoriosos das tentativas de lhes reduzir recorrendo ao método das ’manobras’. Isto não quer dizer, de forma alguma, que todas as manobras em geral são inadmissíveis, ou seja, incompatíveis com a estratégia revolucionária da classe operária. Mas é necessário entender com clareza o valor auxiliar, subordinado das manobras, utilizadas estritamente como um meio, na relação com os métodos fundamentais da luta revolucionária. É necessário compreender de uma vez por todas que uma manobra não pode jamais decidir uma grande causa. Se as artimanhas parecem solucionar algumas pequenas coisas vantajosamente, isto ocorre sempre em detrimento dos assuntos importantes. Uma manobra correta não faz mais do que facilitar a solução ao permitir ganhar tempo ou atingir melhores resultados com um gasto menor de forças. Não é possível se esquivar das dificuldades fundamentais por meio de uma manobra. A contradição entre o proletariado e a burguesia é uma contradição fundamental." [3]

Matias Maiello e Emilio Albamonte, dirigentes da Fração Trotskista - Quarta Internacional, no livro que elaboraram "Estratégia Socialista e Arte Militar", sintetizam três aspectos dessa tática complexa da Frente Única Operária:
“Constitui uma tática complexa que tem um aspecto de manobra, outro tático e outro estratégico. Por um lado, implica acordos – produto de determinada relação de forças entre as tendências – com reformistas e/ou “centristas”, como aliados circunstanciais (aspectos de manobra), com o objetivo da unidade das fileiras operárias para lutas parciais em comum (aspecto tático, defensivo ou ofensivo). Por outro lado, como objetivo principal, a ampliação da influência dos partidos revolucionários como produto da experiência em comum (ou de seu rechaço pelas direções oficiais), com o fim de conquistar a maioria da classe operária para a luta pelo poder (aspecto estratégico, ofensivo).” [4]

Ou seja, mesmo dentro da frente única operária, não se pode pensar as “engrenagens” da política revolucionária em relação às burocracias, direções majoritárias do movimento de massas, visando a que movimentem a classe trabalhadora, sem ser dentro de uma lógica de pensar uma forma de fortalecer a vanguarda através da auto-organização e do partido revolucionário. Ou seja, envolve condições precisas de como pensar essa unidade para que seja de fato “golpear juntos e marchar separados”, e não o inverso, como faz a esquerda brasileira. Poderíamos dizer inclusive que no caso brasileiro, sequer há qualquert tipo de “golpes” (juntos ou separados) por parte das organizações dos trabalhadores contra a burguesia ou o governo Bolsonaro. Na verdade, cada setor vem sofrendo golpes por parte dos inimigos, enquanto “marcham juntos” e “misturam bandeiras”.

A “manobra” em relação à pequena burguesia

Mas o problema é mais grave quando se tratam de outras classes sociais. Vejamos como Trótski aborda no mesmo texto a forma de pensar a aliança com os camponeses:

“A aliança do proletariado e do campesinato é uma questão de relação política de forças e, consequentemente, de independência do proletariado em relação a todas as classes. Um aliado deve primeiro ser educado. Pode-se chegar a isso conferindo, por um lado, uma profunda atenção a suas necessidades históricas progressistas e, por outro, tendo uma desconfiança organizada, lutando infatigável e implacavelmente contra todas as suas tendências e medidas antiproletárias.” [5]

Note-se que Trótski debate que para a aliança com os camponeses servir de fato num sentido revolucionário, esta “depende da independência do proletariado em relação a todas as classes”. Na esquerda brasileira o proletariado mal deu passos no sentido de sua independência, e já querem fazer alianças com a “burguesia democrática” diretamente.

Ademais, para Trótski, a única maneira de levar adiante uma aliança entre o proletariado e a pequena burguesia (seus setores mais oprimidos, da cidade e do campo) é combater implacavelmente suas direções tradicionais, muitas das quais são representadas pelos mesmos partidos da dita “burguesia democrática”. Tal lição foi parte fundamental do combate de Trótski contra o stalinismo entre 1934 e 1936, na França, em que a III Internacional, dotada da orientação da Frente Popular, travou aliança com os Radicais burgueses, supostamente com o objetivo de “aliar trabalhadores com a pequena-burguesia”. A esquerda brasileira desconhece olimpicamente essa importantíssima lição de leninismo e hegemonia.

O caráter especialmente circunstancial da “manobra” em relação à burguesia

No mesmo livro, Trótski define em relação a como pensar as “manobras” em relação à burguesia: “Não se pode enganar as classes. Se isso é verdade para todas as classes, desde o ponto de vista histórico mais amplo, é particularmente certo para as classes dominantes, possuidoras, exploradoras, instruídas. Sua experiência de mundo é tão grande, seu instinto de classe está tão exercitado, seus meios de espionagem são tão variados, que tratando de enganá-las, simulando ser o que não se é, chega-se, na realidade, a fazer cair na armadilha não os inimigos, mas sim os amigos”.

