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TRIBUNA ABERTA | Quem vota em Jair Bolsonaro, por que e o que esperar do bolsonarismo?

sábado 29 de setembro de 2018 | Edição do dia
i - Agradeço as críticas e sugestões dos professores Cláudio Maia, Walmir Barbosa, Danilo Martuscelli e João Alberto da Costa Pinto. Os erros e imprecisões que este artigo por ventura contém são de minha inteira responsabilidade.
ii -https://admin.cut.org.br/system/uploads/ck/CUT_Brasil/VOX_POPULI_ELEICOES_PRESIDENCIAIS_DIVULGACAO_26_07_1.pdf >>> acessado em 1 de agosto de 2018.
iv - Consideramos como fascismo clássico aquele desenvolvido entre os anos 20 e 40 do século XX em diversos países e que teve no Nazismo alemão a sua experiência mais acabada como partido, ideologia e regime.
v - no momento em que escrevemos, o candidato do PT é Fernando Haddad, pois a candidatura de Lula foi impugnada e Bolsonaro aparece em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de votos para o primeiro turno.

Quem é o eleitor de Bolsonaro?

Pesquisa do Instituto Vox Populi em parceria com a Central Única dos Trabalhadores, divulgada em julho de 2018, revela 12% de intenção de voto no deputado Jair Bolsonaro, do PSL. Trata-se de um voto orgânico, não influenciado pelos cálculos do “voto útil”, pois na pesquisa também aparecem o ex-presidente Lula e diversas outras candidaturas conservadoras como Geraldo Alckmin e Marina Silva, que apresentavam maior viabilidade eleitoral do que hoje, dividindo o voto antipetista. Ainda não havia ocorrido o atentado ao candidato, o impedimento definitivo da candidatura Lula e nem a desidratação das candidaturas Alckmin e Marina, como acontece hoje, o que ampliou as intenções de voto no deputado em todos os indicadores (região, sexo, idade, faixa de renda, faixa de idade e nível de escolaridade), como indicam pesquisas recentes. Por isso, a pesquisa de julho nos permite apurar melhor quem é o eleitor convicto de Jair Bolsonaro, que forma o “núcleo duro” do eleitorado bolsonarista e que mesmo após as eleições tende a se manter como uma base social importante para a extrema-direita. É importante ressaltar que, com pequenas variações, as tendências aqui apresentadas também aparecem em outras pesquisas realizadas na mesma época, particularmente as do IBOPE e do DataFolha, e que posteriormente tenderam a se confirmar.

Decompondo-se esse percentual por critérios regionais, é nas regiões Sul, onde tem 19% e Centro-Oeste/Norte, onde tem 17% que o candidato apresenta maiores índices de intenção de voto. Na região Sudeste ele reproduz sua média nacional, com 12%, enquanto na região Nordeste este índice cai para 7%. Assim, é nas regiões Sul e Centro-Oeste/Norte que Bolsonaro tem os melhores índices de intenção de voto. Decompondo os dados, além de sulista e centroestino/nortista, podemos dizer que predominantemente o eleitor médio de Bolsonaro é homem (15% no eleitorado masculino, contra 9% no feminino); jovem, tem entre 16 e 29 anos, (16%, contra 12% entre os adultos e 6% entre os maduros); pertence às classes médias (incluindo-se aqui a pequena burguesia), com renda mensal acima de cinco salários mínimos (17%, contra 9% entre os ganham até dois SM e 14% entre os que ganham de dois a cinco SM); tem nível de escolaridade médio ou superior (16% para cada nível contra 7% entre os que têm ensino fundamental) e é majoritariamente evangélico (14% contra 10% entre os católicos) i.

