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OPINIÃO | Quem lucra com o Escola sem Partido? Fundamentos e análise do Projeto de Lei

O projeto de lei que visa acabar com a doutrinação ideológica nas escolas tem ganhado destaque nos debates acerca da educação no país. Existem alguns aspectos por trás do projeto que queremos abordar neste texto - os interesses empresariais, os fundamentos ideológico-políticos e os impactos na sociedade, se porventura aprovado. Comecemos pelo começo, portanto.

quarta-feira 22 de junho de 2016 | Edição do dia

Foto: Thanise Melo

Não pretendemos destrinchar minuciosamente o projeto, pois o interesse aqui é desnudar o que há por trás. Em síntese, o projeto de lei Escola sem Partido (867/2015) visa o apostilamento do conhecimento. Para além de fabricar em escala industrial verdadeiras marmitas de cultura e endurecer o controle ideológico, na prática ele significa homogeneizar o conteúdo didático nos livros a fim de limitar o processo natural de formação político-ideológico do indivíduo.

Interesses privados de alguns dos gigantes do empresariado educacional

Existem interesses diversos nesse processo de apostilamento (que diga-se de passagem, é inspirado em modelos norte-americanos e já é realidade existente no Brasil há anos). A disputa pelo material didático no Brasil passa por saber quem vai ganhar o bolão de vender o seu conteúdo para as escolas. Aqui a concorrência vai para além do MEC, é capitalismo puro. A ideia do Escola sem Partido visa, entre outras coisas, ampliar e garantir o lucro das empresas privadas do ramo.

Essa disputa pelo maior pedaço do bolo chega a setores realmente poderosos do lobby educacional. Uma das empresas de interesse para o tema da Escola sem Partido é o Grupo Abril, que há pouco tempo atrás figurava entre as 10 maiores empresas do setor a nível mundial. Mais conhecido por produzir revistas de qualificação duvidosa, como a Veja, Exame e Caras, o Grupo Abril praticamente monopoliza o ramo da educação básica no país com seu braço corporativo no segmento da educação. Eles atendem, com seus produtos e serviços, mais de 130 mil escolas e a cerca de 35 milhões de alunos em todos os estados da federação.

Talvez você ou seu filho(a) não reconheça a marca Abril em seus cadernos e apostilas de escola, mas muito provavelmente passou perto dos materiais produzidos pela empresa, seja pela via do sistema de ensino Anglo, Red Baloon ou outros menos conhecidos. Só em 2013, o grupo faturou um total de R$ 1,039 bilhão, obtendo lucro líquido de quase R$ 100 milhões. Recentemente a empresa vendeu a totalidade das ações do Abril Educação para o fundo de investimento Tarpon, de maneira a jogar diretamente no mercado financeiro (bolsa de valores) aquilo que deveria ser um direito, ação inimaginável nem no Chile do Pinochet da década de 1970.

Em 2015, a partir da fusão com a editora Saraiva, o grupo Abril criou um truste no mercado educacional, o grupo Somos, que obteve receita líquida de mais de R$ 1 bilhão naquele ano. Um outro grupo que lucra horrores com a educação é o Objetivo que, através de seu sistema de municipal de ensino, fornece material didático para mais de 100 mil alunos Brasil afora. Ou seja, estamos falando de interesses bilionários em todo um processo de reformulação do ensino, caso esse projeto de lei seja aprovado.

Aos ingênuos de plantão que duvidam disso tudo, basta ler o artigo 8º: “disposto nessa lei aplica-se, no que couber: I - aos livros didáticos e paradidáticos”. Não a toa o propositor do projeto teve sua campanha financiada por inúmeras empresas da área. No Congresso Nacional, o responsável foi o deputado federal Izalci Lucas, do PSDB do Distrito Federal. Empresário da área da educação, sua campanha eleitoral de 2014 foi financiada, entre bancos e empreiteiras, principalmente por empresas do ramo educacional, como a DeVry Educacional, Rede Laureate e outras. Essas duas citadas são algumas das gigantes do ramo, sendo a DeVry originária de Chicago e a Laureate ligada a Kroton/Anhanguera. O lobby educacional, que impele parlamentares a aprovar leis que favorecem seus interesses, é uma realidade conhecida no Brasil, afinal estamos falando do país em que se foi criado legalmente o maior conglomerado educacional do planeta Terra - a Kroton/Anhanguera. Sim, tudo isso debaixo dos narizes dos governos petistas de Lula e Dilma.

A ideia, portanto, é transferir para os materiais didáticos os ideais da “escola sem partido”. Dessa forma se cria uma disputa ferrenha para quem consegue lucrar mais com a venda desses materiais “isentos”. Mas afinal, quais os fundamentos desse projeto de lei?

