Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Por que escondem o Fanon revolucionário?

Letícia Parks

Por que escondem o Fanon revolucionário?

Letícia Parks

Um resgate do legado anticolonialista e revolucionário de Fanon frente aos desafios da luta contra o genocídio do povo palestino

Há 62 anos de sua morte, precedida pela incansável escrita de Condenados da Terra, Frantz Fanon deixa um legado de anticolonialismo e unidade de todos os povos na luta contra o sistema capitalista. Enquanto caem as bombas de Israel sobre hospitais, casas e campos de refugiados palestinos, deixando um rastro de sangue racializado, a leitura do Fanon revolucionário continua sendo ocultada pelas interpretações amigas das utópicas saídas individualistas e meritocráticas para o racismo. Afinal, de qual Fanon as armadilhas neoliberais querem nos separar?

Psicanálise e dialética materialista

Frantz Fanon, intelectual e revolucionário, nasceu na Martinica em 1925. Na sua terra natal, experimentou desde muito cedo a realidade violenta e de intensa exploração a qual são submetidos os povos colonizados: obrigados a falar o francês imposto pela violência do império, a encarar a própria cultura com o exotismo impregnado pelo colono francês e a sobreviver do trabalho precário, barato e superexplorado reservado aos que nascem com a pele escura. Formado médico psiquiatra na França durante a ameaça nazista sobre o continente, Fanon se vincula à resistência e se torna soldado contra o nazifascismo. Publica então sua primeira obra em 1952, Pele negra, máscaras brancas, inicialmente sua tese de doutorado apresentada em 1950 e que, ao ser recusada pela banca, torna-se uma publicação independente.

Pele negra, máscaras brancas é hoje a obra mais conhecida e lida de Fanon, e concentra análises dos efeitos do racismo sobre a psicologia humana, tanto em pessoas negras quanto brancas. As inovações de Fanon em seu livro são inúmeras. Primeiro, acusa o racismo como uma ideologia produtora de doenças mentais e sofrimentos psíquicos, para além de ecoar as denúncias das violências físicas e materiais exercidas pela colonização e o racismo contra massas racializadas em todo o mundo. A potência da denúncia de Fanon torna Pele negra, máscaras brancas está em ser uma obra que dialoga com aspectos de nossa subjetividade que até então desconhecemos como forma de racionalizar, sem, entretanto, descolar subjetividade de sociedade. Pelo contrário, Fanon, acompanhando uma tradição não subjetivista, sabe e defende de forma voraz que não há nenhum sofrimento que não seja, em primeiro lugar, uma doença social. A sensação de inferioridade, de que nos falta humanidade, são sentimentos, Fanon explica, implantados no negro, no árabe, no colonizado, para impedir nossa capacidade de reação contra a violência racista. Outro aspecto avant la lettre de Pele negra, máscaras brancas, é o papel político que desempenha a linguagem na construção das relações coloniais. Para além da subordinação material e econômica, onde o racismo funciona como uma engrenagem do capitalismo para hierarquizar a humanidade, Fanon compreende um universo colonial também como mecanismos de subordinação psicológica onde os papéis e os meios de expressão estão condicionados pela linguagem e pela cultura.

A obra é lida na atualidade de formas diversas, mas chamamos atenção aqui a duas. Há os que, interessados em esvaziar qualquer conteúdo revolucionário de Fanon, buscam separar sua análise da denúncia ao sistema capitalista e ao colonialismo. Tal leitura, de caráter liberal, pesa a mão em tratar Fanon como um fundamento teórico para uma campanha anti-marxista, tratando de divulgar falsidades históricas e teóricas sobre Marx e Engels, como se fosse possível chamar de colonialista obras que tratam justamente de um combate anticolonialista de forma tão entusiasmada como se lê no Marx que escreve sobre a Revolta dos Cipaios (Índia, entre 1857 e 1859) ou sobre a luta negra nos EUA durante a guerra civil dos anos 1860. Os expoentes do liberalismo na luta negra fazem um malabarismo tenebroso, ao usar um intelectual como Fanon como subsídio para reificar expressões como negritude e branquitude, pressupondo um certo estado estático de acordo com a cor da pele. Ainda que tais termos são utilizados na atualidade de formas diversas, e inclusive por vezes apontando elementos factuais da opressão racial, Fanon atenta para o risco de análises totalizantes ou antidialéticas, ou seja, que não considerem elementos de posicionamento político, classe social, colaboração ou oposição ao sistema colonial.

