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LESTE EUROPEU | Rebelião popular na Bielorrússia: promessas do Leste?

Há mais de um mês, a Bielorrússia está em estado de rebelião. Uma multidão toma as ruas por domingos consecutivos. Fábricas estão em greve. E as mobilizações são as maiores desde a dissolução da União Soviética.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

sexta-feira 11 de setembro de 2020 | Edição do dia

Oficialmente, Lukashenko ganhou as eleições de 9 de agosto com nada menos que 80% dos votos. Porém, com exceção do presidente russo Vladimir Putin, ninguém parece acreditar. Uma maioria composta por setores da classe média urbana, trabalhadores e jovens não aceita um novo mandato, o sexto, do presidente Alexander Lukashenko, no poder desde 1994 e à frente de um autoritarismo sui generis que combina traços estalinistas com um programa cada vez mais neoliberal.

A conjuntura também foi atravessada pelo descontentamento em relação à gestão do governo à pandemia do coronavírus. Lukashenko militou ativamente a favor dos negacionistas, confluindo com populistas de direita como Donald Trump e Jair Bolsonaro. O presidente negou a emergência sanitária, não tomou nenhuma medida e propôs combater o vírus com “vodka, sauna e um trator”, até que ele mesmo e outros 70 mil bielorrussos se infectaram.

Como em quase todas as grandes crises, esta também foi imediatamente desencadeada por um acidente. As eleições já tinham um caráter farsante muito antes de se tornar público o triunfo plebiscitário do presidente. Nos meses anteriores, o governo prendeu os dois candidatos da oposição com maior popularidade – o banqueiro Víctor Babaryka e o youtuber Shiarhei Tsikhanouski. Enquanto o terceiro, Valery Tsapkala, um empresário e ex embaixador nos Estados Unidos, fugiu para evitar o mesmo destino quando lhe negaram o registro eleitoral.

O governo decidiu validar a candidatura “não política” de Svetlana Tsikhanouski, esposa de um dos candidatos presos, para legitimar uma oponente-fantasma de forma que não ocorresse mais uma eleição de lista única. Lukashenko sequer imaginou que estava cometendo um enorme erro de cálculo. Tsikhanouski estimulou o descontentamento político e social, expresso entre as classes urbanas, silencioso em setores amplos dos trabalhadores. E aglutinou em torno da sua candidatura uma oposição débil e fragmentada. Esta fraca oposição liberal que tem pouco a oferecer além de receitas privatistas e ajustes, se apropriou das demandas democráticas e se renovou colocando três figuras femininas à frente, o que sintoniza muito melhor com o espírito de época do que a imagem autoritária do macho alfa como presidente.

Ainda que, visto em perspectiva histórica, é evidente que o ciclo de Lukashenko está se esgotando, o presidente vem resistindo à ofensiva das ruas com repressão violenta e metódica. Enquanto redigíamos este artigo, seis dos sete integrantes da direção e da oposição liberal foram detidos e forçados ao exílio em países vizinhos, como a Ucrânia e Lituânia.

Os principais pilares do governo estão, internamente, no aparato de segurança e na burocracia estatal que ainda não demonstrou fraqueza. E, externamente, no apoio (tardio) de Putin, ainda que uma intervenção militar russa esteja por ora apenas no âmbito das ameaças. Está claro que esta estreita base de sustentação não é suficiente para atingir um novo mandato, mas permite ganhar tempo e apostar na combinação entre repressão e desgaste para descomprimir a pressão das ruas, seja para algum “golpe palaciano” ou para encontrar alguma saída negociada com a oposição liberal, nucleada no chamado Conselho de Coordenação.

De acordo com Lukashenko, a Bielorrússia está sendo alvo de uma nova “revolução colorida”, referindo-se à mobilizações em distintos países da antiga esfera soviética, que contavam com o apoio de potências estrangeiras e que, em sua maioria, terminaram com trocas de governos aliados da Rússia para governos pró-ocidentais. Estas “revoluções de cor” (como na Geórgia em 2003, na Ucrânia em 2004 e novamente em 2014) eram funcionais à política de cerco dos Estados Unidos (e da União Europeia) à Rússia, rodeando-a com estados incorporados à OTAN e/ou à UE. O presidente bielorrusso usou o argumento de que tentam atingir seu governo, mas que o verdadeiro alvo é a Rússia, como forma de pressionar Vladimir Putin que demorou vários dias para dar-lhe apoio explícito.

A hostilidade de potências imperialistas que buscam reduzir ao mínimo possível a esfera de influência russa é inegável. A OTAN pratica exercícios militares na Lituânia, na fronteira com a Bielorrússia. É conhecida a relação das potências europeias e do governo estadunidense com as figuras tradicionais da oposição liberal, que, assim como Lukashenko, pertencem à mesma elite nacional. E, na crise da União Europeia, depois de várias idas e vindas, decidiu impor sanções aos funcionários do regime. O mesmo fizeram os países bálticos. E o primeiro-ministro da Polônia, do partido de extrema direita Lei e Justiça, anunciou um programa de mais de 10 milhões de euros para apoiar a oposição bielorrussa.