Fundamentos ideológico-políticos do Escola sem Partido

A matriz ideológica, econômica e política desse projeto é bastante ampla e se apoia no vasto espectro da nova direita conservadora brasileira. O individualismo, a meritocracia, o obscurantismo religioso do neopentecostalismo, a heteronormatividade e as limitações do direito ao corpo, o tecnicismo a serviço da acumulação capitalista, a polícia e a vigilância como solução para a violência generalizada, o ódio à esquerda e ao comunismo, o ufanismo, a ofensiva anti-sindical, a negação da realidade da opressão, a obediência civil, o ordenamento militar, os valores judaico-cristãos como modelo universal, o neoliberalismo e uma pitada de nazi-fascismo - esses são alguns dos princípios que norteiam os propositores e correligionários do projeto de lei e que se esconde por trás de um suposto republicanismo e princípio da isonomia. Obviamente isso tudo não está exposto no texto, mas presente nas entrelinhas e nos discursos de seus representantes.

Aliás, lendo o texto, o que prima na argumentação é a imparcialidade política e ideológica. Acontece que é impossível lecionar de maneira isenta. Sempre se toma um lado. No terreno das humanidades fica mais fácil de se perceber isso, pois a mera seleção lexical de determinado fenômeno histórico já denota posicionamento político de antemão. O Brasil foi descoberto ou invadido pelos portugueses? 1964 foi um golpe ou uma revolução? Mesmo o ensino de biológicas são passíveis de posicionamento, principalmente quando o neopentecostalismo dita os paradigmas fundacionais do universo em base ao criacionismo, negando a validade normativa do evolucionismo. Mas a falácia da imparcialidade fica mais clara quando nos deparamos com a argumentação dos parlamentares que defendem o PL.

Não foram poucos os que já ouviram o deputado estadual do PP do Rio Grande do Sul, Marcel Van Hattem (apelidado carinhosamente pelos secundaristas que ocuparam suas escolas de Van Helltem ou Van Rato), proferir contra tudo o que há relacionado com a esquerda e com setores oprimidos da sociedade. É seu o PL 190/2015 que quer aplicar o Escola sem Partido em solo gaúcho. Sua carreira política (que deu um salto com as eleições para DCE da UFRGS em 2007 quando fora presidente da entidade e cujo mote da campanha investia contra a aplicação de cotas raciais na universidade) é nomeadamente reacionária e anima a horda mentecapta dos adoradores da ditadura e da tortura em todo o estado há um tempo já.

Com as recentes ocupações de escolas que lutam em defesa da educação pública, Van Hattem destila barbaridades na câmara dos deputados contra o “veneno” do comunismo presente em cada sala de aula e confere ao Escola sem Partido (bem como uma gama de propostas privatizantes, como o sistema de vouchers e parcerias público-privadas) o antídoto para essa “doença” doutrinadora. Ele e seus adeptos justificam o controle ideológico da sala de aula a partir das ocupações, como se fossem os professores os responsáveis pelos protestos dos alunos, e não a realidade do ensino público que há anos vem se deteriorando gradativamente e que leva os alunos a tomarem ações radicalizadas.

De acordo com essa lógica, quem, portanto, é responsável pelo movimento “desocupa”? Segundo o texto do PL, os alunos representam “a parte mais fraca na relação de aprendizado” e portanto estariam vulneráveis à doutrinação do professor. Quem ocupa uma escola é doutrinado pelo professor, e quem joga pedra em estudante de escola ocupada é o quê?

Perguntas insolúveis na verdade, pois o PL não visa o fim da doutrinação ou o que quer que se entenda por isso, mas tão somente a ofensiva anti-esquerda institucional e o enriquecimento dos grandes barões da educação. Trata-se de um ataque contra a crítica social, o pensamento histórico, a abordagem marxista para compreensão e transformação do mundo, o imaginário libertário, a literatura contestadora, de tudo o que envolve subverter o status quo para manter as coisas do jeito que são. Não passa de uma lei doutrinadora, portanto.

Impactos na sociedade, uma vez aprovado

A primeira coisa que vem a mente seria o impacto subjetivo da aprovação. Haveria uma moralização da malta reacionária que vem dando as caras nos últimos tempos, mais ou menos parecida com o que ocorreu logo após a aprovação do impeachment na câmara dos deputados. Todo um bando que não se cansa de criar memes infantis nas redes sociais, bolsominions dantescos que cujo auge da argumentação se limita à troça “menos Marx, mais Mises” e que possui como guia espiritual o grotesco astrólogo Olavo de Carvalho, se sentirá mais fortalecida para atacar a esquerda. Isso é realmente preocupante.

Mas os aspectos objetivos também o são e remetem, em certo sentido, aos tempos da ditadura militar onde se criava uma dinâmica policialesca em todos os cantos da sociedade, onde a desconfiança com o próximo era norma social. Lendo o projeto, isso fica mais claro. O texto em si é bastante vago na verdade, deixando ao encargo da subjetividade do leitor a interpretação das proposições. Coisas como “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”, “pluralismo de ideias” e “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” orientam o projeto.