Socialmente falando é um eleitorado predominantemente formado por setores da pequena burguesia urbana e rural (comerciantes, prestadores de serviços, industriais, pequenos proprietários rurais), trabalhadores de classe média (profissionais liberais, autônomos, funcionários públicos) e agentes do aparato repressivo estatal (militares, policiais, etc.). É fato que o bolsonarismo conta com a adesão de setores das classes dominantes, particularmente dos grandes proprietários de terra, e dos trabalhadores precarizados, mas é nos setores de classe média que apresenta maior inserção. A adesão proletária à candidatura do deputado é relativamente reduzida e limitada à categorias profissionais que se auto-identificam como micro empresários (caminhoneiros, camelôs, e outras categorias de trabalhadores autônomos precarizados). Portanto, setores bastante sensíveis ao problema da segurança pública e que tendem a ver os direitos trabalhistas como privilégios de uns poucos. Nos setores incluídos no mercado formal de trabalho e/ou corporativamente organizados e naqueles trabalhadores precarizados que acessam as políticas sociais compensatórias a posição predominante é de hostilidade à sua candidatura.

De onde vem sua força eleitoral no atual período?

À primeira vista parece surpreendente que o candidato favorito para disputar o segundo turno nas atuais eleições presidenciais seja um obscuro deputado de direita, militar da reserva, de origem malufista, filiado a um partido minúsculo, membro veterano do “baixo clero” da Câmara dos Deputados (está no sétimo mandato), sem qualquer participação expressiva nos grandes embates políticos nacionais, notabilizado apenas pela defesa dos interesses corporativos dos militares e pelos juízos políticos e morais estapafúrdios à luz da civilidade e do Estado de Direito. No entanto, seu favoritismo eleitoral expressa a força política de uma extrema-direita que sempre esteve por aí, mas que recentemente ganhou musculatura organizativa e mobilizatória, o que lhe tornou capaz de mudar o eixo da disputa política no país, até hoje polarizada entre PT e PSDB.

Desde a ascensão do PT ao governo federal, em 2003, formou-se uma oposição social com forte inserção nas classes sociais acima descritas, porém, polarizadas politicamente pelo PSDB e pelo PFL/DEM, partidos que se mantiveram na oposição aos governos petistas todo o tempo. Na chamada “crise do Mensalão” (2005) esses setores se mobilizaram fortemente contra a administração petista, patrocinando manifestações massivas de direita, nas ruas, na mídia e nas redes sociais, como não se via desde os idos do golpe de 1964 e antecipando o que viria a partir de 2013. Nas campanhas eleitorais de 2006 e 2010 tais setores se alinharam às candidaturas de oposição, mas particularmente em torno da plataforma neoliberal extremada representada pelas candidaturas da aliança PSDB-PFL/DEM. No entanto, em 2013 a força política e organizativa dessa oposição de direita se adensou, mobilizando setores ainda passivos e adquirindo um perfil ainda mais reacionário, demonstrando que a perspectiva fascista tinha diante de si uma base social de massa, que poderia ser mobilizada para além do oposicionismo institucional representado pelo peessedebismo/peefelismo. Em 2015 sua emergência na cena política foi fundamental para conferir “apoio popular” ao impeachment e ao golpe em curso desde então; além de alimentar as pretensões eleitorais do deputado. A crise do sistema de representação politica, do qual o PSDB e o DEM são dois importantes pilares, favoreceu o deslocamento de parte desses setores de oposição para a extrema-direita e para a perspectiva da “antipolítica” típica do fascismo clássico, como veremos adiante, favorecendo sua autonomia e mesmo hostilidade diante dos partidos tradicionais de direita.

