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Revolução em Paris e o retorno à telona do direito à insurreição

Ricardo Sanchez

Revolução em Paris e o retorno à telona do direito à insurreição

Ricardo Sanchez

CINEMA

A insurreição é um direito inalienável dos oprimidos”. Mais de uma vez nos deparamos com essa frase no filme. Trata-se de uma ideia-força que percorre duas horas de Revolução em Paris (Un peuple et son roi), de Pierre Schoeller, em cartaz em algumas poucas salas do país. Ela é repetida em discursos, está presentes nas conspirações nos clubes revolucionários, está entre as carícias das personagens Françoise e Basil, está nos cantos sarcásticos das lavadeiras.

A ideia é tomada da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e ganha corpo na telona. Através dela, é possível juntar peças um tanto desconexas ou mal-ajambradas em duas horas permeadas de eventos transcendentais da história universal e de uma bela fotografia.

A dificuldade do diretor-autor de decidir se seu filme é uma narrativa do direito à revolução ou uma colagem de micro-histórias populares em meio à revolução fala muito de nosso tempo. Um tempo onde já morreu o pós-modernismo, morreu o triunfalismo burguês, mas ainda não ganhou corpo um projeto revolucionário – operário e comunista, portanto – que dê novas significações à maior revolução burguesa e sua obliterada certeza do direito das massas de se levantarem.

Nesse não-lugar incômodo transcorrem duas horas de filme que se abrem a diferentes ideias e sensações. Por um lado, parece inconcluso e provoca um extenso googlear para completar o que não é desenvolvido. Por outro, parece um autossuficiente elogio ao ódio popular e, especialmente, o feminino. Devido à forma narrativa escolhida, esse ódio traz consigo, ao mesmo tempo e contraditoriamente, certa perplexidade com sua violência decorrente. Não se sabe se a violência se justifica ou não. Mas saímos com a certeza de sua inevitabilidade, bem como do direito a ela contra os opressores.

O filme entrou em exibição na França em setembro passado, um mês antes de estourar o movimento dos Coletes Amarelos e, apesar desse sincronismo, não foi nenhum sucesso de bilheteria. E, mais que isso, foi detestado pela crítica.

O Le Monde falou que foi a tentativa mais “ambiciosa e tola do cinema francês em muitos anos”. Para o tradicional jornal francês de centro, o filme tratava a revolução como uma torrente de discursos e sangue. O mais centro-esquerdista Liberation, chamou de um filme sem corpo nem cabeça. Do outro lado do Canal da Mancha a recepção não foi melhor. O centro-esquerdista The Guardian tratou como uma entediante aula de história para quem detestou Marie Antoniete e sua falta de povo na revolução. A revista americana especializada em cinema, Variety, usou termos similares: “um estoanteante tratamento de fórmulas prontas” “que tem apelo somente a preguiçosos professores de história do ensino médio”. O crítico da Folha teve um olhar parecido com o de suas contrapartes imperialistas. Para ele o filme não tem unidade, tropeça em si mesmo e “oscila entre momentos de entretenimento eficiente e a superficialidade ostensiva, terminando como uma representação estetizada de um período intrincado e violento.”

A versão brasileira da crítica toca no fundo do que na França, na Inglaterra e nos EUA não se disse: há no filme uma estética da e um apelo à insurreição.

Seguramente incomoda a olhares conciliadores ver Robespierre como moderado diante de Marat e Danton e sua relação próxima aos setores mais plebeus e proletários de Paris. Deve incomodar o protagonismo sem-nome dos que se levantam no bairro operário de Saint-Antoine. A tensão à espera do dobrar dos sinos que anunciariam o início da insurreição de 10 de agosto de 1792 deve também soar como uma estetização excessiva para quem nunca viveu a grande tensão de um pequeno desafio que é estar num piquete aguardando um confronto que se sabe inevitável. Ou também a angústia de Françoise procurando Basil nos mortos na tomada do palácio das Tulherias também deve soar como repetição de uma fórmula pronta, seguramente deve aparecer como uma estetização excessiva a quem nunca procurou um camarada, um amigo ou amante perdido em meio à repressão policial.
A quem espera que a racionalidade convença os opressores, o filme é, sem sombra, de dúvidas um incômodo.

Deve incomodar ver a guilhotina em ação e do meio da multidão escutar um grito feminino de que aquilo era muito ruim, muito rápido. O espectador, nesse momento, se vê diante de um dilema do qual nunca participou: qual o correto método para a justiça quando esta precisa se fazer regicida? Não é à toa que nos derradeiros segundos do filme, quando vemos uma criança embebendo um lenço com o sangue real derramado para levar como um troféu da morte dos velhos tempos e nascimento dos novos, não se sabe o que sentir. Em cenas sanguinárias como esta, o diretor deixa entrever sua sempre presente indecisão.

Os discursos parlamentares e as batalhas são construídas entre o espanto da violência e sua justiça que brota de dentro de estômagos vazios e cérebros aviltados pela opressão. E ainda mais especialmente dos mais oprimidos. O protagonismo das mulheres francesas, este sim, é mostrado sem hesitação alguma. Sinal da justiça com a revolução, mas também com os nossos tempos.

Não obstante o protagonismo feminino, Schoeller não se decidiu se toma o lado da montanha ou da planície, mas deixa claro que há direito à insurreição. Ele também não se decidiu se seu filme narra esse direito das massas ou um retrato elaborado de pessoas anônimas. É um retrato de parte da Revolução Francesa mas também de sua indecisão em nossos tempos.

O direito à insurreição (revolta, sublevação, revolução, todas elas sinônimas no filme) fica muito marcado em diálogos que retomam o artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A declaração revolucionária dizia “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão.”
Com esse artigo, a primeira fase da revolução trazia em síntese todo seu potencial e também de todo seu drama, ambos presentes no filme. Faltava possibilidade de síntese revolucionária em 1793 entre a justiça social e a liberdade. O direito à propriedade, por um lado, e a fome, por outro, à liberdade de participação política censitária ou universal – universal, porém, leia-se exclusivamente masculina.
Apesar de todos os limites cinematográficos, saímos com uma certeza: o ódio de classe, o ódio à opressão e o direito à insurreição voltaram às telonas.

O filme foi criticado por excesso de didatismo e, ao mesmo tempo, por tratar o espectador como já conhecendo passagens da Revolução Francesa. Seguramente, ainda mais em nossas distantes terras, não se conhece suficientemente bem diversos episódios. Que a maior revolução burguesa seja relativamente desconhecida diz muito sobre qual é a dominação burguesa e sua relação com sua própria história. Obliteram a lembrança da revolução na esperança de afugentar seu renovado espectro no presente. Apagam do conhecimento popular o artigo que é ao mesmo tempo revolucionário e conservador da Declaração do Direito do Homem e do Cidadão que, mesmo assim, conferia o direito à “resistência à opressão”.
Há alguns anos temos alguns blockbusters que reabilitam o direito à revolta e à revolução, sobretudo, em distopias futuristas; de V para Vingança a Jogos Vorazes e Handmaid’s Tale. Revolução em Paris tenta – com tropeços cinematográficos e políticos – reabilita esse direito na própria história.

Do filme de Schoeller saímos mais provocados a reerguer no século XXI aquela força dos clubes proletários e conspiradores de Saint-Antoine. E, no dia em que as massas voltarem a sentir ódio da história, soarão sinos que farão tremer todas as velhas e as novas Tulherias.


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