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SEMANÁRIO

Por que as mulheres devem lutar pelo socialismo?

Andrea D’Atri

Tradução: Patrícia Galvão
Ilustração: Clara-Iris Ramos para Catarsi

Por que as mulheres devem lutar pelo socialismo?

Andrea D’Atri

Apresentamos três artigos publicados na revista catalã Catarsi edição de outono/inverno (do hemisfério norte), monografia nº 5 “Do pessoal ao político”, de 2021. Os artigos selecionados, inéditos, abordam o debate sobre a perspectiva materialista da questão de gênero (Laia Jubany), contra o punitivismo nos movimentos sociais transformadores (Laura Macaya Andrés) e sobre a relação entre a luta pela emancipação das mulheres e o socialismo (Andrea D’Atri).

Concordar sobre as vantagens que o socialismo teria a oferecer para a vida, o desenvolvimento e o bem-estar das mulheres pode se transformar em um debate árduo. Mas, talvez seja mais fácil concordar com o diagnóstico de que o capitalismo está levando a humanidade e o planeta à miséria, destruição e barbárie.

Há apenas quinze anos, a razão entre a fortuna das 100 famílias mais ricas dos Estados Unidos e da renda dos 90% mais pobres era de 108.765 para 1. Se compararmos essa diferença com outros momentos da história, podemos dizer que é equivalente à diferença de poder material que existia entre um senador e um escravo na época de esplendor do Império Romano. A pandemia que assola o mundo desde o início de 2020 só aumentou essas contradições aberrantes, contestadas pela maioria. A Amazon é uma metáfora assustadora da situação: centenas de milhares de trabalhadoras e trabalhadores precarizados – sujeitos a jornadas exaustivas, sem o direito à sindicalização, suportando seus ombros exaustos a movimentação da economia em troca de baixos salários –, enquanto o dono da empresa viu seu patrimônio crescer mais 72 bilhões de dólares, nesse curto espaço de tempo em que mais de 4,5 milhões de pessoas morreram.

A crise causada pela Covid-19 não fez mais do que acelerar as tendências que já estavam em curso. Mas, além disso, mostrou que as contradições capitalistas não são apenas econômicas, mas também ecológicas e reprodutivas: de forma obscena, o funesto axioma capitalista de que os lucros são mais importantes que a vida se desdobrou diante dos olhos de milhões de seres humanos. A cada crise capitalista essa contradição se torna cada vez mais inaceitável. E por isso, como afirmam diferentes analistas, as ideias socialistas são retomadas entre as novas gerações, mesmo no seio dos países imperialistas.

Amarradas e bem atadas

Em 2019, antes do coronavírus se espalhar pelo planeta, as mulheres representavam 50% da população mundial com idade para o trabalho, embora fosse apenas 39% do total da população ativa. Em quase todos os países da África Subsaariana, Sudeste Asiático e América Latina, as mulheres eram mais propensas do que os homens a ingressar no mercado de trabalho em condições precárias e informais. Mais de 21% das mulheres em idade ativa realizam trabalhos de cuidado não remunerado em tempo integral; enquanto apenas 1,5% dos homens estão nas mesmas condições.

No mesmo ano, 13 milhões de meninas e adolescentes com menos de 20 anos tornaram-se mães, mas em 119 países o acesso ao aborto é restrito ou proibido e apenas 38 países proíbem a demissão de trabalhadoras grávidas, enquanto em 86 países não incluem o tempo de licença maternidade ou períodos de ausência dedicados ao cuidado dos filhos no cálculo do tempo para aposentadoria. Cerca de 52% das pessoas com mais de 15 anos vivendo com HIV em 2018 eram mulheres e essa é uma proporção que não pára de aumentar desde 1990, quando representavam menos da metade.

Com a pandemia, as diferenças de gênero pré-existentes só aumentaram. No início deste ano, o Fórum de Davos calculou que seriam necessários mais de 135 anos para eliminar as desigualdades de gênero no mundo: cerca de 36 anos a mais do que haviam estimado em 2020. As decisões tomadas pelos governos para enfrentar a pandemia da Covid-19 conseguiram atrasar por mais uma geração o que, em suas próprias palavras, eles consideravam como meta para atingir a igualdade de gênero.