Qualquer um pode fazer a leitura que quiser acerca desses princípios, uma vez que neutralidade política e ideológica não sustenta seu significado por si só. E isso talvez seja o mais preocupante, pois caberá à leitura do juíz, em caso de descumprimento da lei por parte do professor, a punição ou não. Dessa forma o artigo 7º, remontando às histórias mais sinistras da época do nazi-fascismo, da ditadura militar e do estalinismo, arremata - “As secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Na prática isso significa que você pode denunciar o seu professor caso ele defenda alguma posição política dentro de sala de aula. Se ele defender os direitos dos homossexuais em sala de aula e isso desagradar as convicções da família de algum aluno, ele pode ser denunciado anonimamente e, a depender do juíz, punido com advertência, suspensão ou até mesmo demissão. Daí a expressão dada ao projeto de lei como “lei da mordaça”, onde o professor não pode defender seus ideais dentro de sala de aula, mesmo eles sendo intrinsecamente relacionados com a matéria dada.

Um outro aspecto que cola bem com o momento de crise econômica em que atravessa o país tem a ver com o fundamento da meritocracia do projeto. Não importa se o professor foi capaz de instigar o pensamento crítico dentro da sala de aula, a reflexão, a ponderação, etc. O que importa para o ensino são os resultados. Todo um vocabulário emprestado do economiquês se transforma em norma vigente dos objetivos educacionais. O aluno, portanto, deve buscar o “rendimento” acadêmico, o “resultado” exemplar, o “sucesso” do aprendizado, etc. 

Tais “valores” tecnicistas de um capitalismo industrial e financeirizado molda toda uma geração na ética da competição e do empreendedorismo, bem como se adequa às necessidades de se reproduzir mão de obra semi-qualificada em escala industrial. Nada a ver com educação emancipadora e humanizada. A hegemonia das classes dirigentes começam na sala de aula aqui, para parafrasear o marxista italiano que dizia o mesmo sobre o chão de fábrica.

Perspectivas de combate

Por último, é necessário enxergar que esses Van Hattens da vida e seus fiéis são apenas “operadores políticos”. de todo esse processo. Não são eles que produzem essas ideias diretamente, mas a reproduzem sem vergonha e acabam sendo funcionais aos grandes grupos empresariais que lucram com a educação. Trata-se de uma verdadeira esculhambação generalizada com qualquer abordagem pedagógica minimamente séria. Basta ver que Alexandre Frota, estuprador confesso e imbecil total, virou conselheiro da república em matéria de educação com o novo ministro Mendonça Filho (DEM). E tudo isso possui consequências nefastas para pensarmos a educação no país e os rumos que a política, em escalas nacional, estadual e municipais, está tomando.

Pensando de um ponto de vista estratégico, é necessário combater toda essa ofensiva da direita que se dá por distintas vias e o projeto Escola sem Partido acaba sendo apenas uma de suas faces mais repulsivas. Os interesses dos tubarões do ensino, o imaginário conservador, o preconceito com os oprimidos, o modelo norte-americano de ensino encaixotado e industrial, o proto-fascismo de cada dia, tudo isso ganha com a aprovação de um projeto que nem esse. E para combatê-lo a esquerda necessita mudar.

É necessário atacar os privilégios desses grandes grupos empresariais de educação, estatizando-os sem indenização sob controle dos educadores e alunos, começando pela Kroton/Anhanguera. Avançando sobre todo o ensino privado, de modo a acabar com a mercantilização da educação, é a única maneira de pensar uma saída para essa situação. Acabar com os privilégios desses políticos também é necessário, se fazendo premente, portanto, aprovar uma lei que determine que todo político receba igual a uma professora, que ele possa ser revogável a qualquer momento. Para tanto seria necessário uma nova constituição no país, que ponha abaixo o pacto com os militares e a elite reafirmado na constituição de 1988.

A estratégia de conciliação com as elites que permeou a política do Partido dos Trabalhadores e seus satélites se mostrou fracassada. A luta contra essa direita não se dará pela via de retorno de Dilma, muito menos de depositar a confiança nesses setores que inclusive abriram espaço para essa mesma direita em seus governos nos últimos 13 anos. Apenas com a auto-organização dos estudantes, como os secundaristas vem fazendo, em aliança com a massa de trabalhadores para combater a ofensiva da direita, o golpe em curso e todos os ajustes que estão sendo feitos em escala nacional, é possível chegar a um embate definitivo e que pode gerar frutos. Apenas com a força independente da massa da juventude e dos trabalhadores podemos vislumbrar uma saída para esse complexo cenário.




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