A esquerda nacional está cheia desses que se consideram os “chefes das artimanhas” que podem “enganar a burguesia”. O mais pitoresco (ou absurdo) é que pensam isso com “eventos solenes” como um “Superpedido de impeachment”. É óbvio que isso não tem nada a ver com situações excepcionalíssimas onde os revolucionários levantaram políticas de “unidade de ação” com a burguesia em chave principista, ou que era possível fazê-lo. Se tratam de situações extremas, com um importante nível de radicalização da situação subjetiva, onde se colocam conflitos decisivos e a classe trabalhadora é obrigada a ter esse tipo de política. Poderíamos citar o exemplo dos bolcheviques contra o golpe de Kornilov, ou como poderia ser frente ao golpe imperialista no Brasil no pré-64, ou numa guerra com a das Malvinas em 1982 ou como Trótski tratou na defesa da expropriação do petróleo de Cárdenas no México. Ou seja, se trata de situações de combate contra ofensivas reacionárias da própria burguesia, ou de combate à opressão imperialista, no terreno concreto da ação, coisas que não tem absolutamente nada a ver com o Brasil hoje ou com um “Superpedido de impeachment”.

A relação entre “volume de forças” e as condições para utilização da “manobra”
Vejamos como Trótski aborda a capacidade de um partido revolucionário e da vanguarda da classe trabalhadora se utilizar da “manobra”, diretamente relacionado ao peso e à tradição dessas organizações, absolutamente diferente da lógica com que a esquerda se pensa como “astuta” de propor uma “unidade com a burguesia” na luta contra Bolsonaro. Essa lógica era profundamente combatida por ele, porque foi a que os stalinistas levaram à frente, o que debilitou a classe trabalhadora e suas organizações revolucionárias.

Nas palavras de Trótski:

"O pior e o mais perigoso é quando uma manobra se deve à impaciência e ao oportunismo que desejam acelerar o desenvolvimento de seu próprio partido e saltar por cima das etapas inevitáveis de seu desenvolvimento (eis aqui justamente o caso em que não se deve saltar sobre as etapas) ao se ligar, se mesclar, se unir de forma superficial a vigaristas, a organizações e elementos que atiram para todos os lados. Experiências assim, sempre perigosas, são fatais para partidos jovens e fracos.” [6]

E complementa:

“Na manobra, como na batalha, não é a sabedoria estratégica (e ainda menos a destreza das artimanhas) que decide o resultado; é a correlação de forças que o faz. De maneira geral, o perigo que uma manobra, ainda que concebida corretamente, faz correr um partido revolucionário é tanto maior quanto mais jovem e fraco este é em relação a seus inimigos, aliados ou semialiados. Eis porque (e aqui abordamos o ponto mais importante para a IC) o Partido Bolchevique não começa de modo algum por manobras, vistas como uma panaceia; e não recorreu a elas antes que fosse grande o suficiente para executá-las, antes que fosse profundamente enraizado na classe operária, que estivesse consolidado no terreno político e maduro no ideológico (...) Não é a flexibilidade que constituía (e que hoje em dia também não deve constituir) o traço característico fundamental do bolchevismo, mas sim sua firmeza de bronze. É justamente dessa qualidade que ele possuía, e que era reprovada pelos seus inimigos e adversários, que o bolchevismo orgulhava-se e com razão. Não um “otimismo” manso, mas intransigência, vigilância, desconfiança revolucionária, luta por cada milímetro de sua independência, eis quais são seus traços essenciais. É justamente daí que deveriam começar os partidos comunistas do Ocidente e do Oriente. Devem, ainda, conquistar o direito de executar grandes manobras com o preparo anterior da possibilidade material e política para sua realização, que são: a força, a solidez e a severidade na escolha dos meios que sua própria organização utiliza." [7]

Como apontamos na introdução, esse desenvolvimento teórico que resgatamos dos debates entre marxistas dos anos 20 e 30, bem como passando pelas situações agudas que colocaram a possibilidade ultra circunstancial de “unidade de ação com a burguesia”, são absolutamente diferentes da situação atual brasileira. Tal desenvolvimento é necessário justamente para esclarecer como é impossível se utilizar de conceitos marxistas forjados naquelas situações e sempre em base a desenvolver uma política de independência de classe, para promover uma “cobertura marxista” para uma política de conciliação de classes.

A situação reacionária no Brasil exige ainda mais uma esquerda com clareza de princípios, que não perca os fundamentos do marxismo revolucionário e possa ser uma continuidade com aquela tradição revolucionária, e não a sua negação. Exige paciência dos revolucionários para não cair no oportunismo como forma de tentar saltar etapas que estão longe de ser superadas, em primeiro lugar da conformação de uma vanguarda da classe trabalhadora e um partido revolucionário com uma estratégia e uma política de independência de classe. A realidade exige menos “chefes da manobra”, como Stálin, e mais a firmeza revolucionária de Trótski.


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FOOTNOTES

[1Brouè, História da Internacional Comunista, 2007, p. 289

[2Trótski em “Stálin, o grande organizador de derrotas”, p. 175

[3Trótski em “Stálin, o grande organizador de derrotas”, p. 174

[4Emílio Albamonte e Matías Maiello, “Estratégia Socialista e Arte Militar, p. 198

[5Trótski em “Stálin, o grande organizador de derrotas”, p. 176

[6Trótski em “Stálin, o grande organizador de derrotas”, p. 177

[7Trótski em “Stálin, o grande organizador de derrotas”, p. 177
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