A obra de Fanon, no fundo, dá muitas pistas contra utilizações contemporâneas dessas expressões. Ainda em Pele Negra, Máscaras Brancas, o martinicano dedica muitas páginas para elucidação crítica sobre o movimento negritude de Senghor, sugerindo uma contundente desconfiança contra uma leitura essencialista da negritude e contra uma busca de um ser “tipicamente negro”. Nas leituras liberais, há políticas que apresentam saídas individualistas para o racismo, como negros no topo, a formação de uma elite negra, sempre em um estado de conservação do sistema capitalista, que também baseiam suas premissas na obra de início de carreira do psicanalista. O que não dizem é que para Frantz Fanon, a civilização negra como resposta não é suficiente porque não muda a situação dos negros explorados e oprimidos. Considerando a ausência na obra do autor de uma concepção de que o racismo e o colonialismo são enfrentados com o sucesso individual, ou com regras para os relacionamentos ou o amor, o que se produz ao utilizar esse autor como uma referência para elaborações de saídas individuais e de separação entre negros e brancos é uma falsificação de Máscaras para encaixar Fanon em empreitadas desesperadas para separar as massas negras e a intelectualidade negra de conclusões revolucionárias de unidade da classe trabalhadora na luta contra o capitalismo e o racismo.

O existencialismo, em primeiro lugar, talvez seja uma das primeiras "racionalidades" sequestradas pela ideologia neoliberal. Enquanto filósofos existencialistas como Sartre davam peso para o racismo e os movimentos de negritude e se dedicaram à combater o colonialismo, hoje, as premissas de liberdade, propósito e significado da vida humana foram transformadas em mercadorias, e a medida em que o indivíduo é capaz de, pela via do consumo, adquirir os produtos que condensam tais qualidades, o problema da humanidade se considera resolvido. Associado às ideias de representatividade, basta que um ou dois indivíduos consigam e pronto, o racismo está vários passos no caminho de sua resolução. Se liberdade é poder viajar o mundo tomando Jack Daniels e fazendo propagandas de carros de elite, e se uma mulher negra pode fazer tudo isso, então estaríamos mais próximos de sermos considerados humanos - diria uma filósofa dos "manuais antirracistas".

É preciso mencionar também uma leitura pós-colonial que, apesar de não ser liberal, encontra em Fanon uma ferramenta para combater um suposto economicismo e racionalismo marxistas, temas não tratados por Fanon, que ao contrário, encontrou no marxismo uma ferramenta para a luta por liberdade dos colonizados. Fanon é talvez um dos exemplos mais interessantes da extensão da teoria marxista sobre a totalidade das condições de exploração e opressão, o que sem dúvida, inclui a cultura e a psicologia. Porém, não se encontra em Fanon uma revolução cultural, ou mudança de mentalidades, que não passe por uma revolução social, equação frequentemente dimensionada nas teorias assim chamadas decoloniais.

Em um movimento inverso aos dos estudos pós-coloniais, que partem de uma crítica ao marxismo ao analisar as derrotas ou retrocessos na História, diluindo classe e focando em linguagem e cultura; Fanon parte da linguagem e cultura para chegar ao marxismo e na estratégia da revolução social como resposta ao sofrimento. Pele Negra é tratado como livro de cabeceira dos estudos pós-coloniais dos anos 90, que depois da publicação do Orientalismo por Edward Said, tornando Fanon uma referência de um movimento do qual ele nunca participou. Nada poderia ser mais alheio a esse intelectual do que a lógica da constituição de redes de bem viver e de solidariedade que mantém o capitalismo intacto.