A ascensão politica da extrema-direita, e do fascismo em seu interior, é um fenômeno mundial, alimentado no longo prazo pelo predomínio do neoliberalismo como programa político principal do capital internacional, pela crise econômica mundial e pela ofensiva contra os trabalhadores. Neste sentido o que ocorre no Brasil reflete a correlação de forças e o processo da luta de classes na atualidade em termos internacionais. No entanto, para além da dinâmica internacional da luta de classes e da trajetória específica da direita no Brasil, é preciso considerar que, contraditoriamente, estas forças francamente hostis ao lulismo e ao petismo foram alimentadas e fortalecidas pelas próprias políticas de governo do PT na presidência da República entre 2003 e 2016. Ou seja, o apogeu do lulopetismo alimentou o seu adversário.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que uma das facetas da política econômica dos governos do PT foi o fortalecimento dos setores primários e/ou de baixa densidade tecnológica da economia, particularmente do agronegócio. A onda internacional de valorização das commodities, reforçando o papel dos setores primário-exportadores na conquista de sucessivos superávits na balança comercial e as políticas governamentais de financiamento e apoio à expansão da agricultura comercial possibilitaram o fortalecimento deste segmento econômico e dos setores a ele vinculados (distribuição de alimentos, matérias primas e insumos agrícolas, assistência técnica agronômica e veterinária, e um sem número de atividades desenvolvidas nas pequenas e médias cidades, mais ou menos ligadas à cadeia do agronegócio e dependentes da renda gerada por ele). Nas regiões Sul e Centro-Oeste/Norte, justamente aquelas onde o bolsonarismo é mais forte, o agronegócio se constitui como o setor econômico mais importante, fortalecendo-se ainda mais no período em relação ao cenário nacional. Mesmo nos setores da pequena propriedade rural, que foram relativamente preteridos pelos governos petistas em favor do agronegócio, o apoio ao bolsonarismo é considerável, por razões que exporemos adiante. Neste sentido, a base de massas do bolsonarismo ganhou musculatura material durante os governos do PT, fazendo com que o eleitor típico de Bolsonaro seja homem, jovem, religioso, conservador, anticomunista ferrenho e morador das pequenas e médias cidades do interior.

Também é preciso considerar que a adesão ao neoliberalismo pelos governos petistas, a adoção de uma política de conciliação de classes em relação aos interesses dominantes e de transformismo em relação aos trabalhadores e suas organizações, contribuíram para fortalecer a cultura da “antipolítica” que alimenta o bolsonarismo. É claro que a “antipolítica” também é uma politica, mas a estamos entendendo enquanto negação da esfera de representação politica como instância de representação dos interesses sociais junto ao Estado, como instância de mediação e negociação dos conflitos sociais e da luta de classes. O discurso da “antipolítica” faz parte do pensamento autocrático em geral, inclusive do neoliberalismo, mas particularmente se insere no ideário fascista. Nesta perspectiva, a esfera de representação política, particularmente aquela definida pelos critérios democráticos de escolha dos representantes, é tida como fonte de desestabilização social, pois baseada na divisão social e no conflito de interesses entre classes e grupos sociais, o que fere a unidade e a coesão sociais, necessárias para o desenvolvimento e o progresso do conjunto da nacionalidade. Assim, em lugar da representação politica deve prevalecer a representação burocrática, em que o Estado é ocupado e dirigido pela burocracia, pois esta pretensamente representa o conjunto do Povo-Nação, não suas partes, como fazem os políticos em sentido estrito. A esta altura o leitor atento deve estar se perguntando se Mussolini e Hitler eram ou não políticos! Sim, eles eram, mas se diziam estar acima dos interesses específicos de classes e grupos sociais, pois representavam toda a Itália ou toda a Alemanha. Neste sentido, assumiam a perspectiva da representação própria da burocracia e justificavam seu direito ao comando do Estado com base nisto. Ora, neste aspecto o fascismo reforça um dos elementos constitutivos do Estado burguês, o princípio da representação burocrática, em detrimento de outro, o princípio da representação politica. No que se aproxima da própria ideologia neoliberal, que também refuta a representação politica quando argumenta que determinados aspectos das políticas de Estado, cruciais para a vida social, como a politica econômica, não devem ser definidas por critérios “políticos e ideológicos”, mas sim por critérios “técnicos”, devendo ficar a cargo de especialistas, ou seja, de burocratas e tecnocratas! A pergunta que fica no ar é: especialistas para que e para quem? Em certa medida, é esta base ideológica comum que permitiu à Bolsonaro transitar do nacional-estatismo para o neoliberalismo em termos programáticos sem grandes turbulências, como veremos mais à frente.