O que é realmente utópico é pensar que, mais cedo ou mais tarde, essa lacuna seria reduzida simplesmente deixando o sistema capitalista seguir seu livre curso ou, em uma versão mais progressista, que os movimentos sociais se manifestassem e setores políticos legislassem de forma democrática para encurtar essa distância entre os gêneros. Hoje, nos Estados Unidos, as mulheres enfrentam a reversão do direito ao aborto no Texas; da mesma forma que tiveram idas e vindas no Estado Espanhol nos últimos anos. Na Suíça, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovado e, no Afeganistão, as mulheres mais uma vez precisam cobrir o corpo inteiro para poder sair na rua. O capitalismo não está em um momento de desenvolvimento, mas de sobrevivência à força a partir de crises recorrentes, cuja recuperação deixa um rastro de destruição das forças produtivas em seu caminho. E mesmo se pudesse imaginar que a utopia neoliberal poderia prosperar, ela prosperaria em quais países e às custas de quem? As cadeias globais de cuidados estão aí para nos mostrar a resposta. Se, nos países desenvolvidos, as mulheres conseguem se igualar aos homens no trabalho ou na carreira acadêmica, é, em grande parte, porque o trabalho livre de reprodução da força de trabalho foi terceirizado para outra mulher pobre, imigrante e racializada.

Não há leis ou aumentos do produto interno bruto que mudem essa situação. É um dos nós mais apertados que o capitalismo criou e impossível de desatar por dentro do sistema.

Trabalho gratuito e mais trabalho gratuito

O trabalho doméstico não é controlado diretamente pelos capitalistas. No entanto, os capitalistas se beneficiam ao manter grande parte do trabalho reprodutivo da força de trabalho na esfera privada. Dessa forma, o salário não precisa cobrir todos os custos de reprodução do trabalhador e da trabalhadora assalariada, pois uma parte dessas tarefas é coberta pelos próprios trabalhadores em suas casas, sem receber qualquer remuneração em troca. Evidentemente, a grande maioria das que realizam esse trabalho – sendo ou não trabalhadoras assalariadas – são as mulheres. Em outras palavras, o trabalho reprodutivo não remunerado, realizado majoritariamente por mulheres em suas casas, aumenta indiretamente a massa de mais-valia que o capitalista extrai da exploração da força de trabalho assalariada.

Embora a opressão às mulheres tenha suas raízes no surgimento das sociedades divididas em classes na antiguidade, o capitalismo reformula essa subordinação tornando-a funcional ao fortalecimento do mecanismo de extração da mais-valia. Fetichiza a produção de mercadorias, escondendo a existência de trabalho excedente através do pagamento de um salário. E, ao mesmo tempo, mantém-se dissociado do campo de produção o “componente doméstico” da obra necessária à reprodução dessa mercadoria muito especial que é a força de trabalho. Por isso, várias autoras feministas marxistas consideram que o trabalho doméstico, o trabalho livre de reprodução social ou o que também se denomina trabalho de cuidado em sentido amplo é, como existe para as grandes massas, um produto autêntico da sociedade capitalista.

Sustentar essa colossal desigualdade exige uma enorme pressão ideológica que permite aos indivíduos assumir a norma como seu próprio desejo. Ou seja, que homens e mulheres acabam acreditando que o que fazem, principalmente, não é trabalho não remunerado, mas amor. Por isso, o amor romântico – entre outras coisas – também é uma invenção do capitalismo.

O capitalismo, que foi capaz de desvendar os mistérios da natureza e do cosmos, não pode eliminar completamente os preconceitos, mandatos e estereótipos que estabelecem o que é uma mulher, como deve ser uma boa mulher, quais são seus direitos e obrigações, quais devem ser seus desejos e comportamentos. Porque na manutenção desse “obscurantismo de gênero”, reside grande parte da justificativa ideológica de que esse trabalho não remunerado é amor e corresponde às mulheres. Aquela que desafia, em algum momento, essas preconcepções ancestrais profundas sobre seu gênero, é passível de ser violentada por meio de ridicularização, desprezo, humilhação, coação econômica ou judicial, espancamento ou feminicídio.

Por isso, reiteramos, não há políticas de desenvolvimento social, prosperidade econômica extraordinária ou legislação maravilhosa com uma perspectiva de gênero que, em qualquer democracia capitalista – mesmo as dos países mais avançados – possa eliminar completamente a opressão às mulheres, e elas conquistarem sua emancipação, nem mesmo alcançando a plena igualdade com os homens.

Parafraseando Marx e Engels, chamamos o socialismo de “movimento real que anula e supera o estado atual das coisas”. E chamo de “estado atual das coisas” o fato de que uma pequena minoria se enriqueça obscenamente, mesmo em meio a uma pandemia, às custas do trabalho cada vez mais precário da grande maioria, cuja reprodução como força de trabalho depende inexoravelmente do trabalho não remunerado das mulheres.

