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ENTRADA NA UNIVERSIDADE | Relato sobre comissão racial da UFRJ: "Além do vestibular, nos humilham para poder estudar"

Na UFRJ, uma comissão de heteroidentificação realizou o crivo da entrada de alunos negros na universidade. Reproduzimos abaixo um relato anônimo de uma estudante que passou pelo processo, após ultrapassar o filtro social do vestibular.

quarta-feira 23 de dezembro de 2020 | Edição do dia

Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

"Começar esse relato pra mim já é meio difícil porque acho que nenhuma pessoa, jovem e trabalhador deveria passar por esse tipo de comissão. Eu estou a mais ou menos há uns 3 anos assim consecutivos tentando a universidade pública no Rio de Janeiro, foram várias tentativas tanto em SISU, como na UERJ e em outras universidades até de fora do estado também e esse ano eu consegui passar, consegui uma vaga numa universidade, a UFRJ, através da cota. A cota seria de renda, raça e de escolaridade, e assim eu não tinha muita ideia do que seria essa cota, uma das fases foi difícil porque um dos momentos eu até pensei: nossa tinha que ter colocado outro tipo de cota justamente por não estar tendo que passar por isso, porque foi um dia meio duro na minha vida. Bom, eu tive que ir fazer a comissão de verificação, fui chamada, convocada, e tive lá na hora participando da mesa, da bancada.

Eles chamam todos os candidatos que foram convocados através da cota, pedem pra a gente estar em um espaço em determinado horário e eles pedem para fazer uma longa fila dos candidatos. Depois, começaram a distribuir os papeizinhos com as folhas, que seriam as folhas da declaração, para você ler na frente da bancada.

Eu acho que nunca vou me esquecer dessa cena porque foi bem emblemática pra mim, estava nessa fila, fui uma das primeiras, fiquei próximo do início (da fila) e eu lembro de olhar para trás e era uma fila muito extensa, muito extensa e eu fiquei tentando pesquisar quem a gente consideraria branco naquela fila porque quando eu olhei pra trás foi quando me dei conta que, na verdade, ali só tem preto e pardo, considerado pelo IBGE. Na fila só tinha negros na fila e todos tentando uma vaga a uma universidade.

Tinha uma menina atrás de mim que tinha mais ou menos uns 17, 18 anos e ela virou e falou assim: “ai, eu não sei o que escrever nessa folha, eu nunca me fiz essa pergunta”, é muito engraçado a gente nunca se pergunta se a gente se acha preto ou pardo, eu nem sei o que escrever e ai ela falou “eu posso escrever que eu sou filha de mulher negra domestica” e ai uma outra menina que já estava atrás de mim virou e disse também que “ah, não coloca nada sobre a questão social da sua mãe coloca sobre a sua cor porque a bancada ela não vai avaliar só questão social e sim fenotípica e sim as suas características raciais”, quais são suas características que te fazem denominar como preto ou pardo assim e além disso eu acho que é tão bizarro porque na verdade a gente está falando de uma população que é metade da população, mais da metade da população brasileira, que são os pretos e pardos e a gente tende a essa mistura toda e boa parcela dessa parte da sociedade está em posições como a mãe daquela menina que é doméstica ou trabalhadora terceirizada ou precária ou entregador de uber ou de rappi e assim é essa juventude, esses trabalhadores que estão tentando uma vaga na universidade.

Um pouquinho mais a frente de mim teve uma candidata que ela tinha uma filha também, no colo dela, e durante o processo ela disse que precisou, ela quis passar na nossa frente a gente deixou, mas quando ela passou, uma das responsáveis pela organização das mesas disse que talvez ela não conseguiria fazer o processo justamente porque estava com filho no colo e ela falou “ó eu tenho 18 anos e não tenho ninguém pra olhar minha filha eu preciso estar com ela aqui e eu não posso perder essa vaga por causa dela”. Já mostra, na verdade, o quão bizarro é essa bancada porque além desse processo, eu tive que sentar, aguardar minha vez, me chamaram e me colocaram assim de cara. Eu sentei na frente de uma bancada tinham 3 pessoas, uma delas era um rapaz servidor da universidade branco que estava ali pra poder avaliar se e eu era apta ou não para estar estudando na universidade como negra.