Voltando ao nosso argumento, avaliamos que as políticas adotadas pelo PT no governo federal contribuíram para o fortalecimento da cultura da “antipolítica”. Ao longo dos anos, particularmente as novas gerações (aqueles atingiram a adolescência sob o período de governo do PT), foram (des)educadas politicamente pelo fenômeno do lulismo nos seguintes pontos:

a) entendendo que o neoliberalismo e sua perspectiva antiestatista e de eliminação dos controles políticos sobre a movimentação do capital são inevitáveis, pois mesmo o maior partido do espectro político historicamente identificado como não-neoliberal adota políticas neoliberais quando assume o governo. Além de desqualificar a perspectiva transformadora e mesmo reformista da ação política, desqualifica ainda sua dimensão propositiva e seu papel na mediação dos conflitos, fortalecendo uma espécie de “realismo cínico” fascistizante e messiânico.

b) deslegitimando a perspectiva política dos partidos de esquerda, não apenas aplicando o programa do grande capital, mas adotando práticas fisiológicas e patrimonialistas tradicionalmente identificadas com os partidos de direita. O que deu base para a criação de um senso comum que concebe todos os partidos como corruptos e degenerados (“todos os partidos são iguais”, “o maior esquema de corrupção da história do país”, etc.), favorecendo a associação liberal entre estatismo e corrupção/ineficiência e o próprio discurso da “antipolítica”;

c) submetendo os movimentos sociais a uma lógica transformista, por meio de sua cooptação e transformação em correias de transmissão das políticas governamentais, em especial das políticas sociais compensatórias, o que os apresenta como reivindicantes de demandas meramente corporativas e assistencialistas, não de interesse geral, corroendo assim a legitimidade política e ideológica de sua constituição como sujeitos políticos e de sua pauta.

d) com o fenômeno do lulismo criou-se a antípoda da perspectiva de auto-organização dos trabalhadores, tradicionalmente identificada com o petismo e com a cultura política da esquerda socialista, apesar da já longeva opção petista pela via institucional. O paternalismo lulista permitiu ao pensamento liberal reforçar a identificação entre socialismo/estatismo/populismo e destes com privilégios, incompetência, ineficácia e manipulação política. O que deslegitimou aos olhos dos setores médios as políticas minimamente voltadas para as classes populares e que fundamentam o caráter neoliberal moderado dos governos petistas.

Finalmente, é preciso considerar a importância da chantagem do “mal menor” (ruim com o PT, pior com o PSDB/DEM) e do transformismo impostos pelos governos petistas à esquerda e aos movimentos sociais na apatia politica e no desarme ideológico de intelectuais, artistas e lutadores sociais frente à ofensiva ideológica da grande mídia e dos aparelhos privados de hegemonia de perfil neoliberal e ou fascista (Instituto Millenium, Movimento Brasil Livre, Vem pra Rua, Indignados On Line, Movimento Brasil 200, etc.). O ataque não só ao petismo, mas à democracia, à perspectiva politica do socialismo e aos valores igualitários da esquerda não suscitou reação à altura, configurando uma derrota no campo ideológico.
A estrutura ideológica do bolsonarismo

Da confluência entre a cultura política autocrática presente historicamente em setores importantes das classes dominantes e das classes médias, e os influxos político-ideológicos estimulados pelo lulismo nos governos petistas reforçou-se uma estrutura ideológica aparentemente contraditória, mas que dá sentido à ação da extrema-direita. Uma concepção que faz uma miscelânea de idéias e valores conservadores e reacionários de origens e matrizes variadas e é coerente com a perspectiva fascista em tempos de hegemonia cultural neoliberal.