Tempo livre do relógio capitalista

O capitalismo, estimulado por seu impulso inerente à competição, reduz rapidamente o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias. Mais produtos em menos tempo são produtos mais baratos e de maior consumo. Para os capitalistas significa lucros cada vez maiores. Para a maioria das mulheres e homens trabalhadores, um roubo cada vez maior: no mesmo tempo em que antes se fabricava uma mercadoria X, agora se produz cem, enquanto quem a produziu continua recebendo o mesmo salário. Porque você não é pago pelo que produz; sua força de trabalho é alugada por um determinado período de tempo. O capitalista precisa da superexploração de um setor da classe trabalhadora com altas taxas de produção, horas extras e jornadas extenuantes em um extremo, enquanto uma grande massa de trabalhadores permanece desempregada ou em empregos ultra precarizados para pressionar os salários dos empregados.

Mas o desenvolvimento da ciência e da tecnologia que permite atingir um nível tão alto de produtividade do trabalho pode também permitir reduzir enormemente o tempo desse trabalho utilizado na produção e reprodução das condições materiais de existência da sociedade. É isso que nós, socialistas, propomos: reduzir ao mínimo o trabalho necessário para que todas as pessoas possam empregar suas capacidades humanas na arte, na ciência, no esporte, nos vínculos e no cuidado com os outros e com o planeta. Todos nós trabalharíamos e faríamos isso em um tempo muito menor do que usamos atualmente para ganhar nosso salário. Claro, isso ameaça os lucros dos capitalistas o que nos obrigará a enfrentar sua resistência em ter seus privilégios retirados (leia-se, enfrentar suas leis, sua justiça, sua polícia, seus exércitos, mas também a divisão que eles vão impor em nossas fileiras através das religiões, do racismo, da xenofobia e da misoginia). Nada de novo sob o sol: o socialismo é esse movimento real que se expressa, em germe, na luta constante da classe trabalhadora para se libertar do jugo da exploração, desde de faltas justificadas das horas roubadas pelo patrão até a luta histórica para reduzir a jornada de trabalho a oito horas, da conquista das férias remuneradas e da organização dos sindicatos até estabelecer o controle dos trabalhadores da produção. Um movimento de escravas e escravos insurgentes.

A revolução é permanente ou não é

A derrubada do capitalismo e a construção das bases de uma nova sociedade socialista serão suficientes para acabar com a opressão às mulheres? Não, mas são um passo necessário.

Apontamos anteriormente que todos os preconceitos, mandatos e estereótipos de gênero que são reproduzidos para sustentar a discriminação das mulheres estão enraizados nas condições materiais de reprodução e produção social capitalista. No entanto, é mais fácil tomar o poder do que dissolver um preconceito. E é lógico que eles persistam mesmo quando as condições materiais que possibilitaram a sua existência foram profundamente modificadas. Portanto, a emancipação das mulheres não é aquela consequência automática que deveria vir com o mero assalto “aos palácios de inverno” e a socialização dos meios de produção, como repetem os “camaradas” stalinistas e outros que deturparam o marxismo reduzindo-o a uma miserável caricatura economicista.

Mas a socialização do trabalho doméstico e de cuidados, através da construção de habitações comunitárias e outros estabelecimentos (restaurantes, lavandarias, escolas, creches, asilos, cuidados domiciliares) e espaços de lazer (parques, campos desportivos, clubes, centros culturais), retirando-o da esfera privada do lar, tornando-o um trabalho exercido tanto por homens como por mulheres assalariados, é uma base necessária para começar a eliminar a “escravidão doméstica” que, de fato, impede as mulheres de exercer e gozar em condições iguais a dos homens os seus direitos “igualitários” – onde quer que os tenha conquistado.

As próximas gerações, libertas dessa dupla jornada não remunerada e tendo conseguido a redução do tempo de trabalho ao mínimo, dissolverão os preconceitos sexistas e encontrarão novas definições para o amor, que não estejam vinculadas ao sacrifício silencioso, ao trabalho invisível e à entrega incondicional.

Não prometemos que o socialismo será o paraíso imediato para as mulheres. Mas, é certo que a luta por uma sociedade sem exploração do trabalho humano em benefício de uma minoria parasitária, que implica a subordinação das mulheres no trabalho diário invisível e gratuito de reproduzir essa imensa força de trabalho, é a única luta que torna nossa vida possível de ser vivida! Fazer parte do estado atual ou ser parte do “movimento real que anula e supera o estado atual das coisas”? Escolha.


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