O que é possível encontrar em Fanon é um intelectual de vanguarda tentando mostrar como o racismo está relacionado à estrutura do sistema imperial, que em vários momentos de sua primeira obra demonstra entender a relação entre ideologia e economia. Não é à toa que no capítulo que encerra a obra, À guia de Conclusão, seja aberto com um preâmbulo d’O 18 de Brumário de Karl Marx. Nele, Fanon explica que ao intelectual não cabem os mesmos esforços que ao operário, mas que ambos chegam à mesma conclusão, mesmo que um recorra à luta por ideologia e outro por força da matéria:

Não levamos a ingenuidade até o ponto de acreditar que os apelos à razão ou ao respeito pelo homem possam mudar a realidade. Para o preto que trabalha nas plantações de cana em Robert só há uma solução, a luta. E essa luta, ele a empreenderá e a conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá conceber sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a fome.

Enquanto o antimarxismo pode, com pressa, interpretar uma repulsa à teoria do velho barbudo em tal passagem, o próprio autor sintetiza, de forma clara, que mesmo ao que não tem acesso à teoria chega à conclusão de que sua luta é "contra a exploração". Nas páginas que, de forma insistente, rejeitam a raça como parâmetro essencialista de definição da vida humana, é um tanto absurdo que se busque relacionar Fanon a qualquer tipo de saída política exclusivamente culturalista e de negros contra brancos. É categórico: o objetivo de Fanon é o fim da raça, uma espécie de anti essencialismo revolucionário, que parte da crítica à modernidade, denunciando os limites restritos do humanismo. Para Fanon, é preciso que o humanismo europeu morra para que possa triunfar uma humanidade radical, inventada a partir da ruptura social mais profunda, sobreposta à mentira contada pela civilização francesa que se colocou acima de todas as raças e nações.

A Revolução Argelina como uma inflexão dialética no pensamento de Fanon

Dez anos depois, a obra de Fanon se transforma em sua forma, discurso e dialética, fruto da inflexão intelectual causada pela experiência vivida na Revolução Argelina. Quando descobre estar sofrendo de leucemia, Frantz Fanon acelera o processo de escrita para deixar ao mundo o que sabia ser sua última obra. Viaja à França e adiciona ao seu texto um prefácio de Sartre, que se tornou, entre seus anos de medicina e a vida militante, um amigo próximo. A relação entre esses dois humanistas radicais é uma das comprovações de sua profunda noção de colaboração e unidade entre negros e brancos e de sua vinculação crítica com a filosofia sartriana. Condenados da Terra é publicado quando o autor morre com apenas 36 anos completos.

A escrita de Condenados da Terra é uma escrita urgente, de um revolucionário em luta pelo seu próprio legado. As páginas são preenchidas de lições e leituras advindas do calor da guerra civil argelina, da qual Fanon participa como um forte aliado das massas contra a colonização francesa. A transformação da vida de Fanon frente a esse evento é impressionante. O psicanalista viajou ao país em 1953 originalmente para assumir um cargo de psiquiatra na Blida-Joinville, atual bairro de Zabana. Fanon trabalhou a favor dos militantes argelinos de forma clandestina, fazendo terapias, cursos de primeiros socorros e desviando medicamentos.

Enquanto psiquiatra contratado pela França atendia tanto soldados, quanto vítimas da violência colonial. Em 1956, ele rompe qualquer vínculo profissional com o Estado francês através de uma carta de demissão que futuramente foi publicada, se tornando um texto amplamente conhecido como Em defesa da Revolução Argelina. Na França, Fanon atuou no braço clandestino desse movimento, o Fédération de France, levantando fundos para a revolução argelina. Correndo risco de ser capturado pelas autoridades francesas ou pela ala militar da FLN que passou a organizar atentados internos contra lideranças do próprio grupo, Fanon se desloca para Tunis onde passa a desempenhar papel chave na elaboração do Jornal da FLN, El Moudjahid. A atuação militante no jornal é decisiva, exatamente no momento ímpar da Revolução argelina, a Batalha de Argel, para o amadurecimento político de Fanon e antecipa várias concepções que trabalhará em Condenados da Terra. Apesar da fervorosa atuação militante em prol da revolução argelina, Fanon sabia pouco sobre a sociedade norte-africana à época e não falava árabe nem cabila, explica Peter Hudis no artigo Como Frantz Fanon foi transformado pela Revolução Argelina