De um lado se realça a tradicional perspectiva autocrática, que considera como fontes de caos, divisionismo, desorganização e irracionalidade o processo político em geral, e em particular o processo democrático e a participação política das massas populares. A ação política das massas populares é vista como algo que serve apenas para manter no poder políticos profissionais que mobilizam o apoio popular para representar interesses escusos e reforçar suas posições de mando nos partidos e no interior do Estado por meio da corrupção e de medidas populistas e demagógicas. Nisto reside um dos aspectos do atual discurso da “antipolitica”. Este foi um dos argumentos utilizados em 1964 para justificar o golpe militar e legitimá-lo como “revolução”. Porém, há mais, e nisto reside um dos elementos fundamentalmente fascistas desta cultura autocrática, qual seja a negação ontológica das classes subalternas como sujeito, o não reconhecimento do seu direito de elaborar demandas próprias e acessar o Estado e a arena da disputa politica em nome delas; o que requer o tratamento manu militari da sua ação político-social e até mesmo sua eliminação física. Quando Bolsonaro afirma que a Ditadura “matou e torturou pouco” ou promete fuzilar a “petralhada” para “limpar o país” está reverberando esta concepção. Quando convoca o general Mourão, outro militar saudoso da Ditadura como ele, para compor sua chapa presidencial a reforça ainda mais.

Outro elemento propriamente fascista, e que deriva da compreensão da luta política como império da violência, é a recusa da ação consciente, racionalmente definida e autonomamente executada em favor do “deixar-se levar”, da submissão voluntária, mas irracional, à direção dos que portam a “solução final”, simples e sem mediações, para os intrincados problemas do real. Atualmente o discurso da “antipolítica”, alimentado pela crise do sistema de representação política, potencializa esse componente do ideário fascista.

O nacionalismo também aparece. Mesmo sem se vincular à perspectiva de independência econômica e de expansão imperialista, também presentes no fascismo clássicoii, hoje o ideário nacionalista aparece identificado com certa xenofobia. Veja-se, por exemplo, a hostilidade aos médicos cubanos contratados pelo Programa Mais Médicos, os ataques à postura amigável do Itamaraty e da Petrobrás quando da nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia e a reação recente aos imigrantes venezuelanos em Roraima (estado onde Bolsonaro ganha até mesmo de Lula nas intenções de voto e defendeu criação de um “campo de refugiados”). Porém, a perspectiva nacionalista aparece identificada principalmente com um “patriotismo de caserna”, saudoso da Ditadura Militar (1964-1985) e que a vê como momento de apogeu da nacionalidade, quando se criaram as condições para o pleno desenvolvimento nacional, devidamente desbaratadas após a redemocratização. Com base no revisionismo que predomina na historiografia sobre o golpe e a Ditadura desde os anos 2000 e numa narrativa inventada sobre o período, criou-se uma imagem falsa da Ditadura Militar, tida como um período de ordem, prosperidade, honestidade nas relações pessoais, segurança pública, probidade administrativa, compromisso com a coisa pública por parte dos agentes públicos, defesa dos valores tradicionais da família, da religião e da propriedade, etc. Ou seja, o oposto do descalabro criado pela democracia, marcado pela crise econômica, pela corrupção, pela criminalidade, pelo abandono dos valores “sadios”, etc. Mas uma imagem que, mesmo historicamente falsa, dá sentido à mobilização e manifestações de grande repercussão. Daí o desembaraço dos que, em plena luz do dia, defendem uma intervenção militar e a volta da ditadura. A presença do general Mourão na chapa presidencial de Bolsonaro reforça esta perspectiva fascista.

Soma-se a isso um incisivo conservadorismo nos planos comportamental e cultural, que reage ao identitarismo pós-moderno e às pautas democráticas valorizando a família tradicional, baseada na supremacia masculina e paterna sobre mulher e filhos; alimentando forte preconceito contra negros, índios e homossexuais; reagindo às pautas identitárias e ao reconhecimento de direitos para negros, mulheres, lgbt’s, pobres, etc. Na atualidade essa perspectiva se manifesta no combate à descriminalização do aborto, ao casamento homossexual, à dita “ideologia de gênero” e defende propostas como “Escola sem Partido”, “cura gay”, etc., das quais Bolsonaro se tornou propagandista.