No entanto, o cenário geopolítico e os interesses em jogo fogem de uma lógica binária da Rússia versus Ocidente, que não é composto por um bloco homogêneo de potências imperialistas, mas possui interesses divergentes. Isto é evidente no caso da Alemanha, onde o governo de Angela Merkel tem como prioridade a construção do gasoduto Nord Stream 2 junto à Rússia e, em função destes interesses, evita antagonizar com Vladimir Putin, política que divide a EU e deteriora a má relação com o governo de Donald Trump.

Durante anos, Lukashenko soube explorar a posição geopolítica da Bielorrússia como um tipo de “verniz” entre a Rússia e a OTAN, o que lhe permitiu de alguma forma jogar com todos os limites neste caso, em especial com a dupla dependência econômica tanto do petróleo russo como do mercado europeu. Como explica o jornalista Rafael Poch de Feliú em um artigo recente, este equilíbrio consistia em neutralizar a hostilidade das potências imperialistas com as oscilações na relação com a Rússia. Lukashenko participa do acordo entre a UE e a Associação Oriental (Ucrânia, Moldávia, Bielorrússia, Geórgia, Azerbaijão e Armênia). Não reconheceu a independência da Ossétia do Sul e tampouco a anexação da Crimeia por parte da Rússia. De fato, atuou como mediador no conflito entre a Rússia e Ucrânia em 2015. Recentemente, inclusive, por sua afinidade com Trump, Lukashenko se aproximou dos Estados Unidos, tornando-se importador de seu petróleo e, em fevereiro, recebeu Mike Pompeo em Minsk, na primeira vez em que um secretário de estado estadunidense visitou o país em décadas. O interesse do imperialismo estadunidense não é apenas na Rússia, mas sobretudo em neutralizar a crescente influência da China que tem investimentos muito importantes na Bielorrússia.

Estas alianças versáteis permitiram certa tolerância das potências ocidentais, mas que agora chega ao seu fim. E também explicam a desconfiança de Putin que, após ter vacilado, decidiu-se por sustentar esse aliado incômodo, ainda que não se saiba precisamente no que consiste tal apoio, levando em conta que o Kremlin não parece disposto a uma intervenção militar em larga escala. Esta decisão não apenas tem motivações externas, mas também domésticas, já que Putin enfrenta uma crescente oposição a seu projeto de perpetuar-se no poder.

Seja qual for, este auxílio teria como preço aprofundar a integração da Bielorrússia com a Rússia, congelada em uma etapa inicial pelo próprio Lukashenko. Até mesmo a revista Foreign Affairs, uma das principais usinas da política exterior do imperialismo estadunidense, tem começado a agitar o fantasma de uma “anexação suave”, como mais um argumento para uma política de sanções ainda mais duras.

No entanto, para além da inegável dimensão geopolítica e do posicionamento de diversos atores que veem na crise uma oportunidade para usá-la em função de seus interesses, a origem deste levante nacional é genuinamente bielorrusso, e está no rechaço a um governo que tornou-se profundamente impopular. Muitos analistas defendem que a Bielorrússia é um tipo de “relíquia soviética” porque Lukashenko manteve a propriedade estatal sob um setor significativo da economia. Na realidade, seguiu outra via de restauração capitalista, diferente da famosa “terapia de choque” aplicada por Yeltsin na Rússia e na maioria das ex repúblicas soviéticas, com um programa gradual de privatizações, que conduziu da mesma forma à formação de uma classe dominante local entrelaçada ao Estado e, com o tempo, a um crescente desemprego, precarização do trabalho e quedas salariais por outro lado.

Lukashenko desmontou grande parte do “Estado benfeitor” herdado do período “soviético”, precarizou os empregos, aumentou a idade de aposentadoria, cercou o direito à greve e liquidou a liberdade de organização sindical dos trabalhadores. Mas talvez sua medida mais anti operária tenha sido a introdução do chamado “imposto ao parasitismo social” em 2017, que obrigava os trabalhadores desempregados a pagarem tributos, e que se viu obrigado a retirar logo após um processo de lutas e mobilizações. Estes ataques e políticas de ajuste, exigidas por sucessivos planos de pagamento das dívidas com o FMI, são a base do enorme descontentamento operário e popular que se combinou explosivamente com as demandas democráticas.

A grande novidade e o mais promissor é a entrada em cena de amplos setores da classe operária, o que marca uma grande diferença em relação às “revoluções coloridas” e mostra a profundidade deste processo. Também é o que mais preocupa os aliados e inimigos internacionais de Lukashenko. O processo de greves e agitação política toma importantes e emblemáticas fábricas, sobretudo no setor público, apesar do papel dos sindicatos como agências diretas do governo.

O sociólogo de esquerda Volodymyr Artiukh aponta a potencialidade e também os limites atuais deste processo para abrir o caminho à greve política geral. A discussão mais importante é estratégica. Muitos comparam a situação da classe operária bielorrussa com o surgimento do Solidariedade na Polônia, mas omitem o central deste balanço, no qual Lech Walesa e a igreja católica se transformaram em agentes da restauração capitalista. O mesmo aconteceu com os mineiros russos, que tinham uma direção política afinada com Boris Yeltsin.

Hoje, na Bielorrússia, a oposição burguesa hegemoniza os protestos com seu programa e a dirige através do Conselho de Coordenação. É necessário que a classe operária, na luta contra o regime autoritário de Lukashenko, conquiste sua independência política das duas frações burguesas em disputa. Disto dependerá o destino desta rebelião que ainda tem seu desfecho aberto.




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