…ele era um rápido aprendiz, e após a Frente de Libertação Nacional (FLN) ter lançado a Revolução em 1 de novembro de 1954, ele se engajou ativamente como um apoiador e o porta-voz posterior da organização. Não é exagero afirmar que, a partir de então, até o fim de sua vida, Fanon se dedicou por completo à causa da independência argelina, servindo em 1959 como embaixador itinerante da FLN nos Estados da África subsaariana, que ele repetidamente percorreu em um esforço para solidificar o apoio à revolução.

A FLN, da qual participa Fanon até o fim de sua vida, era uma frente pluripartidária, da qual participavam setores das burguesias nacionais e de tendências políticas das quais Fanon se pronuncia adversário. A tensão interna à Frente era enorme, e parte desses interlocutores estão presentes na permanente luta teórica e política que marca Condenados da Terra. Já nos primeiros anos do processo, Fanon se vincula a uma ala marxista da FLN, representada pelas figuras de Slimane Dehilés e Ramdane Abane. Abane era um crítico aberto aos setores que defendiam uma Argélia árabe-islâmica, e termina se tornado uma das vítimas dos desaparecimentos forçados produzidos pelos setores conservadores da Frente. O desaparecimento de Abane assombra Fanon até seus últimos dias, assim como sua preocupação sobre o futuro dessa nação independente forjada pela revolução. Todas essas preocupações se fazem presentes nos debates de Condenados.

A burguesia nacional é denunciada por Fanon como defensora dos interesses colonialistas dentro das colônias. Fanon opina que não é possível contar com essa camada da sociedade como uma aliada na luta revolucionária, já que é uma aliada da burguesia imperialista. Esse é um dos elementos que o aproximam da Teoria da Revolução Permanente (TRP) de Leon Trótski, revolucionário russo que se destaca como dirigente do Exército Vermelho durante o processo revolucionário soviético e como um opositor ao caráter autoritário de Stálin e sua teoria revisionista do marxismo. A obra de Fanon, apesar de não fazer referência direta às ideias de Trótski, acompanha uma tendência de resposta frente aos atrasos econômicos e a colonização que nos permite traçar paralelos interessantes.

Trótski, partindo das lições da própria Revolução Russa, desenvolve a TRP explicando que países colonizados e de desenvolvimento econômico tardio precisam organizar as bases de uma revolução socialista para enfrentar o colonialismo e o atraso econômico. Essa tese era uma luta teórica com a direção já burocrática da URSS, que passa a defender a tese de uma revolução em etapas para os países colonizados. Essas etapas baseiam-se numa lógica que traça uma continuidade de desenvolvimento econômico e social igual a todos os países, ou seja, estabelece a democracia capitalista como uma etapa necessária para o desenvolvimento de uma revolução socialista. Essa tese é contraposta por Trótski e pela Oposição de Esquerda porque, em primeiro lugar, não se comprova na realidade. A manutenção de colônias e desenvolvimento econômico débil no sul global, ao contrário de serem incoerências capitalistas, são na verdade as bases para a existência de economias avançadas nos países imperialistas. Portanto, acreditar que há possibilidade de libertar-se da colonização sem se enfrentar com o capitalismo, é uma enorme ilusão. Em segundo lugar, a tese stalinista submete as lutas anticoloniais às direções burguesas nacionais.

Fanon se posiciona nesse debate argumentando que:

Estas observações que temos feito sobre a burguesia nacional conduzem-nos a uma conclusão que não deveria surpreender-nos. Nos países subdesenvolvidos, a burguesia não deve encontrar condições para a sua existência e desenvolvimento. Por outras palavras, o esforço conjugado das massas enquadradas num partido e dos intelectuais perfeitamente conscientes e guiados por princípios revolucionários, deve fechar o caminho a essa burguesia prejudicial e inútil.