Por outro lado, ao invés da perspectiva corporativista de unificação do ente nacional ou racial pela ação estatal totalizante e “totalitária”, em tempos de hegemonia neoliberal o autocratismo fascista se combina com o individualismo proprietário em suas diversas faces. O que, para além da hostilidade fascista aos direitos civis e à democracia liberal, repõe em novas bases a tradicional afinidade entre fascismo e liberalismo baseada no entendimento da desigualdade social como fenômeno natural e ou divino. Esta mescla entre ideário fascista clássico e neoliberalismo se apresenta nos seguintes pontos:

a) defesa do empreendedorismo e da livre iniciativa, como alternativa aos direitos sociais e trabalhistas e às políticas sociais compensatórias, tidos como privilégios, “estatismo”, fonte de demagogia e leniência com “os fracos”. Esta perspectiva se reproduz em setores da pequena burguesia e mesmo do proletariado (trabalhadores autônomos e precarizados). Nas grandes cidades esta perspectiva polariza ainda certos setores proletários desencantados com o sistema de representação política e afeitos ao discurso da “antipolitica”.

b) ultraliberalismo instrumental, presente na tese manhosa de que em nome da eficiência os serviços e as empresas públicas devem ser privatizados, porém o Estado deve apoiar com recursos públicos ou reduzindo impostos os setores dinâmicos da economia;

c) crença numa religiosidade cristã conservadora, que combina a defesa da família, das relações hierárquicas entre os gêneros e uma visão moralista do cotidiano com a teologia da prosperidade, que enxerga a conquista da propriedade e do sucesso profissional como graça divina. Neste sentido, o bolsonarismo também foi cevado nos últimos anos pelo avanço do pentescostalismo evangélico e da renovação carismática católica, fortalecendo a perspectiva conservadora nos planos social e cultural. Não à toa, o candidato tem obtido apoio de lideranças e entidades religiosas, particularmente entre os evangélicos, como a Confederação dos Pastores do Brasil.

Portanto, em tempos de hegemonia ideológica do neoliberalismo o discurso fascista se atualiza, incorporando contraditoriamente o ultraindividualismo e a defesa do livre mercado, sem abandonar o salvacionismo da “solução final”. Neste ponto, o “antiestatismo” neoliberal se cruza com a “antipolitica” fascista. A adesão de Bolsonaro à pauta neoliberal extremada, abandonando a perspectiva nacional-estatista com a qual era historicamente identificado e visando atrair o apoio das frações hegemônicas do bloco no poder, contribuiu para reforçar a associação contemporânea entre o ideário fascista clássico e o neoliberalismo, mostrando sua afinidade nos tempos atuais.

Por que o voto em Bolsonaro?

Em primeiro lugar, além dos influxos ideológicos alimentados pelo lulopetismo, a crise do sistema de representação política criado a partir da Nova República abriu brecha para um discurso da “antipolítica” e de “urgência” que propugna “soluções fortes”, definitivas, para a crise global. Daí o apoio à volta da Ditadura Militar, como se o problema fosse falta de decisão e “patriotismo”; o apoio à tortura, como se a criminalidade se devesse à impunidade e aos “direitos humanos” dos criminosos; o apoio à repressão politica, como se as demandas sociais existissem por liberalidade do Estado em permitir manifestações políticas, e por fim, a crítica ao papel da política como instância de mediação e negociação dos conflitos sociais e à universalidade de direitos. Por sua origem militar e pelo perfil fascista de seu discurso Bolsonaro se apresenta como o “genérico” da intervenção militar direta, alimentando a perspectiva salvacionista de que vai sanear o sistema de representação política, varrer a corrupção, cortar privilégios, acabar com a criminalidade, etc., ou mesmo promover um “auto-golpe”, fechando o Congresso, os partidos e cancelando eleições.