Se eu o que eu escrevi no papel, se estava correto, ele estava ali pra confirmar se eu era parda como eu me identifiquei no papel. Tinha ele e mais duas mulheres, uma câmera ligada pra mim e pediram pra que eu pudesse ler o que eu tinha escrito, eu lembro claramente o que eu falei “Oi, meu nome é Vitória”, li meus documentos, me declarei no momento como parda, sabendo que eu sou negra, sabendo de todo o processo de miscigenação que existe no Brasil, eu coloquei parda porque eles avaliaram pelas minhas condições fenotípicas porque eu tenho pele clara e comecei a ler minha declaração. Minha declaração foi mais um pouquinho do que minha avó me disse pra colocar, foi bem forte, porque como mulher negra, nordestina, ela falou justamente isso para mim: “coloca que você é a primeira de cinco geração de mulheres a entrar na universidade pública, eles precisam saber disso”. Para mim foi bem forte isso, porque eu sou filha, neta de mulheres nordestinas, negras, doze mulheres na minha família, sendo da quinta geração viva e conseguindo entrar na universidade pública.

Isso já mostra, na verdade, um papel que existe tanto do filtro social do vestibular que exclui grande parcela da sociedade, mas também mostra o papel que essa comissão tem, além de excluir essa enorme parcela, (o vestibular) faz com que nós negros e negras, jovens, trabalhadores, eu como terceirizada, tivéssemos que nos humilhar para conseguir uma vaga na universidade. Uma universidade que tem 100 anos, mas que até hoje é conhecida como uma das mais elitistas do país, que mais exclui a população carioca e brasileira de estudar, justamente porque existe um filtro e uma comissão para declarar se você é negra ou parda o suficiente para estar concorrendo aquela vaga, e se você não for apto, infelizmente você não vai poder estudar, vai ter que tentar outros tipos de vida. Isso me chocou muito porque naquela fila enorme, foi um sentimento de humilhação, “uau, eu preciso dizer que eu sou parda para uma pessoa, eu preciso fazer isso para conseguir a vaga.”

O branco não precisaria chegar na universidade e falar o porquê é branco e o porquê se declara branco, o que coloca mais uma vez o papel racista das instituições de fazerem com que os negros se humilhem para conseguir estudar numa universidade pública. Foi uma das coisas mais bizarras que eu sofri na minha vida.

Eu lembro algumas situações bizarras que aconteceram, eu com 9 anos, meu irmão com 7, a gente saindo do colégio para encontrar minha mãe no trabalho, eu lembro que a gente foi parado pra polícia, quiseram abrir nossa mochila, revistar, perguntaram para onde a gente estava indo, o que a gente estava fazendo , se tinha ido para o colégio ou não. Naquele dia, com 9 anos de idade, eu percebi que tinha uma coisa diferente comigo e com meu irmão, naquela época eu não sabia definir que a gente era negro, mas eu sabia que tinha alguma coisa diferente porque para a polícia parar uma criança de 9 anos e outra de 7, e ficar questionando, sendo que estávamos voltando da escola. Quando eu estava nessa fila, eu lembrei dessa cena, e hoje eu sei que o que eu e meu irmão tínhamos de diferentes. É que a gente é preto, a gente é preto, parado pela polícia, a gente é preto também para conseguir estudar. Eu lembro que aquele dia eu fiquei com essa cena na cabeça, aquela fila gigantesca de pretos tentando entrar na universidade, eu acho que nunca vou me esquecer disso porque foi uma das cenas mais fortes que eu já vi na minha vida.

Eu já passei por inúmeras situações de racismo, mesmo assim nunca me impactou tanto quanto participar dessa bancada. Eu acho que foi o maior alívio da minha vida conseguir descer as escadas e alguém virar pra mim e dizer que eu estava apta a estudar, foi a melhor sensação na minha vida, e a pior de todas, porque foi uma cena muito bizarra."




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