A lucidez de Fanon o posiciona junto dos setores que, de fato, rompem massivamente com o stalinismo nos países árabes e africanos fruto dessa tese, como expressão do repúdio que as massas negras e árabes sentiam de suas burguesias nacionais. A crítica de Fanon também era contundente contra a perspectiva etapista e evolucionista desenvolvida pelo Partido Comunista Francês que através de um dos seus chefes, Laurent Casanova, defendia esperar o amadurecimento das condições objetivas para criar uma “comunidade de interesse entre o povo colonizado e a classe operária do país colonialista”.

Outro elemento "permanentista" que é possível apontar está nas colocações de Fanon em relação à cultura do colonizado, um vivo debate de sua geração. Havia, entre os lutadores anticoloniais, os que viam na cultura negra o caminho para o desenvolvimento de uma nova sociabilidade livre de opressão e racismo. Fanon abre um debate duro:

Esta obrigação histórica em que se encontram os homens de cultura africanos, de racializar as suas reivindicações, de falar mais da cultura africana do que da cultura nacional, vai conduzi-los a um beco sem saída. (...) a degradação dos fins desta sociedade vai aprofundar-se na elaboração do conceito de «negritude».

Negando que haja vantagem na cunhagem do conceito de negritude, Fanon explica como a unificação do negro em torno de uma cultura africana tece uma armadilha em torno do intelectual, impedindo que ele veja os desafios materiais colocados diante dele na luta violenta contra as forças de ocupação, um desafio que se dá no reconhecimento das particularidades da situação política, e não nas generalidades de uma suposta negritude, correndo o risco de colocá-lo ao lado do negro colonizador, ao invés de contra ele:

O intelectual colonizado dará conta, sem dúvida, mais tarde ou mais cedo, de que não se prova a nação com a cultura, mas que esta se manifesta na luta que o povo realiza contra as forças de ocupação.

A prática revolucionária mobiliza o pensamento de Fanon a uma síntese dialética distinta, onde o sujeito não se submete à realidade apresentada, mas tem o poder de intervir sobre ela e provocar mudanças substantivas, abrindo caminho para uma nova cultura. A ideia de que a cultura pode transformar a vida, que carrega dentro de si uma certa individualização da batalha contra o sistema, é sobreposta por uma noção de que a revolução, o enfrentamento material e violento contra os poderes coloniais, é capaz de transformar não só a relação do colonizado com sua terra - livre, a partir daí - como também a própria cultura. O caminho da cultura livre é o caminho da revolução.

Há um evidente movimento na síntese dialética que não termina de se tornar efetivamente materialismo histórico dialético devido a um debate de classe. A perspectiva de que o sujeito revolucionário hegemônico da nossa época seja o campesinato - tese que aproxima Fanon do maoísmo, tendência em ampla divulgação dado o contexto de Revolução Chinesa - e não o proletariado - que com sua direção independente pode galvanizar toda a energia revolucionária contida entre os camponeses pobres, contra os camponeses ricos e latifundiários - continua carregando uma certa moralização do sujeito revolucionário, ou seja, a dotação do caráter revolucionário do campesinato para Fanon não se dá ao redor de uma análise da materialidade - a tomada dos meios de produção, como é para Marx - mas através de uma tendência moral ou subjetiva do campesinato (que é uma classe sumamente heterogênea, dividida em seus interesses entre as camadas pobres e as mais abastadas), a ser mais radical contra a colônia do que o proletariado. No materialismo histórico dialético, o caráter revolucionário de uma classe se dá através de identificar sua relação com os meios de produção e, no caso da classe trabalhadora, sua capacidade de através dos locais de trabalho impor uma nova ordem social através da tomada do poder. Isso não significa deixar de mobilizar junto de si o campesinato e outras classes sociais ou setores explorados e oprimidos, mas significa a percepção da importância fundamental de controlar os meios de produção para poder pôr fim ao poder da burguesia e, desse ponto de vista, da hegemonia operária para tal.