Em segundo lugar, a crise econômica radicaliza a disputa pela renda e pelas oportunidades no mercado, inclusive o de trabalho, particularmente em setores da classe média que se vêem ameaçados em seu status e em seus rendimentos pela melhoria da renda salarial e pelo acesso a determinados bens de consumo de setores anteriormente marginalizados. Daí a crítica às políticas inclusivas e às políticas sociais compensatórias adotadas pelos governos petistas. O antipetismo desses segmentos sociais de classe média reside mais nisso do que na própria questão da corrupção, tão alardeada.

Em terceiro lugar, um elemento importante na pauta do candidato é sua política de segurança pública. Conforme anunciado aos quatro cantos, para o candidato “violência se combate com violência”, ou seja, à criminalidade não só o Estado deve responder de maneira mais repressiva, mas os próprios cidadãos devem ter o direito de reagir aos ataques à sua vida e ao seu patrimônio. Neste sentido Bolsonaro defende leis e penas mais duras, melhor armamento e maior liberdade de ação para as forças repressivas e liberalização do direito à posse de armas para os indivíduos privados. É uma visão fascista do problema da segurança pública, pois entende que este deve ser resolvido com mais repressão e violência, não com políticas sociais. Além de atrair o apoio entusiasmado de militares, policiais e demais agentes repressivos, esse discurso também reverbera a perspectiva proprietária pequeno burguesa típica, que define o direito de propriedade como algo sagrado. O aumento da violência e da criminalidade tem estimulado o verdadeiro pavor dos proprietários em geral, do pequeno lojista às grandes redes de comércio, com o crescimento dos assaltos, “arrastões”, roubos de carga, seqüestros e do próprio tráfico de drogas. No campo, além dos assaltos acrescente- se a isso o medo dos acampamentos e ocupações de terra, a unificar numa mesma consciência proprietária de latifundiários à camponeses. Não à toa tais segmentos hoje bolsonaristas possuem um histórico de vinculação à partidos conservadores e organizações de extrema direita, como a UDR.

Portanto, essa pauta é afinada com os interesses corporativos do agronegócio, do latifúndio em geral e de segmentos significativos da pequena burguesia e da classe média. Tradicionalmente atemorizados diante da possibilidade de perda da propriedade, tais segmentos são altamente sensíveis ao problema da criminalidade e da violência urbana e francamente hostis às ocupações de terras e imóveis pelos movimentos sociais. Não à toa, o candidato não só é contra a reforma agrária e ao direito à terra de indígenas e quilombolas, como considera os movimentos de luta pela terra e pela moradia nada menos que organizações criminosas, que devem ser tratadas à bala. Esse discurso atrai o apoio desses setores sociais, principalmente do agronegócio, do latifúndio em geral e da pequena burguesia rural, descrente no poder de justiça do Estado e ansiosa por se auto-defender de bandidos e também dos sem terra. Se somarmos a este discurso o compromisso do candidato com a ampliação do crédito rural e a redução ainda maior das restrições ambientais à expansão da produção agrícola, não surpreende que grande parte das lideranças e entidades representativas do agronegócio e dos grandes proprietários de terras apóiem Bolsonaro, inclusive a direção da UDR. Na verdade, esses segmentos lideram esta frente eleitoral e dão apoio material à candidatura do deputado. O que surpreende é que mesmo setores vinculados à agricultura familiar, tradicionalmente polarizados por uma perspectiva mais progressista em termos políticos e ambientais, também venham aderindo ao bolsonarismo por conta do direito de propriedade e do tema da segurança no campo, evidenciando sua subordinação ideológica às frações agrárias das classes dominantes nas pequenas e médias cidades e a vocação hegemônica desse discurso.

A adesão de Bolsonaro à determinados aspectos da agenda neoliberal extremada também explica o apoio de vários setores à sua candidatura. De um lado, seu compromisso com as privatizações, a autonomia do Banco Central, o ajuste fiscal em um ano, a reforma da previdência, a emenda que corta gastos públicos por 20 anos e a redução da carga tributária para o capital busca atrair o apoio das classes dominantes e qualificá-lo como um gestor “confiável” para o “mercado”. Por outro lado, seu apoio à reforma trabalhista e à redução dos gastos com as políticas sociais compensatórias atrai o apoio da pequena burguesia, que emprega mão de obra e para quem os custos salariais tem um peso significativo em seus gastos totais, e de setores das classes médias, hostis à políticas de proteção e inclusão social.

Finalmente, o histrionismo e a agressividade de Bolsonaro dão-lhe uma aparência de candidato outsider, de alguém que não tem compromisso com as elites políticas e governamentais, o que é importante numa situação de crise do sistema de representação política, pois dá à sua intervenção pública um caráter pretensamente espontâneo, verdadeiro e direto, sem “papas na língua”; escamoteando o fato de que o candidato é um político profissional há mais de trinta anos. Isto combina com a perspectiva fascista clássica da “solução final”, de negação das mediações, de irracionalismo, tão ao gosto das classes e segmentos sociais polarizados pela “antipolitica”.

Do Bolsonarismo emergirá um movimento fascista típico?

Apesar de até o momento deter o maior índice de intenção de votos na eleição presidencialiii, de galvanizar o voto de direita e de possuir inserção em segmentos sociais significativos, a candidatura Bolsonaro ainda não apresenta as condições para dar organicidade ao movimento criado em torno de suas pretensões eleitorais. O crescimento de sua candidatura em termos de intenção de votos pode gerar uma onda de adesismo baseado no antipetismo e atrair votos dos outros candidatos da direita, principalmente Alckmin. Também poderá atrair apoio material de outros setores do grande capital, ainda vinculados a outras candidaturas, porém, amedrontados com a possibilidade vitória do petismo. Porém, mesmo contando com a presença militante de seus apoiadores nas redes sociais e com o apoio de entidades corporativas e culturais variadas e numerosas, falta-lhe ainda uma estrutura política sólida e suficientemente articulada à sua rede de apoiadores, que unifique essas iniciativas e entidades num movimento que se mantenha para além das eleições polarizando o processo político. Esse papel poderia ser exercido por um partido, no entanto, o mesmo ainda não existe. O PSL é fundamentalmente um partido fisiológico, que absorveu a candidatura do deputado por razões puramente eleitoreiras, visando ampliar seu espaço institucional. Neste sentido, está relativamente longe ainda do esforço de organização, mobilização, pregação ideológica e enraizamento na sociedade civil necessários para a formação de um movimento político e social de tipo fascista clássico, com vida orgânica, capacidade de intervenção permanente na cena política e de criar consenso de massas ativo e militante. O que não quer dizer que isto não possa vir a ocorrer no futuro, com Bolsonaro e o PSL ou não, pois a base social de massa e o caldo de cultura de perfil fascista tendem a permanecer por tempo considerável na cena política brasileira, podendo ser galvanizada por outra liderança politica e organização partidária.

Esta hipótese é particularmente plausível no caso de um retorno do PT ao governo federal, pois o campo político da extrema direita continuará operando com relativa força durante o atual período da luta de classes, radicalizando a oposição ao governo. Por isso, podemos afirmar que por enquanto a mobilização em torno de Bolsonaro apresenta caráter proto-fascista, carecendo ainda de uma estrutura organizativa unificada e presente de forma orgânica nos aparelhos privados de hegemonia e na sociedade política. Caso o movimento de extrema-direita mantenha seu atual perfil proto-fascista, ele tende a funcionar como base de massa mobilizável em termos políticos e eleitorais pelos partidos da direita não-fascista, que devem acentuar a perspectiva conservadora de seus programas para atrair este tipo de apoio, ou mesmo de um governo oriundo de uma intervenção militar.




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