Separar negros e brancos ou unificar os anticolonialistas?

Iniciemos essa conclusão com um fato fundamental: é de interesse da burguesia dividir a classe trabalhadora entre raças, cores, crenças, tentar nos fazer inimigos e nos enfraquecer no combate contra esse sistema, produtor de divisões. No dia a dia de nossas lutas, quem dá continuidade a essa divisão é a espinha dorsal da burguesia no movimento operário, a burocracia sindical. Trótski, em um debate sobre o movimento operário inglês, opina que se não fosse a burocracia sindical, o poder monárquico que hoje parece invencível desmoronaria como meros brinquedos ridículos frente à força da classe operária. O mesmo revolucionário, ao analisar a situação da classe trabalhadora no México afirma:

À medida que o capitalismo imperialista cria nas colônias e semicolônias um estrato de aristocratas e burocratas operários, estes necessitam o apoio dos governos coloniais e semicoloniais, que desempenhem o papel de protetores, de patrocinadores e às vezes de árbitros. Esta é a base social mais importante do caráter bonapartista e semi bonapartista dos governos das colônias e dos países atrasados em geral. Essa é também a base da dependência dos sindicatos reformistas em relação ao estado.

Essa burocracia sindical e os partidos que falam em nome de nossa classe enquanto fazem alianças com a direita e os patrões, fazem questão de manter aspectos coloniais e semicoloniais, que dão continuidade à situação de divisão de nossa classe. São colaboradoras dos regimes autoritários e de ataques que variam, em todo o mundo, entre momentos de maior e menor grau de repressão e exceção. A gritante ausência de uma luta permanente contra o racismo nos sindicatos e entidades estudantis empurrou muitos trabalhadores, intelectuais e estudantes a organizar a luta antirracista em separado da luta da classe. Da mesma forma, o avanço de uma política antirracista nas massas negras e jovens, tem criado eventos políticos impressionantes na história recente, que apostamos e estimulamos que se disseminem de forma generalizada, como foram as greves operárias que acompanharam a luta por justiça por George Floyd, o surgimento da geração U nos EUA, que associou a luta antirracista e antipatriarcal a refundação de seus sindicatos - na Amazon e Starbucks, por exemplo - ou mesmo o impressionante processo de ocupações estudantis que se dissemina pelo planeta nesse abril e maio/2024, juntando no chão das universidades professores e estudantes que associaram a luta antirracista e anticolonial ao movimento estudantil e de trabalhadores dentro das universidades.

Para o Fanon de Condenados da Terra, a identidade negra e árabe se configura como fruto da opressão - o racismo nos torna negros, árabes, racializados em geral - mas os aliados da luta anticolonial e antirracista são todos os que identificam as injustiças desse sistema, e ao se somarem a luta, "fragmentam" a identidade branca diante dos olhos. Os que antes por sua cor nos pareciam colonos, passam por sua solidariedade e por colocar seu corpo na luta, a carregar nossa identidade:

Em sua marcha laboriosa em direção ao conhecimento racional, o povo deverá igualmente abandonar o simplismo que caracterizava sua percepção do dominador. A espécie se fragmenta diante de seus olhos. À sua volta constata que certos colonos não participam da histeria criminosa e se diferenciam da espécie. Êsses homens, que eram repelidos indiferentemente no bloco monolítico da presença estrangeira, condenam a guerra colonial. O escândalo explode realmente quando protótipos dessa espécie passam para o outro lado, fazem-se negros ou árabes e aceitam os sofrimentos, a tortura, a morte.

O objetivo de domesticar o legado revolucionário de Fanon dentro das teorias críticas não-marxistas, aceitáveis pelo establishment, cai por terra quando jovens brancos, negros, asiáticos de várias partes do planeta fazem-se palestinos e enfrentam a violência policial em nome de lutar contra a maior agressão colonialista de nosso tempo.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[antirracismo]   /   [colonialismo]   /   [Racismo]   /   [Questão Negra]   /   [Leon Trótski]   /   [Marxismo]

Letícia Parks

do Quilombo Vermelho
Comentários